Sumário
I. Do facto de o lesado em acidente simultaneamente de viação e de trabalho ter recebido a indemnização por acidente de trabalho acordada com a seguradora responsável pela reparação do sinistro no respectivo processo laboral não resulta que não possa haver lugar a indemnização pelos danos patrimoniais futuros decorrentes do dano biológico sofrido, se as sequelas definitivas do acidente forem de molde a fazer prever a sua ocorrência;
II. A tal não obsta o facto de tais sequelas serem compatíveis com o exercício da actividade profissional habitual que o lesado mantem sem redução de categoria profissional ou remuneração, mas que dele exigem significativos esforços suplementares;
III. O juízo de equidade em que se funda a fixação pelas instâncias do montante da indemnização nos termos do artigo 566.º n.º 3 do Código de Processo Civil só é passível de censura se não se contiver dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que o legitima, tendo por referência a evolução da jurisprudência e a observância do princípio da igualdade no tratamento prudencial de situações similares;
IV. Não extravasa os limites impostos pela equidade a fixação de uma indemnização no valor de 45.000,00 euros para reparação de danos patrimoniais futuros de um homem de quarenta e oito anos de idade, pintor de construção civil, pessoa, robusta, forte e ágil que, como sequela definitiva das lesões sofridas passou a ser portador de um défice funcional permanente de integridade físico-psiquica de 17 pontos, deixando de poder realizar algumas das tarefas habituais que a sua função exige, subir e descer andaimes, tem grandes dificuldades em carregar pesos acima de 5 Kg e não consegue estar de pé durante longos períodos, com marcha claudicante e dor crónica no tornozelo esquerdo, ainda que tais sequelas sejam compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicando esforços suplementares significativos.
Decisão Texto Integral
EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Conselheiros da 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça
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RELATÓRIO
Parte I – Introdução
1. ..., demandou a Companhia de Seguros Zurich – Sucursal em Portugal pedindo a sua condenação a pagar-lhe o valor global de 117.280,00 (cento e dezassete mil duzentos e oitenta euros), acrescido dos respectivos juros à taxa legal desde a citação e bem assim a assegurar os tratamentos médicos e medicamentosos resultantes do acidente de viação que descreve e que venham a ser considerados necessários por indicação médica.
O autor quantifica os prejuízos por si sofridos cuja reparação peticiona na forma seguinte:
- 20.000,00 euros pelo sofrimento físico suportado,
- 10.000,00 euros pelo “dano estético” sofrido,
- 15.000,00 euros pelo dano relativo ao “prejuízo de afirmação pessoal”,
- 70.000,00 euros pelo “dano biológico”,
- 2.280,00 euros por outros danos patrimoniais.
Alega o autor, em apertada síntese, o seguinte:
No dia 28 de fevereiro de 2018 foi vítima de atropelamento numa passadeira para peões situada em frente ao Restaurante ... – ... – ..., por um veículo automóvel segurado da ré e por culpa exclusiva do respectivo condutor.
Do acidente resultou para o autor uma fratura com luxação exposta da tibiotársica esquerda e fratura trimaleolar multisquirolosa distal do tornozelo esquerdo, tendo ainda fraturado e perdido um dente do maxilar inferior e sequelas definitivas e prejuízos de ordem patrimonial.
2. Tendo sido regularmente citada a ré contestou, aceitando a sua responsabilidade civil decorrente do acidente de viacção que vitimou o autor, mas dele divergindo no que se refere à concretização dos danos sofridos, suas sequelas e ao montante necessário à reparação integral do dano.
3. Teve lugar a audiência de julgamento.
Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a ré nos seguintes termos:
- a pagar ao autor a quantia de € 930 (novecentos e trinta euros), a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor para as operações civis, desde a citação até efectivo e integral pagamento;
- a pagar ao autor a quantia de € 35.000 (trinta e cinco mil euros), a título de indemnização por todos os danos não patrimoniais sofridos – incluindo-se aqui o dano biológico em todas as suas vertentes – acrescida de juros de mora desde a prolação da sentença até efectivo e integral pagamento.
4. Inconformado o autor interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra.
Por acórdão proferido a 28 de setembro de 2022 o Tribunal da Relação de Coimbra julgou parcialmente procedente a apelação e, mantendo as indemnizações arbitradas em primeira instância, acrescentou à responsabilidade da ré a do pagamento da quantia de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros) pelo dano biológico na vertente patrimonial, e respectivos juros de mora desde a data do acórdão e até efectivo e integral pagamento.
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Parte II – A Revista
5. A seguradora ré, não se conformando com o decidido em segunda instância, interpôs recurso de revista.
São do seguinte teor as Conclusões das alegações apresentadas:
“1. A recorrente não se conforma com o douto acórdão recorrido, o qual, no seu modesto entender, não faz uma correta aplicação da lei aos factos provados.
2. Ao invés, a douta sentença de primeira instância mostrava-se, ela sim, adequada à matéria provada nos autos e conforme aos parâmetros jurisprudenciais em vigor.
3. Como consta da motivação da decisão de 1ª instância o Autor foi já ressarcido, em sede de processo emergente de acidente de trabalho, da vertente patrimonial do dano biológico.
4. Na ausência de qualquer consequência a nível profissional, já que o Autor manteve o seu emprego, categoria profissional e remuneração, a indemnização que lhe foi atribuída no Proc. n.º 321/19.... não pode senão ter visado compensar o agravamento da penosidade na execução das diversas tarefas que, de futuro, terá de levar a cabo no exercício da sua atividade profissional habitual.
5. Está provado que o acidente revestiu para o autor a dupla natureza de acidente de viação e de acidente de trabalho, tendo a Companhia de Seguros responsável pelo acidente de trabalho, que é também a Ré e ora recorrente, pago ao Autor o capital de remição decorrente da sua incapacidade permanente para o trabalho.
6. O Autor trabalhava, e trabalha, como pintor de construção civil e auferia, e aufere, a mesma remuneração, antes e depois do acidente.
7. Ou seja, o Autor não sofreu nenhuma perda de rendimentos concreta, por via das sequelas do acidente, pois continua a exercer as mesmas funções e a auferir o mesmo salário.
8. É indiscutível que o faz agora com maior penosidade, com maior esforço, mas esse maior esforço, essa sua perda de capacidade de ganho, foi já indemnizada no processo emergente de acidente de trabalho e não estão provados nos autos quaisquer outros previsíveis danos patrimoniais futuros decorrentes do dano biológico.
9. De resto, se a situação clínica do Autor relativamente às sequelas do acidente evoluir desfavoravelmente, se o Autor piorar, assistir-lhe-á sempre o direito a pedir a revisão da sua incapacidade, e consequentemente, do respetivo valor indemnizatório, no processo emergente do acidente de trabalho.
