Logótipo STJ
Jurisprudência
N.º de Processo:
72/18.1T9RGR-F.S1
Data:
11/05/2022
Meio Processual:
Jurisprudência:
Votação:
Jurisprudência Estrangeira:
Jurisprudência Internacional:
Jurisprudência Nacional:
Doutrina:
Legislação Comunitária:
Sumário


I - Os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, de enumeração taxativa, têm de reconduzir-se à previsão das als. do n.º 2, do art. 222.º, do CPP, pelo que o STJ apenas tem de verificar (a) se a prisão resulta de uma decisão judicial exequível, (b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite e (c) se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial.

II - A providência de habeas corpus não se destina a apreciar a validade e o mérito de decisões judiciais, a apurar se foram ou não observadas as disposições da lei do processo e se ocorreram ou não irregularidades ou nulidades resultantes da sua inobservância; trata-se, em qualquer caso, de matérias para as quais se encontram legalmente previstos meios próprios de intervenção no processo, onde devem ser conhecidas, de acordo com o estabelecido nos arts. 118.º a 123.º, do CPP e por via de recurso para os tribunais superiores (art. 399.º e ss. do CPP).

III - Para além disso, não se destina também a espoletar qualquer mecanismo alternativo tendente à revisão de uma sentença condenatória, para o que está prevista a via de recurso extraordinário (arts. 449.º e ss. do CPP), à audição do requerente com esta ou outra finalidade processual, ou a averiguar ou conhecer de alegados abusos de poder, para o que estão previstos meios processuais próprios.

IV - Em consequência da revogação da liberdade condicional, o requerente passou a ter que cumprir duas penas sucessivas: a pena de prisão de 1 ano, que estava a cumprir à data da revogação, e 2 anos, 5 meses e 24 dias de prisão, correspondente ao tempo da pena de 6 anos, aplicada noutro processo, que faltava cumprir.

V - Tendo em conta o disposto no art. 63.º, n.º 1, do CP, na sequência de solicitação do TEP nesse sentido, o requerente, cumprida metade da pena de 1 ano, foi colocado, por decisão do juiz, à ordem do outro processo no dia de 19.10.2021, para cumprir o remanescente da pena de prisão de 6 anos, situação em que atualmente se encontra, prevendo-se que o seu termo ocorra em 12.4.2024.

VI - Assim, tendo a privação da liberdade sido levada a efeito por ordem do juiz competente, para efeitos de cumprimento da pena de prisão, em conformidade com o disposto no art. 27.º da CRP e nos arts. 467.º, 470.º e 478.º do CPP, 63.º, n.º 1, e 64.º, n.º 2, do CP e 138.º, n.º 4, al. c), do CEPMPL, e mantendo-se a prisão dentro do prazo fixado por decisão judicial, não se verifica qualquer dos motivos de ilegalidade da prisão previstos no n.º 2 do art. 222.º do CPP.

VII - Pelo que o pedido carece de fundamento, devendo ser indeferido por a petição ser manifestamente infundada, com condenação nos termos do art. 223.º, n.º 6, do CPP.

Decisão Texto Integral


Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. AA, com identificação nos autos, alegando encontrar-se ilegalmente preso, apresenta petição de habeas corpus, por si subscrita, nos seguintes termos (transcrição):

«AA, recluso inocente sequestrado/ raptado/escondido no E.P. ..., de momento em trânsito no Estabelecimento prisional ..., vem, por este meio, apresentar um novo habeas corpus, dado que o cidadão encontra-se preso ilegal através de uma sentença obtida irregularmente e ilegalmente onde não houve defesa.

O STJ deu a possibilidade de revisão de sentença, o aproveitamento dos actos praticados, determinou o colendo do Supremo Tribunal de Justiça o envio do requerimento do arguido aos presentes, vislumbrando-se a manifestação de um recurso extraordinário de revisão da decisão condenatória aqui proferida. O Arguido notificado logo lutou pela revisão, pela qual já luta na Justiça há mais de 1 ano, mas tem sido barrado pela advogada oficiosa bem como pela ordem dos advogados, isto é, a mandatária não faz a revisão de sentença e não permite que outro faça contanto sempre com a ordem dos advogados para esconder a sua negligência.