10. Vale tudo isto para dizer que não resultaram provados quaisquer previsíveis danos patrimoniais futuros decorrentes do dano biológico sofrido pelo lesado.
11. Como bem decidiu a primeira instância, a indemnização a atribuir nos presentes autos apenas poderá, portanto, complementar aquilo que não se mostre já ressarcido pela indemnização atribuída no processo decorrente de acidente laboral.
12. Não existe, salvo o devido respeito, qualquer fundamento para indemnizar a denominada “capitis diminutio”, a título de danos patrimoniais, para lá do montante já recebido pelo Autor no âmbito do acidente de trabalho.
13. Trata-se, nestes autos de compensar o Autor, na exata medida em que a diminuição psicossomática afete as suas atividades recreativas, sociais, a vida familiar, sexual e sentimental, limitando ou restringindo a vivência em pleno do seu dia a dia.
14. Nesta conformidade, como tem entendido a jurisprudência maioritária deste Supremo Tribunal – vejam-se, por todos, os Acórdãos do STJ de 21-04-2022 no processo nº 96/18.9T8PVZ.P1.S1 e de 24-04-2012 no processo 3070/05.2TBPBL.L1.S1 (disponíveis em www.dgsi.pt) – o dano biológico não tem que ser ressarcido autonomamente a título de dano patrimonial.
15. No douto Acórdão de 21-04-2022, em que foi Relator o senhor Conselheiro Fernando Baptista, pode ler-se: “Tal dano (leia-se dano biológico) tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como pode ser compensado a título de dano moral. Depende da situação concreta sob análise, a qual terá de ser apreciada casuisticamente, verificando-se se a lesão originará, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida, e por si só, uma perda da capacidade de ganho ou se se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, sem prejuízo do natural agravamento inerente ao decorrer da idade.”
16. No caso sub judicio o dano biológico que afeta o Autor apenas poderá, pois, ser ressarcido como dano não patrimonial.
Se assim se não entender, o que só por dever de patrocínio se admite,
17. Caso se entenda que no caso concreto do Autor há que indemnizar o dano biológico também como dano patrimonial, então, uma vez que as indemnizações devidas em consequência de um sinistro simultaneamente acidente de viação e de trabalho não são cumuláveis, mas apenas complementares até ao ressarcimento total do prejuízo causado, sempre haverá que atender ao facto, provado, de o Autor já ter recebido o montante de € 13.370,37 a título de capital de remição da pensão decorrente da sua IPP no processo laboral.
18. Com efeito, o aumento da penosidade e esforço do lesado para desenvolver as mesmas tarefas profissionais é precisamente o que foi indemnizado ao Autor com o capital de remição no processo de trabalho, pelo que o respetivo valor tem de ser atendido ao fixar-se indemnização nos presentes autos.
19. Ao permitir cumular o valor fixado no âmbito do processo de acidente de trabalho com um montante de € 45.000,00 fixado no âmbito do processo de acidente de viação, o douto acórdão recorrido acaba por admitir uma indemnização de € 58.370,37 (€ 45.000,00 + € 13.370,37) a título de dano biológico na vertente patrimonial, a qual, não se pode esquecer, será somada à indemnização de € 35.000,00 fixada na primeira instância a título de danos não patrimoniais, que já incluiu, também ela, uma componente de dano biológico, como expressamente consta da douta sentença e não foi posto em causa por Autor e Ré.
20. Ao assim decidir, o douto acórdão recorrido extravasa, claramente, o decidido em casos semelhantes.
21. Mas mesmo sem lhe somar os € 13.370,37 recebidos no processo de trabalho, sempre só o montante de € 45.000,00 arbitrado pela Relação é manifestamente superior ao aplicado em casos semelhantes.
22. O douto Acórdão recorrido viola, assim, o que dispõe o nº 3 do Artigo 8º do C. Civil, pois permite ao Autor receber um montante indemnizatório bem superior ao fixado em casos similares.
23. Aliás, o primeiro dos dois doutos Acórdãos deste Supremo Tribunal citados no acórdão recorrido para justificar a indemnização arbitrada ao Autor - Acórdão do STJ de 19/10/2021, em que foi Relator o Conselheiro Manuel Capelo - não pode, de modo algum, ser comparável à situação sub judicio pois que tal douto aresto apreciou apenas a fixação da indemnização por dano biológico na sua vertente não patrimonial, e não na vertente patrimonial (e, aliás, a este título fixou a indemnização em € 40.000,00, e não em € 45.000,00), para lá de que o lesado visado nesse douto aresto ficou a padecer de sequelas que são impeditivas do exercício da sua atividade profissional habitual, embora compatíveis com outras profissões da sua área de preparação técnico-profissional, o que também não é o caso do Autor!
24. O douto aresto citado no Acórdão recorrido não pode, pois, ser usado para aquilatar da fixação de indemnização nos presentes autos.
25. Cotejando, então, algumas decisões deste Supremo Tribunal que mostrem similitude com a situação do Autor, cumpre-nos enumerar o Ac. do STJ de 29-10-2019 no Proc. 7614/15.2T8GMR.G1.S1, que atribuiu o montante de € 36.000,00 a lesado com 34 anos, com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 16 pontos, compatível com exercício da atividade habitual (vendedor e empresário de materiais de construção civil e produtos agrícolas), mas implicando esforços suplementares; bem como o Ac. do STJ de 03-02-2022 no proc. 24267/15.0T8SNT.L1.S1, que fixou em € 35.000,00 a indemnização a professor com 51 anos à data da consolidação médico-legal das lesões, com um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 10 pontos, compatível com o exercício da atividade profissional habitual do A., embora implicando esforços suplementares; e também o recente Ac. do STJ de 10-02-2022 no proc. 12213/15.6T8LSB.L1.S1, respeitante a que situação bem mais grave que a presente, na qual se fixou em € 55.000,00 a indemnização por dano biológico a lesado com 21 anos à data da consolidação das lesões, que ficou com défice funcional permanente da sua integridade físico-psíquica de 14 pontos, com perspetiva de aumento de rendimentos por valorização académica.
26. Lançando-se mão destas decisões e sem olvidar as características do caso concreto, ainda que se entendesse ser de indemnizar o dano biológico autonomamente como dano patrimonial para lá da valoração que já foi feita deste dano como de cariz não patrimonial pela primeira instância, sempre o quantum de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros) fixado no acórdão recorrido extravasa claramente os critérios jurisprudenciais habitualmente seguidos em casos similares e, como tal, ultrapassa a margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade.
27. Atendendo a que:
i.) nestes autos está já fixada a favor do Autor uma indemnização de € 35.000,00 a título de danos não patrimoniais que, mesmo que se entenda que não engloba o dano biológico em todas as suas vertentes (o que não se aceita, mas aqui apenas se admite como hipótese de raciocínio), engloba já o dano biológico na vertente não patrimonial;
ii.) o Autor foi já indemnizado no processo laboral, tendo recebido um capital de remição no montante de € 13.370,37 para ressarcir precisamente a sua perda de capacidade de trabalho;
iii.) qualquer agravamento futuro da situação clínica do Autor que interfira com a sua capacidade laboral estará sempre salvaguardada no âmbito do processo laboral; por tudo isto, sempre a indemnização a título de dano biológico na vertente patrimonial, se a ela houver lugar (o que só por hipótese de admite), não poderá ser de montante superior a € 15.000,00.
28. O douto acórdão recorrido, ao condenar a Ré a pagar ao Autor a indemnização de € 45.000,00 a título de dano biológico na sua vertente patrimonial, mantendo as indemnizações conferidas pela 1ª instância, viola o disposto nos Artigos 563º, 564º e 566º nº 3, bem como o disposto no Artigo 8º nº 3, todos do C. Civil;
29. O douto acórdão recorrido deve, em suma, ser revogado e substituído por outro que, dando provimento ao presente recurso
a) Absolva totalmente a recorrente da condenação no pagamento da quantia de € 45.000,00 a título de dano biológico na vertente patrimonial;
Ou, se assim não for entendido
b) Fixe em € 15.000,00 (quinze mil euros) a indemnização a pagar pela recorrente ao A. a título de dano biológico na vertente patrimonial.”
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6. Por sua vez o autor recorrido apresentou resposta às alegações de revista que concluiu pela forma seguinte:
“i. Nas nossas Contra-Alegações ao Recurso de Revista intentado pela Ré, ora Apelante, consideramos nãohaver qualquerreparo a fazeraodouto Acordão ora em crise, proferido pelos Venerandos Juízes Desembargadores, nem à aplicação que este faz do direito.
ii. Como decorre dos próprios autos, o acidente de viação em discussão foi concomitantemente um acidente de trabalho. (vide, facto provado 50.)
iii. Relativamente ao processo do acidente de trabalho que correu termos no Juízo do Trabalho ..., foi atribuída uma desvalorização ao Autor, ora Recorrente, pelo perito médico do ... de uma IPPde 14,2179%. (vide, facto provado 51.)
iv. Nos autos do supra referido processo laboral, foi homologado o acordo obtido pelo Ministério Público na fase conciliatória e consequentemente, a Seguradora responsável pagou ao A., o montante de € 13.370,37 a título de capital de remissão. (vide, facto provado 52.)
v. As indemnizações devidas em caso de acidente de viação e de trabalho, não são cumuláveis, mas são complementares, assumindo cada uma delas critérios distintos e funcionalidades próprias.
vi. A indemnização devida ao Autor, a título de perda da sua capacidade de ganho, mesmo no caso do Autor, ter optado pela indemnização arbitrada em sede de acidente de trabalho, não contempla a compensação do Dano Biológico, porquanto estamos perante dois danos de natureza diferente.
vii. O Dano Biológico, entendido como diminuição psíquico-somático e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na sua vida pessoal e profissional, tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial como pode ser compensado como dano não patrimonial.
viii. Ponderando todo o quadro factual provado e já assente e tendo em conta os padrões que vêm sendo seguidos pela jurisprudência em casos equiparáveis, consideramos ser justa a decisão dos Venerandos Desembargadores de que a Ré, deve ser condenada a pagar ao Autor, uma indemnização no montante de € 35,000,00 pelos danos não patrimoniais, que não inclua o Dano Biológico.
ix. O Autor ora Apelado, peticionou e fundamentou o seu pedido (vide, art.º(s) 54º a 65º da PI), invocando, além do mais, os danos por si sofridos a título de Dano Biológico, mas enquanto dano patrimonial e não como dano não patrimonial.
x. Quanto ao montante indemnizatório pelos Danos Patrimoniais - Dano Biológico, peticionado pelo Autor, resultam dados como provados pelo douto Tribunal de 1ª Instância e já assentes, os seguintes factos:
(…)
“10. Em resultado do impacto do acidente, o Autor sofreu traumatismo do tornozelo esquerdo, com fratura multisquirolosa distal da perna, tendo ainda fraturado e perdido um dente do maxilar inferior.
34. Fruto do acidente eapós os tratamentos quelhe foramministrados, o Autor apresenta como sequelas, ao nível do membro inferior esquerdo: engrossamento acentuado do tornozelo e porção inferior da perna, perda acentuada de mobilidade do tornozelo, com perda total da flexão dorsal e efectuando 10º na flexão plantar.
35. Em consequência do referido no ponto anterior, o A. apresenta marcha claudicante e sofre de dor crónica no tornozelo esquerdo.
36. Na actividade profissional o A., pintor de construção civil, que era uma pessoa robusta, forte e ágil, após o acidente, deixou de poder realizar algumas das tarefas habituais que a sua função exige, sentindo-se fisicamente debilitado, porquanto não consegue subir e descer andaimes, tem grandes dificuldades em carregar pesos acima de 5 Kg e não consegue estar de pé durante longos períodos.
37. … deixou de todo, de poder correr ou andar de bicicleta, deixou de poder estar muito tempo de pé, ficou limitado nos movimentos,
42. Na recuperação pós cirúrgica e nos inúmeros tratamentos de fisioterapia a que foi sujeito o A. padeceu de enormes dores, dores essas que se mantêm devido à rigidez acentuada da articulação tíbio társica esquerda.
47. O A. nasceu a .../.../1969 e aquando do acidente de viação em causa, tinha 48 anos.
53. O acidente determinou para o A.:
e. Défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 17 pontos.