Com base nos fundamentos de negação de Justiça e nas notificações datadas de 27/04/2022 ref. ... e ref. ...12 pelo Juiz de ... a impedir o recurso, porque essa não pode ser feita pelo arguido mas terá de ser feita por advogada, que conforme já referido, não faz nem deixa que outro possa faze-la. Mais diz o meritíssimo Juiz que nesse contexto não pode receber o recurso apresentado pelo arguido.

Isso é tudo abuso de poder porque o tribunal sabe que o arguido não tem meio de pagar um advogado e que a mandatária oficiosa não faz, pelo que, por desespero, o próprio tem apresentado recurso de revisão e habeas corpus no intuito de reivindicar Justiça.

A mandatária oficiosa, está em situação ilegal, permitida pela Ordem dos advogados, isto é, já foi solicitado por mais que 1 vez, a sua substituição à ordem dos advogados, pedidos esses indeferidos, mantendo a mesma como mandatária do arguido e consequentemente sem a execução da revisão extraordinária de sentença e de habeas corpus para garantir a liberdade do seu cliente. A mesma declarou que é contra os habeas corpus do arguido, afirmações essas gravadas em cd, pois foram proferidas em tribunal, mas a mesma não os faz. Também não notificou, atempadamente, o seu cliente da notificação para recorrer da revisão, só o fez dia 22/04/2022 dizendo-lhe que tinha até dia 26/04/2022 para o fazer. Não o contactou pessoalmente porque sabe que tem de manter o arguido preso ilegal.

Dado o exposto nem o Tribunal Judicial ... nem, o próprio, Supremo Tribunal de Justiça deviam negar que o arguido apresentasse os seus próprios habeas corpus ou revisões de sentença. Podiam eventualmente obrigar a mandatária a fazer o seu trabalho e á ordem para assegurar que a mesma o faça e faça-o com o aval do seu cliente antes de apresentá-lo.

Infelizmente a Justiça, em particular da Região, tem tendência de se encobrir/proteger uns aos outros, o mesmo acontece com a Ordem dos advogados que tudo tem feito para encobrir os crimes cometidos pelos seus associados, sendo o processo 131/08.... e o processo 72/18...., os mais flagrantes, esse último o arguido até há presente data tem sido impedido tanto por parte da sua mandatária e dos E.P. de o consultar para poder identificar a apresentar todas as irregularidades, mentiras e falsificações existentes.

Com base no exposto espera ser notificado pelo STJ e permitido que preste declarações, com gravação, para mostrar todas as falsificações e ilegalidades que tem testemunhado na Justiça, onde é vítima de muitas delas.

Esse habeas corpus é a solução imediata para se colocar fim aos abusos da justiça e espera que o STJ não de deixe levar pelas indicações enganosas do tribunal da condenação, dos advogados e demais envolvidos nos processos do arguido.

Desde já, agradece toda a atenção e compreensão dispensada em relação ao solicitado, ficando a V./disposição para o que for necessário para o efeito.

Sem outro assunto de momento, subscreve com elevada estima e consideração.

E. Deferimento.»

2. Da informação prestada pelo Senhor Juiz do processo n.º 72/18...., do Juízo Local Criminal ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), sobre as condições em que foi efectuada e se mantém a prisão, consta o seguinte (transcrição):

«O arguido dos presentes autos, AA foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de denúncia caluniosa, previsto e punível pelo art.º 365.º, n.º 1 e 3, al. a), do Código Penal, na pena de 01 ano de prisão. Tal decisão (Ref.ª ...60) foi proferida em 02.12.2020 e transitada em julgado em 02.02.2021 (Ref.ª ...37).

No que à tramitação dos autos concerne a mesma teve os contornos seguintes:

A acusação pública foi deduzida em 14.02.2020 (Ref.ª ...73), ali sendo ordenada a nomeação de defensor oficioso ao arguido.

Foi nomeado o Dr. BB, o qual pediu escusa e, nessa sequência, foi nomeado o Dr. CC (Ref.ªs ...74 e ...38).