55. As sequelas supra descritas são compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares significativos.“ (…)
xi. Perante o quadro fático referido anteriormente em x., o Autor apresenta um défice funcional que não pode deixar de relevar enquanto Dano Biológico, consubstanciado na diminuição da qualidade da sua vida profissional, sendo passível de indemnização, pois acarreta-lhe prejuízos incidentes na sua esfera patrimonial, designadamente a frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer atividades ou tarefas de cariz económico, mesmo fora da atividade profissional habitual, bem como os custos de maior onerosidade no exercício ou no incremento de quaisquer dessas atividades ou tarefas.
xii. Tendo em conta o circunstancialismo supra referido em x., resulta provado que as limitações de mobilidade que o Autor ficou afectado por causa do acidente em causa, correspondente a um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psiquica de 17 pontos percentuais, implicam inegavelmente uma redução da sua capacidade económica geral, como seja, o desempenho de outras actividades que, presumivelmente, ainda lhe possam surgir na área da sua formação profissional, ao longo da sua expectativa de vida.
xiii. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, a que fizemos referência nas nossas Motivações, tem vindo a considerar que no caso de Dano Biológico Patrimonial decorrente de um Défice Funcional Permanente, como é o caso dos autos, cujas repercussões são apenas indirectas no desempenho profissional ou na vida quotidiana, obrigando a um maior sacrifício, a respectiva indemnização deverá ser aferida mediante juízos de equidade e não através do critério da teoria da diferença.
xiv. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, a que fizemos referência nas nossas Motivações, tem vindo a considerar que na condenação da Seguradora no pagamento da indemnização devida por acidente de viação não se deve deduzir a indemnização devida por acidente de trabalho já paga ao sinistrado em acidente de trabalho, quando estiverem em causa danos distintos. São de considerar danos diferentes pela mesma jurisprudência, o que decorre da perda de rendimentos salariais associado ao grau de incapacidade laboral fixado no processo de acidente de trabalho e compensado pela atribuição de certo capital de remição e, o DANO BIOLÓGICO decorrente das sequelas incapacitantes do lesado que – embora não determinem perda do rendimento laboral – envolvem restrições acentuadas à capacidade do sinistrado, implicando esforços acrescidos, quer para a realização das tarefas profissionais, quer para as actividades da vida pessoal e corrente, como é o caso dos autos.
xv. Tendo em conta a factologia dada como provada e dada como assente e os doutos entendimentos jurisprudenciais invocados, concordamos inteiramente com o Acordão, agora em crise, proferido pelos Venerandos Juízes Desembargadores, que consideraram ser de atribuir uma compensação ao A. na vertente patrimonial do dano biológico.
xvi. Por ser justa e equitativa e de acordo com outras decisões jurisprudenciais semelhantes invocadas nas nossas Motivações, concordamos inteiramente com o Acordão, agora em crise, proferido pelos Venerandos Juízes Desembargadores que condenaram a R., a pagar ao A., uma indemnização pelos Danos Patrimoniais na vertente Dano Biológico, no montante de € 45.000,00.
xvii. Em síntese, dever-se-á manter na integra o douto Acordão, ora em crise, e a R., deve ser condenada a pagar ao A., ora Apelada, o valor total de € 80.930,00 (oitenta mil e novecentos e trinta euros) relativos ao:
. Montante de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais,
. Montante de € 45.000,00 (quarente e cinco mil euros), a título de danos patrimoniais – Dano Biológico,
. Montante de € 930,00 (novecentos e trinta euros), a título de outros danos patrimoniais (valor já sentenciado pelo douto tribunal a quo e aceite pelas partes).
Bem como ser condenada a pagar ao A., os juros legalmente devidos.”
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7. Admitido o recurso de revista e colhidos que foram os Vistos dos Senhores Juízes Conselheiros que intervêm no julgamento, cumpre apreciar e decidir, ao que nada obsta.
Atendendo às conclusões das alegações do recurso de revista apresentadas pelo recorrente, as questões a resolver são as seguintes:
Se, sendo o evento gerador da responsabilidade civil simultaneamente acidente de viacção e de trabalho, há lugar à reparação autónoma de danos patrimoniais sofridos pelo autor para além dos já contemplados e ressarcidos no processo por acidente de trabalho e se a reparação integral do dano demanda o arbitramento de uma indemnização complementar à fixada em primeira instância por previsíveis danos patrimoniais futuros em função do “dano biológico”;
Caso a resposta à anterior questão seja afirmativa, se o montante da indemnização arbitrado a esse título em segunda instância deve ser mantido por se conter dentro dos limites permitidos pelo recurso à equidade.
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FUNDAMENTAÇÃO
Parte I – Os Factos Provados
Os factos provados nestes autos são os seguintes:
1. No dia 8 de fevereiro de 2018 pelas dezoito horas e quarenta e cinco minutos, o Autor deu início ao atravessamento da faixa de rodagem na passadeira para peões que se localiza em frente ao “Restaurante ...”, sito ao ... 0,50 da Estrada ... em ..., União das Freguesias ... e ... do concelho e distrito ....
2. O Autor, quando se encontrava já a mais de meio da passadeira, foi atropelado pelo veículo, marca Citroen Berlingo, matrícula ..-CO-.., propriedade de “S..., Lda.” conduzido por AA, com o cartão de cidadão n.º ...
3. Perante o impacto, o Autor foi projectado contra o veículo que o atropelou, ficando depois caído no pavimento.
4. A faixa de rodagem naquele local tem a largura de 7,60 m, sendo composta por duas vias de trânsito, de sentidos opostos, constituindo uma recta.
5. No local situa-se uma passadeira, devidamente assinalada com sinal horizontal e marcas longitudinais no solo e no local existe ainda um poste de iluminação publica, fixo.
6. Estava bom tempo, o piso estava seco e o local dispõe de boa visibilidade.
7. O condutor do veículo em causa efectuou uma travagem, que se encontrava devidamente demarcada no pavimento, numa extensão de 4,20 metros antes de embater e atropelar o peão, ora Autor.
8. O condutor do veículo supra indicado não conseguiu imobilizar o veículo que conduzia antes de embater no Autor.
9. À data do acidente, a responsabilidade civil por danos causados a terceiros com o veículo matrícula ..-CO-.., encontrava-se transferida para a Ré, mediante o respectivo contrato de seguro, titulado pela Apólice n.º ...65.
10. Em resultado do impacto do acidente, o Autor sofreu traumatismo do tornozelo esquerdo, com fractura multisquirolosa distal da perna, tendo ainda fraturado e perdido um dente do maxilar inferior.
11. Logo após a colisão, foi chamada uma ambulância do INEM que prestou ao Autor os primeiros socorros.
12. O Autor foi de imediato transportado na mesma ambulância para o Serviço de Urgência ....
13. No Centro Hospitalar ..., foi submetido a tratamento cirúrgico para redução e osteossíntese.
14. O Autor permaneceu internado no mesmo Centro Hospitalar desde o dia .../.../2018 até ao dia 6 de março de 2018.
15. Teve alta do Centro Hospitalar ..., em 6 de março de 2018, tendo sido orientado para a consulta de avaliação externa de ortopedia dentro de 3 semanas com Rx.
16. A partir do dia 7 de março de 2018 e até ao dia 20 de setembro de 2019 passou a ser tratado em regime ambulatório, a mando e por conta da Ré, nos prestadores de saúde da “T...”.
17. No decurso do tempo acima referido o Autor, foi convocado pelos serviços da empresa supra citada e esteve presente em vinte e três consultas de Ortopedia, quatro consultas de Estomatologia e uma consulta de Avaliação do Dano.