Os autos foram remetidos à distribuição para julgamento e, por despacho proferido em 13.10.2020 (Ref.ª ...18) foi designado o dia 25.11.2020 para audiência de discussão e julgamento, tendo no mesmo despacho que designou a audiência de julgamento sido solicitada a elaboração de relatório social para determinação da sanção.

Após, em 14.10.2020, o Ilustre Defensor oficioso nomeado, Dr. DD pediu escusa de patrocínio à Ordem dos Advogados (Ref.ª ...89).

Nessa sequência, foi nomeada nova Defensora Oficiosa ao arguido, a Ilustre Defensora, Dr.ª EE (Ref.ª ...30).

Entretanto, foi junto aos autos o comprovativo da notificação do arguido para a audiência de julgamento e bem assim o relatório social para determinação de sanção.

No dia 25.11.2020, em sede de audiência, constatou-se a ausência da Ilustre Defensora entretanto nomeada ao arguido. Encetado contacto com a mesma, a Il. Defensora referiu que não se poderia deslocar ao Tribunal nem substabelecer em nenhum colega (Ref.ª ...59).

Procedeu-se à nomeação de defensor oficioso para o ato, como consta da respetiva ata cuja referência atrás se indicou denota, tendo-se nomeado pelo SINOA, a Dr.ª FF.

Ademais, encontrando-se o arguido regularmente notificado, e tendo-se considerado que não era absolutamente indispensável a sua presença, desde o início da audiência do julgamento, para a boa decisão da causa e descoberta da verdade material, realizou-se o julgamento, tanto mais que, quanto à situação económica, pessoal e familiar do arguido estava junto aos autos o relatório social para determinação da sanção.

Após, foi designada data para a leitura da sentença, tendo-se notificado a Il. Defensora do arguido da data designada para o efeito, e, no dia 2 de Dezembro de 2020, procedeu-se à respetiva leitura da sentença, a qual foi notificada pessoalmente ao arguido em 28.12.2020 (Ref.ª ...90).

O arguido esteve preso à ordem dos presentes autos até ao dia 19.10.2021, data em que foi ligado ao Processo 131/08...., por ter sido revogada a liberdade condicional que lhe tinha sido aplicada (Ref.ª ...87).

Considerando que, conforme é sustentado pelo Exmo. Sr. Conselheiro Eduardo Maia Costa (Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, p. 911), “Não é admissível a rejeição liminar da petição, ainda que o pedido seja manifestamente infundado” (...) “de forma que a providência terá que ser sempre julgada em audiência”, em face de tudo o exposto, inexiste fundamento para ser considerada ilegal a prisão sofrida pelo arguido.»

3. Dado o teor da petição, que faz referência aos dois processos, e da informação prestada no processo n.º 72/18...., vindo mencionado que o requerente esteve preso em cumprimento da pena aplicada nesse processo até ao dia 19.10.2021, data em que foi “desligado” do processo e “ligado” ao processo n.º 131/08...., do Juízo Central ..., Juiz ..., “por ter sido revogada a liberdade condicional”, solicitou-se informação ao Senhor Juiz do processo n.º 131/08.... sobre as condições em que foi efetuada e se mantém a prisão (art.º 223.º, n.º 1, do CPP) à ordem desse processo.

4. Da informação prestada pelo Senhor Juiz do processo 131/08.... consta que:

«AA, para o que interessa do STJ:

. foi detido no dia 13.7.2011 – fls. 3488 e 3489;

. foi constituído arguido em 13.7.2011 e nesse dia sujeito a TIR – fls. 3493 e 3494;

. foi submetido a primeiro interrogatório judicial de arguido detido em 14.7.2011, onde ficou sujeito às medidas de coação de proibição de frequência de locais conotados com o tráfico; proibição de contatar com pessoas relacionadas com o tráfico e consumo de estupefacientes e proibição de se ausentar da ilha ..., nesse dia sendo restituído à liberdade – fls.3566 a 3576;

. foi acusado, em 27.1.2012 pela prática de factos que o MºPº entendeu preencherem, em coautoria e na forma consumada, um crime de tráfico de estupefacientes (artº.21º, nº.1 do DL 15/93, de 22.1) e um crime de associação criminosa [artº.25º, al. a) do mesmo decreto-lei], promovendo o MºPº, concomitantemente, incidente de liquidação do seu património, pugnando ainda pela manutenção do seu estatuto coativo definido no primeiro interrogatório acima falado – fls. 4960 a 4983;

. por requerimento de 6.3.2012 requereu a abertura de instrução a qual foi admitida – fls. 5078 a 5082 e 5177 a 5179;

. cumpridas as diligências instrutórias entendidas necessárias, foi pronunciado, nos termos da peça de 16.4.2012 tal e qual como vinha acusado, mantendo o mesmo estatuto coativo – fls. 5355 a 5362;

. recebidos os autos para julgamento, o mesmo foi designado nos termos do despacho de 18.4.2012 – fls. 5377;

. realizada a audiência de julgamento foi proferido o acórdão de 27.6.2012, que o condenou, como coautor do crime de tráfico de estupefacientes (artº. 21º do DL 15/93 de 22.1) na pena de 6 anos de prisão - fls. 5637 a 5656;

. recorreu da decisão desta primeira instância por peça de 31.7.2012 que foi admitido por despacho de 3.8.2012 – fls. 5774 a 5791 e 5802 e verso;

. recebido no TR... e julgado o recurso, culminou com o acórdão de 18.9.2012, que não lhe deu provimento mantendo a decisão desta instância – fls.5827 a5843 e verso;

. não conformado, por peça de 18.12.2012, recorreu para o STJ, recurso que não foi admitido – fls.5877 a 5902 e 5598;

. depois de pedidos de aclaração e de reclamação, todos indeferidos, a decisão condenatória do arguido a 6 anos de prisão transitou em 23.10.2013 – fls.5908;

. com o trânsito foram emitidos os mandados de condução do arguido ao EP e cumpridos no dia 6.1.2014 – fls.5915 e 5947 e 5948 e 5972 e verso;

. cumpriu a pena de prisão nos termos da liquidação de 10.1.2014, cujo termo foi apontado a 5.1.2020 - fls.5978 e 5979;

. por decisão do TR... de 12.7.2017, foi concedida ao arguido a liberdade condicional e libertado nessas circunstâncias nesse mesmo dia - fls.6375 a 6386;

. por decisão do TEP de 20.7.2021, foi revogada ao arguido a liberdade condicional que lhe havia sido concedida, determinando o consequente cumprimento do remanescente da pena – refª ...57 de 6.9.2021;

. passou a executar o remanescente da pena aqui aplicada por reporte a 19.10.2021, sendo certo que além desse remanescente tem a cumprir de 2 anos 5 meses e 24 dias, segundo a liquidação das penas sucessivas feitas pelo TEP, a pena de 1 ano reportada ao processo 72/18...., calculando o termo da pena para 12.4.20245 – refªs ...23 e ...77, este de 5.11.2021. (…)».

5. O processo encontra-se instruído com documentação dos atos processuais mencionados nas informações prestadas, nomeadamente dos seguintes, relevantes para a decisão do pedido de habeas corpus:

(a) Sentença de 2.12.2020, proferida no processo n.º 72/18.... do Juízo Local Criminal ..., que condenou o requerente pela prática de um crime de denúncia caluniosa, previsto e punível pelo art.º 365.º, n.º 1 e 3, al. a), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão.

(b) Notificação pessoal ao requerente dessa sentença condenatória, levada a efeito pela Polícia de Segurança Pública, em 28.12.2020.

(c) Certificação do trânsito em julgado da sentença condenatória em 2.2.2021.

(d) Mandado de “desligamento” emitido pelo juiz do processo n.º 72/18...., com a data de 11.10.2021, e de “ligamento” ao processo 131/08.... a fim de o requerente ser colocado à ordem deste, “por ter sido revogada a liberdade condicional”.

(e) Certificação do cumprimento do mandado de “desligamento”, com efeitos a 19.10.2021.

(f) Acórdão do tribunal coletivo ... (... Juízo), de 27.6.2012, que condenou o requerente na pena de 6 (seis) anos de prisão pela prática de um crime de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.