18. O Autor, entre 26 de junho de 2018 e 29 de setembro de 2019 foi convocado pelos serviços da Seguradora e foi sujeito a cento e oitenta e duas sessões de fisioterapia.
19. Cada uma das cento e oitenta e duas sessões de fisioterapia a que o Autor se submeteu foi extremamente dolorosa.
20. A partir de 25 de março de 2019 foi-lhe prescrita uma meia elástica.
21. Serviu-se, durante período de tempo não concretamente apurado, do apoio de canadianas, sendo que, pelo menos a partir de 24 de setembro de 2018, foi aconselhado por médico ao serviço da Ré a deixar de o fazer.
22. O Autor, do dia 7 de março de 2018 até ao dia 25 de novembro de 2019, foi convocado pelos serviços da Seguradora e foi sujeito por dez vezes a exames de Imagiologia e, por onze vezes, a mudança de pensos até a fratura se encontrar consolidada.
23. A 29 de janeiro de 2019 foi sujeito a nova cirurgia realizada pelos prestadores médicos contratados pela Ré para lhe ser retirado o material de osteossíntese da perna esquerda.
24. Não obstante os médicos da Seguradora lhe terem dado alta a 20 de setembro de 2019, o Autor continuou a sentir fortes dores no tornozelo esquerdo, o que o levou a recorrer à sua médica de família.
25. Por indicação da médica de família, o Autor foi submetido a uma Tomografia Axial Computorizada (TAC) cujo relatório, entre outros, refere: (…) “Na tíbia distal encontram-se algumas áreas líticas que associam a interrupção da cortical, podendo traduzir processo infecioso activo.” … “Na avaliação dos tecidos moles observa-se edema bi-maleolar, subcutâneo e atrofia difusa dos grupos musculares.” (…)
26. A 6 de novembro de 2019, em resultado da TAC acima referida, a médica de família medicou o Autor com “cefuroxima 500mg 2id + analgesia” e redigiu documento denominado “carta de acompanhamento” no qual, para além de reproduzir as conclusões do exame referido no ponto anterior, diz que “BB, sofreu acidente de trabalho em 08 de Fevereiro de 2018 do qual resultou fractura tibio-társica. Teve alta da vossa consulta em Setembro de 2019, contudo, mantém queixas álgicas e limitação da marcha, não sendo capaz de fazer a sua atividade diária, pelo que renovo baixa médica. Atendendo às queixas, realizou TC: (…) Dado tratar-se de sequela de acidente de trabalho, agradeço a vossa observação e orientação clínica. Saliento também que a segurança social não paga baixa médica por acidente de trabalho, sendo esta da responsabilidade da companhia seguradora.”
27. Com o documento referido no ponto anterior, o Autor solicitou à Ré a reapreciação da sua situação clínica.
28. Perante este pedido, (a Ré) providenciou por nova avaliação clínica ao Autor, com exame médico e exames auxiliares de diagnóstico.
29. Tendo a Ré concluído, ainda em Novembro de 2019, que o Autor não apresentava nenhum sinal clínico de infeção nem havia sofrido nenhuma recaída.
30. Perante as queixas de dores apresentadas pelo Autor, o médico ortopedista designado pela Ré aconselhou ao mesmo a realização de tratamento cirúrgico de artrodese da tibiotársica, o que este recusou.
31. O tratamento cirúrgico referido no ponto anterior consiste numa fixação cirúrgica da articulação do tornozelo que, à custa da perda total de mobilidade (já reduzida) almeja a redução parcial ou total das dores, no componente das mesmas que resulta do movimento da articulação lesada.
32. A referida intervenção poderia atenuar as queixas dolorosas do Autor, embora não contribuísse para uma melhoria funcional nos restantes aspectos sequelares.
33. Em consulta de 28 de novembro de 2019, perante a recusa do Autor em fazer o tratamento aconselhado, foi-lhe dada novamente alta, mantendo a situação clínica anterior, situação da qual o médico designado pela Ré deu conhecimento à médica de família do Autor.
34. Fruto do acidente e após os tratamentos que lhe foram ministrados, o Autor apresenta como sequelas, ao nível do membro inferior esquerdo: cicatrizes operatórias na face lateral e medial do, com aspecto quelóide, algo deprimidas, medindo 12x5cm e 8x7 cm; engrossamento acentuado do tornozelo e porção inferior da perna, que apresentam um aspecto globalmente dismórfico; edema residual, amiotrofia de 2cm da perna em medição efectuada 15 cm a partir do vértice da patela; aumento do comprimento da perna em 0,5 cm em medição efectuada a partir das espinhas ilíacas anterosuperior; perda acentuada de mobilidade do tornozelo, com perda total da flexão dorsal e efectuando 10º na flexão plantar.
35. Em consequência do referido no ponto anterior, o Autor apresenta marcha claudicante e sofre de dor crónica no tornozelo esquerdo.
36. Na actividade profissional o Autor, pintor de construção civil, que era uma pessoa robusta, forte e ágil, após o acidente, deixou de poder realizar algumas das tarefas habituais que a sua função exige, sentindo-se fisicamente debilitado, porquanto não consegue subir e descer andaimes, tem grandes dificuldades em carregar pesos acima de 5 Kg e não consegue estar de pé durante longos períodos.
37. Nas actividades de vida diária, familiares, sociais e de lazer, com as sequelas de que ficou a padecer, o Autor, que anteriormente ao acidente era uma pessoa dinâmica, extremamente sociável, um pai empenhado, que adorava praticar desporto, deixou de todo, de poder correr ou de andar de bicicleta, deixou de poder estar muito tempo de pé, ficou limitado nos movimentos.
38. Em consequência, passou a ficar impedido de brincar e interagir fisicamente com o seu filho, que tinha, à data, 5 anos de idade, e deixou de poder fazer passeios pedestres com a esposa e amigos, o que o entristece e o deprime.
39. Passou a ficar impossibilitado, aos fins de semana, de praticar BTT com um grupo de amigos, ficando psicologicamente muito afectado, isolando-se do contacto com os outros.
40. À data do acidente o Autor era uma pessoa alegre e muito trabalhadora, com hábitos de vida saudável, com grande alegria de viver e constante boa disposição, para com toda a gente e em especial, amigos e família.
41. Aquando do acidente, ao ser projectado contra o carro que o atropelou e ao cair desgovernado no solo, o Autor sofreu fortes dores.
42. Na recuperação pós cirúrgica e nos inúmeros tratamentos de fisioterapia a que foi sujeito o Autor padeceu de enormes dores, dores essas que se mantêm devido à rigidez acentuada da articulação tíbio társica esquerda.
43. No acidente em causa, ficou destruído e manchado com sangue, o vestuário e o calçado que o Autor então utilizava – umas calças, casaco, botas e t-shirt – de valor não concretamente apurado.