(g) Acórdão do Tribunal da Relação ... de 18.9.2012, que negou provimento ao recurso interposto pelo requerente do acórdão de 27.6.2012, confirmando a decisão recorrida.

(h) Despacho de 6.2.2013, que não admitiu o recurso para o Supremo tribunal de Justiça do Acórdão do Tribunal da Relação ....

(i) Certificação do trânsito em julgado do acórdão condenatório, relativamente ao requerente, com a data de 23.10.2013.

(j) Mandado de detenção e condução ao estabelecimento prisional, para cumprimento da pena de 6 anos de prisão aplicada pelo acórdão de 27.6.2012.

(k) Certificação do cumprimento do mandado de detenção, pela Polícia de segurança Pública, no dia 6.1.2014.

(l) Liquidação da pena aplicada, com termo previsto para 5.1.2020.

(m) Acórdão do Tribunal da Relação ..., de 12.7.2017, que, julgando procedente o recurso interposto de decisão do Tribunal de Execução das Penas, lhe concedeu a liberdade condicional pelo tempo de prisão que faltava cumprir, com imposição de regras de conduta.

(n) Certificação da libertação do requerente no dia 12.7.2017, em cumprimento da decisão do Tribunal da Relação.

(o) Decisão do juiz do Tribunal de Execução ..., de 20.7.2021, que revogou a liberdade condicional e determinou a execução da pena de prisão remanescente [processo n.º 40/14...., incidente de incumprimento (Lei 115/2009)].

(p) Despacho do juiz de execução das penas de 12.10.2021 (processo n.º 40/14....), procedendo à liquidação das penas, de cumprimento sucessivo, de 1 ano de prisão, à ordem do processo n.º 72/18...., e do remanescente de 2 anos, 5 meses e 24 dias de prisão da pena aplicada no processo n.º 131/08...., resultante da decisão de revogação da liberdade condicional, no total de 3 anos, 5 meses e 24 dias, fixando o termo das penas em 13.10.2024 e solicitando ao processo n.º 72/18.... o desligamento e o ligamento a este processo com efeitos a 19.10.2021.

(q) Despacho do juiz do Tribunal de Execução das Penas, de 4.11.2021, que, em concordância com o promovido pelo Ministério Público, homologou a liquidação do remanescente da pena aplicada no processo n.º 131/08.... (2 anos, 5 meses e 24 dias de prisão), fixando o seu termo para 12.4.24.

6. Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o defensor, realizou-se audiência, em conformidade com o disposto nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 223.º do CPP.

Terminada a audiência, a secção reuniu para deliberar (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP), fazendo-o nos termos que se seguem.

II. Fundamentação

7. O artigo 31.º, n.º 1, da Constituição da República consagra o direito à providência de habeas corpus como direito fundamental contra o abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegais.

O habeas corpus, que pode ser requerido pela própria pessoa lesada no seu direito à liberdade ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos (n.º 2 do artigo 31.º da Constituição), consiste numa providência expedita e urgente de garantia do direito à liberdade consagrado nos artigos 27.º e 28.º da Constituição, em caso de detenção ou prisão «contrários aos princípios da constitucionalidade e da legalidade das medidas restritivas da liberdade», «em que não haja outro meio legal de fazer cessar a ofensa ao direito à liberdade», sendo, por isso, uma garantia privilegiada deste direito, por motivos penais ou outros (assim, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, p. 508, e Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2005, p. 303, 343-344).

Nos termos do artigo 27.º, todos têm direito à liberdade e ninguém pode ser privado dela, total ou parcialmente, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança privativa da liberdade (n.ºs 1 e 2), excetuando-se a privação da liberdade, no tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos previstos no n.º 3 do mesmo preceito constitucional. A prisão ou detenção é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos neste preceito constitucional.

O direito à liberdade consagrado e garantido no artigo 27.º da Constituição, que se inspira diretamente no artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) e em outros textos internacionais, como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 9.º), que vinculam Portugal ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos, é o direito à liberdade física, à liberdade de movimentos, isto é, o direito de não ser detido, aprisionado, ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço, ou impedido de se movimentar [assim, por todos, o acórdão de 29.12.2021 (proc. 487/19.8PALSB-A.S1), em www.dgsi.pt].

8. Tratando-se de uma situação de alegada prisão ilegal, é aplicável o artigo 222.º do CPP, que dispõe:

«1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

  a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

  b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

  c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.”

9. Como tem sido sublinhado na jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, a providência de habeas corpus constitui uma medida extraordinária ou excecional de urgência – no sentido de acrescer a outras formas processualmente previstas de reagir contra a prisão ilegal – perante ofensa grave à liberdade com abuso de poder, sem lei ou contra a lei, referidas nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

A providência de habeas corpus não constitui um recurso de uma decisão judicial, um meio de reacção tendo por objecto actos do processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade do arguido ou um «sucedâneo» dos recursos admissíveis, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais (artigos 399.º e segs. do CPP). A providência não interfere nem é incompatível com o recurso ordinário de decisões sobre questões de natureza processual que possam afetar a situação de privação da liberdade, sendo diferentes os seus pressupostos. A diversidade do âmbito de proteção do habeas corpus e do recurso ordinário configuram diferentes níveis de garantia do direito à liberdade, em que aquela providência permite preencher um espaço de proteção imediata perante a inadmissibilidade legal da prisão.

A providência não se destina a apreciar alegados erros de direito, irregularidades ou nulidades de atos processuais, que dispõem de regime de arguição e conhecimento processual próprio (artigos 118.º a 123.º do CPP), nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade. Os seus fundamentos “revelam que a ilegalidade da prisão que lhes está pressuposta se deve configurar como violação direta e substancial e em contrariedade imediata e patente da lei: quer seja a incompetência para ordenar a prisão, a inadmissibilidade substantiva (facto que não admita a privação de liberdade), ou a direta, manifesta e autodeterminável insubsistência de pressupostos, produto de simples e clara verificação material (excesso de prazo)» (assim, nomeadamente, de entre os mais recentes, os acórdãos de 9.3.2022, 816/13.8PBCLD-A.S1, e de 29.12.2021, proc. 487/19.8PALSB-A.S1, citando os acórdãos de 04.01.2017, proc. 109/16.9GBMDR-B.S1, de 02.11.2018, proc. 78/16.5PWLSB-B.S1, e de 16-05-2019, proc. 1206/17.9S6LSB-C.S1, em www.dgsi.pt).

10. Os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento do habeas corpus, têm de reconduzir-se, necessariamente, à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, de enumeração taxativa.

Como se tem afirmado em jurisprudência uniforme e reiterada, o Supremo Tribunal de Justiça apenas tem de verificar (a) se a prisão, em que o peticionante atualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível (prisão ordenada por entidade competente), (b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite e (c) se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial (cfr., entre os mais recentes, os acórdãos de 9.3.2022, 816/13.8PBCLD-A.S1, e de 29.12.2021, proc. 487/19.8PALSB-A.S1, cit.).

11. O habeas corpus pressupõe a atualidade da ilegalidade da prisão, reportada ao momento em que a petição é apreciada, como também tem sido reiteradamente sublinhado (assim, os citados acórdãos de 9.3.2022 e de 29.12.2021, bem como, de entre outros, os acórdãos de 21.11.2012, proc. n.º 22/12.9GBETZ-0.S1, 09.02.2011, proc. n.º 25/10.8MAVRS-B.S1, de 11.02.2015, proc. n.º 18/15.9YFLSB.S1, e de 17.03.2016, proc. n.º 289/16.3JABRG-A.S1, em www.dgsi.pt).