44. Ficou ainda totalmente danificado o seu telemóvel marca Samsung, de valor não concretamente apurado.
45. A colocação do implante e de uma coroa aparafusada sobre o implante do dente perdido importa no montante de € 1.350,00, que já foi paga pela Ré ao Autor.
46. O Autor gastou ainda as importâncias que a seguir se discriminam:
a. € 90,00, pagos à Polícia de Segurança Publica, relativo a 5 certidões da Participação do Acidente.
b. € 540,00, pagos a uma babysitter para ficar com o filho menor após as aulas, no decurso dos 27 dias que esteve hospitalizado no Centro Hospitalar ..., dado que, a esposa do Autor trabalha num restaurante das 19:00 horas às 23:00 horas. (= 4 horas x 27 dias= 108 horas x €5,00 = € 540,00)
47. O Autor nasceu a .../.../1969 e aquando do acidente de viação em causa, tinha 48 anos.
48. Trabalhava (e trabalha) como pintor de construção civil e auferia (e aufere) a remuneração base de € 600,00 x 14 meses a somar ao subsídio de refeição de € 132,00 x 11 meses, num total anual ilíquido de € 9.852,00.
49. O acidente de viação ocorreu “in itinere” quando o Autor se deslocava no decurso do horário de trabalho e sob a autoridade e direcção da sua entidade patronal (CC, NIF ..., Rua ..., ..., ... ...).
50. Portanto, o acidente de viação em causa foi considerado também um acidente de trabalho.
51. Nesse sentido, correu termos no Juízo do Trabalho ... - Juiz ..., o processo nº 321/19.... no qual foi homologado o acordo obtido pelo Ministério Público na fase conciliatória, tendo-se procedido ao cálculo do capital de remição com base na pensão anual no montante de € 980,52 reportada a 21 de setembro de 2019 e calculada com base no salário anual auferido e transferido de € 9.852,00 e na desvalorização aí atribuída pelo perito médico do ... de uma IPP de 14,2179%.
52. Em consequência do acordo supra referido, a seguradora responsável em consequência do acidente de trabalho, que também era a Ré, uma vez que a entidade patronal do Autor, tinha a sua responsabilidade infortunística laboral transferida para si, aceitou pagar ao Autor o montante de € 13.370,37 a título de capital de remissão.
53. O acidente determinou para o Autor:
a. Um período de défice funcional temporário total de 15 dias, correspondente ao período de internamento e de convalescença inicial no domicílio;
b. Um período de défice funcional temporário parcial fixável em 554 dias, correspondentes aos restantes dias até perfazer o período decorrido entre a data do evento e a data da consolidação médico-legal das lesões (20 de setembro de 2019).
c. Um período de repercussão temporária na actividade profissional total de 569 dias, correspondente ao período decorrido entre a data do evento e a data da consolidação médico-legal das lesões.
d. “Quantum doloris” (correspondente à valoração do sofrimento físico e psíquico vivenciado pelo Autor entre a data do evento e a consolidação das lesões) fixável num grau 5, numa escala de 7 graus de gravidade crescente;
e. Défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 17 pontos.
f. Dano estético permanente fixável no grau 4, numa escala de 7 graus de gravidade crescente, considerando as alterações dismórficas do membro inferior e claudicação da marcha;
g. Uma repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer fixável no grau 5 de uma escala de 7 graus de gravidade crescente;
54. A data de consolidação médico-legal das lesões é fixável em 20 de setembro de 2019.
55. As sequelas supra descritas são compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares significativos.
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PARTE II – O Direito
No presente recurso de revista estão colocadas duas questões, ambas relativas à concretização da indemnização que é devida ao autor para integral reparação do dano que lhe foi causado no acidente a que os autos se reportam:
- a resposta à primeira visa esclarecer se há lugar à reparação autónoma dos danos de natureza patrimonial futuros decorrentes do “dano biológico” quando as sequelas definitivas da lesão são compatíveis com o exercício da actividade profissional habitual que o lesado mantêm mas exigem relevantes esforços suplementares e teve lugar o ressarcimento de danos resultantes do mesmo evento no âmbito de processo por acidente de trabalho;
- a resposta à segunda questão, dependente da primeira, visa determinar se, havendo lugar a indemnização autónoma por tais previsíveis danos patrimoniais futuros, o montante concretamente fixado no acórdão recorrido deve ser mantido por se conter dentro dos limites da equidade em que se fundou.
1. Sobre a primeira das duas questões enunciadas tiveram as instâncias entendimento divergente.
Considerou a sentença proferida em primeira instância que no caso não havia lugar a indemnização por danos patrimoniais conexos com o “dano biológico” sofrido, com o seguinte fundamento que dela se extrai:
A indemnização apenas poderia complementar aquilo que não se mostre já ressarcido pela indemnização atribuída no processo decorrente de acidente laboral, porque as indemnizações não são cumuláveis, mas complementares até ao integral ressarcimento do prejuízo.
Na ausência de qualquer consequência a nível profissional o autor já foi ressarcido no processo emergente de acidente de trabalho da vertente patrimonial do dano biológico pois manteve o seu emprego, categoria profissional e remuneração, pelo que a indemnização já recebida não pode senão ter visado compensar o “agravamento da penosidade na execução das diversas tarefas que, de futuro, terá de levar a cargo, próprias e habituais de qualquer múnus que implique a utilização do corpo”.
2. O acórdão recorrido, por sua vez, considerou que se apurou no caso a existência de um dano biológico relevante, com previsíveis reflexos patrimoniais futuros, pelo que, em si mesma, tal redução das capacidades funcionais do lesado implicando um maior esforço no exercício da sua actividade profissional e restringindo o acesso a outras oportunidades profissionais futuras dentro do seu expectável tempo de vida “constitui um dano patrimonial indemnizável por implicar uma diminuição efectiva do ganho laboral do lesado, na medida em que se vai projectar no respectivo dia a dia laboral exigindo-lhe permanentemente um esforço acrescido para manter o mesmo resultado produtivo e o consequente mesmo nível de proventos profissionais”.
E tratando-se de um dano patrimonial futuro ele é, porque previsível, ressarcível autonomamente nos termos gerais, independentemente da reparação eventualmente efectuada em sede de responsabilidade civil por acidente de trabalho, que não o abrange.
3. Nos termos do artigo 483.º n.º 1 do Código Civil “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”
Os danos a que o citado preceito alude podem ter a natureza de danos patrimoniais ou não patrimoniais, sendo a regra geral em matéria da sua reparação a reconstituição natural da situação existente antes da lesão.
Por outro lado, os danos futuros, desde que previsíveis, são abrangidos pela obrigação de indemnização.