12. Da petição, das informações a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, do CPP e dos documentos juntos, nomeadamente das decisões judiciais transitadas em julgado, resulta esclarecido, em síntese, com relevância para a apreciação e decisão, que:

¾ Por acórdão de 27.6.2012, transitado em julgado em 23.10.2013, proferido no processo n.º 131/08...., confirmado pelo Tribunal da Relação, o requerente foi condenado na pena de 6 (seis) anos de prisão pela prática de um crime de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro;

¾ Foi detido, para cumprimento de pena, no dia 6.1.2014, estando, então, o termo da pena previsto para 5.1.2020, conforme liquidação da pena efetuada no processo;

¾ Em 12.7.2017, cumprida metade da pena, foi-lhe concedida a liberdade condicional pelo Tribunal da Relação, pelo tempo da pena de prisão de 6 anos que lhe faltava cumprir – que era de 2 anos, 5 meses e 24 dias –, tendo sido, nessa data, colocado em liberdade;

¾ Durante o período de liberdade condicional (de 12.7.2017 a 5.1.2020), o requerente foi condenado, no processo n.º 72/18...., por sentença transitada em julgado em 2.2.2021, pela prática, em 6.9.2017, de um crime de denúncia caluniosa, na pena de 1 (um) ano de prisão, cujo cumprimento teve início em 19.4.2021;

¾ Foi ainda condenado por um crime de desobediência, também cometido durante o período de liberdade condicional, em 20.10.2017, no processo 167/18...., na pena de 3 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de um ano;

¾ Por virtude destas condenações, estando o requerente a cumprir a pena de 1 ano de prisão aplicada no processo n.º 72/18...., o Tribunal de Execução das Penas (TEP), por decisão de 20.7.2021, revogou a liberdade condicional e determinou a execução do remanescente da pena de 6 anos de prisão aplicada no processo n.º 131/08....;

¾ Em consequência da revogação da liberdade condicional, o requerente passou a ter que cumprir duas penas sucessivas: a pena de prisão de 1 ano (processo n.º 72/18....), que estava a cumprir, e 2 anos, 5 meses e 24 dias de prisão, correspondente ao tempo da pena de 6 anos aplicada no processo 131/08.... que faltava cumprir;

¾ Tendo em conta o disposto no artigo 63.º, n.º 1, do Código Penal, o TEP solicitou ao processo n.º 72/18.... que o desligamento e o ligamento ao processo n.º 131/08.... se reportasse à data de 19.10.2021 (data em que o requerente cumpriu metade da pena – seis meses – aplicada no processo n.º 72/18....);

¾ Em 11.10.2021, o juiz do processo n.º 72/18.... emitiu mandado de desligamento do processo n.º 72/18.... e de ligamento ao processo n.º 131/08...., com efeitos a 19.10.2021;

¾ A partir desta data (19.10.2021), o requerente passou a cumprir o remanescente da pena de prisão de 6 anos aplicada no processo 131/08.... – com a duração de 2 anos, 5 meses e 24 dias;

¾ Pelo que, conforme consta da liquidação efetuada pelo TEP, o termo desta pena está previsto para o dia 12.4.2024;

¾ Na liquidação da pena foi levado em conta o acórdão de fixação de jurisprudência 7/2019 do Supremo Tribunal de Justiça de 4.7.2019 (DR, 1.ª série, n.º 230, de 29.11.2019, p. 15ss), que fixou jurisprudência no sentido de que «Havendo lugar à execução sucessiva de várias penas pelo mesmo condenado, caso seja revogada a liberdade condicional de uma pena com fundamento na prática de um crime pelo qual o arguido foi condenado em pena de prisão, o arguido terá de cumprir o remanescente dessa pena por inteiro por força do disposto no art. 63.º, n.º 4, do CP, não podendo quanto a ela beneficiar de nova liberdade condicional».

13. Na petição da presente providência de habeas corpus, vem o arguido dizer, em síntese, que se encontra preso ilegalmente por a sentença ter sido “obtida irregularmente e ilegalmente onde não houve defesa”; que tem “lutado” pela revisão da sentença, mas “tem sido barrado pela advogada oficiosa bem como pela ordem dos advogados”; que “o tribunal sabe que o arguido não tem meio de pagar um advogado e que a mandatária oficiosa não faz, pelo que, por desespero, o próprio tem apresentado recurso de revisão e habeas corpus no intuito de reivindicar Justiça”; que lhe tem sido negada a substituição da defensora oficiosa, o que o tem levado a ser, ele próprio, a apresentar pedidos de habeas corpus e de revisão da sentença; que a Justiça, “em particular da Região, tem tendência de se encobrir/proteger uns aos outros, o mesmo acontece com a Ordem dos advogados que tudo tem feito para encobrir os crimes cometidos pelos seus associados, sendo o processo 131/08.... e o processo 72/18...., os mais flagrantes”; que tem sido “impedido tanto por parte da sua mandatária e dos E.P. ... [o processo] para poder identificar a apresentar todas as irregularidades, mentiras e falsificações existentes”. Pelo que, conclui, “espera ser notificado pelo STJ e permitido que preste declarações, com gravação, para mostrar todas as falsificações e ilegalidades que tem testemunhado na Justiça, onde é vítima de muitas delas”.