E o recurso a critérios de equidade é legalmente admissível especificamente quanto aos danos não patrimoniais e também quanto a todos os danos relativamente aos quais não seja possível averiguar o seu exacto valor.
É, por último, incontroverso que, devendo o evento gerador da obrigação de indemnização ser considerado simultaneamente acidente de viação e de trabalho, as indemnizações decorrentes da responsabilidade civil por factos ilícitos do proprietário do veículo causador do acidente e da entidade patronal do lesado não são cumuláveis, sendo apenas complementares até ao ressarcimento integral do dano.
4. O “dano biológico” é um conceito que tem vindo a ser trabalhado pela doutrina e pela jurisprudência e cuja natureza instrumental na determinação do valor da indemnização tende a permitir abranger todas as repercussões que o evento teve na pessoa lesada, na sua integridade físico-psíquica ou diminuição das suas capacidades físicas ou funcionais, com reflexo no presente ou, previsivelmente, no futuro na sua vida pessoal ou profissional, repercutindo-se sobre as suas potencialidades pessoais e qualidade de vida.
Através dele estende-se a obrigação de indemnizar à reparação de todas as consequências negativas do facto para a vida do lesado que sejam decorrentes, directa ou indirectamente, da afectação das suas capacidades funcionais tenham ou não tradução patrimonial directa.
5. Não tendo a figura em causa consagração legal expressa no Código Civil serve ela ao julgador de guia para melhor individualizar e definir as diversas vertentes em que se podem desdobrar as consequências do evento lesivo no contexto da justa determinação do montante da indemnização a arbitrar ao lesado, acabando por se reconduzir, conforme o caso, ao regime geral dos danos patrimoniais ou dos danos não patrimoniais.
O apuramento do prejuízo sofrido pelo lesado através do “dano biológico” mais não traduz do que o reconhecimento de que a afectação e/ou diminuição das capacidades pessoais, físicas ou psíquicas, do lesado, seja temporária ou definitiva, tem natural repercussão na vida que o lesado passará a ter e é susceptível de gerar a obrigação de indemnizar pelo autor do facto ilícito.
Daí que, como é geralmente reconhecido na jurisprudência, tenda a constituir fundamento para a reparação dos danos tradicionalmente enquadráveis na categoria de danos patrimoniais bem como a daqueles que, não tendo uma expressão patrimonial directa, importe quantificar, desde que se encontrem nas condições expressas no artigo 496.º n.º 1 do Código Civil [1].
6. Como tem sido pacificamente reconhecido o “dano biológico” pode ter uma vertente patrimonial e uma vertente não patrimonial de acordo com as consequências do evento que importe considerar.
A perda relevante de capacidades funcionais condicionando o exercício da actividade habitual ou as possibilidades futuras de evolução profissional tem sido entendida como fonte de danos patrimoniais.
7. A este propósito esclarece, por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de outubro de 2012 (acessível em www.dgsi.pt) o seguinte:
“(…) não oferece dúvida que a indemnização a arbitrar pelo dano biológico sofrido pela lesada - consubstanciado em limitações funcionais relevantes e sequelas psíquicas graves - deverá compensá-lo (…) também da inerente perda de capacidades, mesmo que esta não esteja imediata e totalmente reflectida no nível de rendimento auferido.
É que a compensação do dano biológico tem como base e fundamento, quer a relevante e substancial restrição às possibilidades exercício de uma profissão e de futura mudança, desenvolvimento ou reconversão de emprego pelo lesado, implicando flagrante perda de oportunidades, geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, frustrados irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar; quer a acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade diária e corrente, de modo a compensar e ultrapassar as graves deficiências funcionais que constituem sequela irreversível das lesões sofridas.
Na verdade, a perda relevante de capacidades funcionais – mesmo que não imediata e totalmente reflectida no valor dos rendimentos pecuniários auferidos pelo lesado – constitui uma verdadeira «capitis deminutio» num mercado laboral exigente, em permanente mutação e turbulência, condicionando-lhe, de forma relevante e substancial, as possibilidades exercício profissional e de escolha e evolução na profissão , eliminando ou restringindo seriamente a carreira profissional expectável - e, nessa medida, o leque de oportunidades profissionais à sua disposição, - erigindo-se, deste modo, em fonte actual de possíveis e futuramente acrescidos lucros cessantes, a compensar, desde logo, como verdadeiros danos patrimoniais”.
8. Também no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de junho de 2016 proferido na revista 2603/10.6TVLSB.L1.S1 (acessível em www.dgsi.pt) se escreveu:
“Como é sabido, os nossos tribunais, com particular destaque para a jurisprudência do STJ, têm vindo a reconhecer o dano biológico com alcance patrimonial, na vertente de lucros cessantes, na medida em que respeita a incapacidade funcional, ainda que esta não impeça o lesado de trabalhar e que dela não resulte perda de vencimento, uma vez que a força de trabalho humano sempre é fonte de rendimentos, sendo que tal incapacidade obriga a um maior esforço para manter o nível de rendimento anteriormente auferido”.
9. Aqui chegados, importa desde já sublinhar que, contrariamente ao decidido em primeira instância, a atribuição de uma indemnização no contexto do processo por acidente de trabalho, em si mesma, não abrange todos os danos de natureza patrimonial sofridos pelo autor com o acidente.
A sua função e natureza, realçados no acórdão recorrido, não tornam, de resto, a indemnização ali arbitrada instrumento idóneo à reparação de todos os danos de natureza patrimonial sofridos pelo autor, nomeadamente os danos que, previsivelmente, venham a ocorrer no futuro.
Tal como se salienta no acórdão recorrido, a indemnização atribuída ao autor enquanto vítima de acidente de trabalho não contempla o ressarcimento de previsíveis perdas de remuneração no futuro nem a frustração de oportunidades de progressão ou mudança e consequente melhoria da situação profissional inviabilizadas pela afectação da sua integridade física e psíquica, nem mesmo constitui compensação pelo esforço acrescido a que o lesado estará sujeito no exercício de quaisquer tarefas da sua vida profissional ou pessoal por perda ou diminuição das suas capacidades funcionais.
10. Assim sendo, por não reparar integralmente o dano causado, o valor da indemnização fixado para ressarcimento do dano no plano laboral deverá ser acrescido de montante a definir equitativamente como forma de reparação / compensação do dano biológico na sua vertente patrimonial, consubstanciado na privação de futuras oportunidades profissionais ou na sua redução, resultantes diminuição das suas capacidades funcionais e tendo em conta o esforço acrescido que tal diminuição envolverá para o exercício da sua profissão de pintor de construção civil e na sua vida pessoal.
11. Com o que improcedem as conclusões 1 a 16 das alegações de revista nas quais a ré, em suma, defende não ser devido qualquer acréscimo de indemnização para além da fixada em primeira instância a título de danos patrimoniais.
Em consequência haverá que abordar a segunda questão enunciada.
12. No acórdão recorrido foi atribuída ao autor uma indemnização a título de “dano biológico” na sua vertente patrimonial, no valor de 45.000,00 euros.
A determinação do montante indemnizatório foi feita, em linha com o que sido decidido pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, com recurso a critérios de equidade (artigo 566.º n.º 3 do Código de Processo Civil).
É uniforme a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que sendo o objecto da revista a correção do julgamento feito em segunda instância com base na equidade, importa apenas apurar se ele se afastou “de modo substancial e injustificado, dos critérios ou padrões que se entende, generalizadamente, deverem ser adoptados numa jurisprudência evolutiva e actualística para não abalarem a segurança na aplicação do direito, decorrente da necessidade de adopção de critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados e, em última análise, o princípio da igualdade, não incompatível com a devida atenção às circunstâncias do caso (assim entre outros o acórdão proferido a 19 de outubro de 2021 na revista 2601/19.4T8BRG.G1.S1 (acessível em www.dgsi.pt).
Daí que, se se concluir que o julgamento prudencial e casuístico efectuado se mantiver dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que permite o recurso à equidade, ele deva ser mantido.
13. Funda-se o acórdão recorrido nos parâmetros que extrai do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de fevereiro de 2022 proferido na revista 1082/19.7T8SNT.L1.S1 (acessível em www.dgsi.pt ), adaptando-os ao caso dos autos:
- a idade do lesado (48 anos à data do acidente) com a qual está relacionado o seu previsível tempo de vida activa;
- a gravidade do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica (17 pontos);
- as potencialidades de ganho e de aumento de ganho na profissão habitual do lesado e/ou em profissões ou actividades alternativas tendo em conta as qualificações e competências do lesado; (o autor deixou de poder realizar algumas das tarefas habituais que a sua profissão de pintor de construção civil exige, como subir e descer andaimes e estar de pé durante longos períodos);
- a relação entre as lesões sofridas e as exigências próprias da actividade habitual do lesado, pintor de construção civil, sendo que as sequelas decorrentes do défice funcional permanente (em especial o engrossamento acentuado do tornozelo, a perda acentuada de mobilidade, a marcha claudicante e a dor crónica no tornozelo esquerdo largamente condicionantes da sua actividade habitual).
14. O acórdão recorrido, realçando a gravidade das sequelas permanentes de que o autor passou a apresentar e suas consequência no exercício da sua actividade profissional, procede igualmente ao cotejo da situação sub judice com decisões recentes do Supremo Tribunal de Justiça que se pronunciaram sobre o montante a atribuir em situações semelhantes, o que se afigura fundamental para o julgamento por equidade permitido pelo artigo 566.º n.º 3 do Código Civil) assente na observância do princípio da igualdade.
A análise comparativa reporta-se a dois acórdãos recentes do Supremo Tribunal de Justiça, sendo que neles é também feita a comparação com situações semelhantes:
- ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido na revista 1082/19.7T8SNT.L1.S1 onde a um homem de trinta e quatro anos de idade que ficou com um défice funcional de integridade físico-psiquica de nove pontos e relativamente ao qual se constatou ser elevada a probabilidade de as lesões terem significativa repercussão negativa sobre o seu desempenho profissional enquanto serralheiro foi fixada a título de “dano biológico” na vertente patrimonial uma indemnização de 50.000,00 euros;
- ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de outubro de 2021 proferido na revista 2601/19.4T8BRG.G1.S1, em cujo sumário se pode ler que “respeita os imperativos de equidade uma indemnização por danos morais no montante de € 45 000,00, de acordo com a jurisprudência e seu sentido evolutivo, que atendeu à circunstância de o autor, de 44 anos de idade, pessoa saudável, que por força do acidente esteve dois anos de baixa médica dos quais 22 dias em internamento hospitalar contínuo, sofreu dores quantificáveis no grau 5, que ao nível do pé/tornozelo direito se manterão para o resto da vida, um dano estético quantificado no grau 3, e ficou com um défice funcional permanente de 15 pontos não mais deixando de claudicar”. [2]
15. Não se olvida que o acórdão recorrido manteve a indemnização por danos não patrimoniais fixada em primeira instância (e não impugnada) e que o autor recebeu já em sede de processo laboral a quantia de 13.370,37 (treze mil trezentos e setenta euros e trinta e sete cêntimos).
Contudo, está agora apenas em causa a legalidade da determinação equitativa do valor da indemnização a título de reparação dos previsíveis prejuízos patrimoniais futuros decorrentes do dano biológico que sofreu.
E quanto a esse juízo equitativo afigura-se-nos que respeita os imperativos ditados pelos parâmetros de equidade utilizados, a fixação de uma indemnização no montante de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros) a um homem de 48 anos de idade, pintor de construção civil, “que era uma pessoa robusta, forte e ágil, após o acidente, deixou de poder realizar algumas das tarefas habituais que a sua função exige, sentindo-se fisicamente debilitado, porquanto não consegue subir e descer andaimes, tem grandes dificuldades em carregar pesos acima de 5 Kg e não consegue estar de pé durante longos períodos”, passou a sofrer de marcha claudicante e dor crónica no tornozelo esquerdo, ainda que tais sequelas escritas sejam compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicando esforços suplementares significativos, passando a ser portador de um défice funcional permanente da integridade físico-psiquica de 17 pontos.
14. Não extravasando o valor da indemnização em causa estabelecido no acórdão recorrido os limites impostos pela equidade, tendo em conta uma perspectiva actualista e evolutiva no quadro da ponderação de situações semelhantes de que são exemplo as atrás indicadas, deve a decisão impugnada ser mantida.
Por nele ter ficado vencida a seguradora ré suportará integralmente as custas do recurso de revista.
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DECISÃO
Termos em que, julgam improcedente a revista e confirmam o acórdão recorrido.
As custas do recurso ficam a cargo da ré recorrente.
Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 31 de janeiro de 2023
Manuel José Aguiar Pereira (Relator)
Maria Clara Pereira de Sousa de Santiago Sottomayor
António Pedro de Lima Gonçalves
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[1] É esse o caso dos invocados prejuízo estético por marcha claudicante, o prejuízo de afirmação pessoal e o sofrimento físico suportado pelo autor no momento do acidente ou com os tratamentos a que foi sujeito, relativamente aos quais o montante da indemnização foi fixado de acordo com o respectivo regime legal.
[2] Apesar de este acórdão se reportar à determinação de danos de natureza não patrimonial é válido o cotejo com a situação destes autos porque os elementos de facto ponderados no juízo prudencial equitativo são muito idênticos em ambos os casos.