14. Relembrando o que anteriormente se esclareceu (supra, 9), a providência de habeas corpus não se destina a apreciar a validade e o mérito de decisões judiciais, a apurar se foram ou não observadas as disposições da lei do processo e se ocorreram ou não irregularidades ou nulidades resultantes da sua inobservância. Trata-se, em qualquer caso, de matérias para as quais se encontram legalmente previstos meios próprios de intervenção no processo, onde devem ser conhecidas, de acordo com o estabelecido nos artigos 118.º a 123.º do CPP e por via de recurso para os tribunais superiores (artigo 399.º e segs. do CPP).

Para além disso, não se destina também a providência de habeas corpus a espoletar qualquer mecanismo alternativo tendente à revisão de uma sentença condenatória, para o que está prevista a via de recurso extraordinário (artigos 449.º e segs, do CPP), à audição do requerente com esta ou outra finalidade processual, ou a averiguar ou conhecer de alegados abusos de poder, para o que estão previstos meios processuais próprios.

Assim sendo, dado que o requerente alega que a prisão é “ilegal”, cabe apenas verificar se se encontra preenchido qualquer dos fundamentos previstos no n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

15. Nos termos do n.º 1 do artigo 467.º do CPP, as decisões penais condenatórias transitadas em julgado têm força executiva em todo o território português, dispondo o artigo 478.º que os condenados em pena de prisão dão entrada no estabelecimento prisional por mandado do juiz competente, que é o do tribunal da condenação, para execução da pena aplicada (artigo 17.º do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade – CEPMPL), a qual corre nos próprios autos perante o presidente do tribunal de 1.ª instância em que o processo tiver corrido, sem prejuízo das competências do Tribunal de Execução das Penas (artigo 470.º do CPP).

Compete ao TEP conceder e revogar a liberdade condicional [artigo 138.º, n.º 4, al. c), CEPMPL].

A revogação da liberdade condicional determina a execução da pena principal ainda não cumprida (artigo 64.º, n.º 2, do Código Penal).

Nos termos do artigo 63.º, n.º 1, do Código Penal, havendo lugar à execução de várias penas de prisão, a execução da pena que deva ser cumprida em primeiro lugar é interrompida quando se mostrar cumprida metade da pena.

16. Verifica-se, como se viu, que o requerente cumpre atualmente, desde 19.10.2021, em consequência da revogação da liberdade condicional pelo Tribunal de Execução das Penas, o remanescente da pena de prisão de 6 anos aplicada no processo 131/08.... – com a duração de 2 anos, 5 meses e 24 dias –, cujo termo, devendo ser cumprido na sua totalidade (em conformidade com a jurisprudência fixada no acórdão n.º 7/2019 do Supremo Tribunal de Justiça de 4.7.2019, acima citado), está previsto para o dia 12.4.2024.

A colocação do requerente à ordem deste processo, por decisão do juiz, a partir de 19.10.2021, resultou, como se apurou, da circunstância de, nessa data, cumprida metade da pena de 1 (um) ano aplicada no processo n.º 72/18...., se ter interrompido a execução dessa pena, para efeitos de concessão de liberdade condicional, nos termos do n.º 1 do artigo 63.º do Código Penal.

17. Assim, tendo a privação da liberdade sido ordenada por ordem do juiz competente, para efeitos de cumprimento da pena de prisão, em conformidade com o disposto no artigo 27.º da Constituição e nos artigos 467.º, 470.º e 478.º do Código de Processo Penal, 63.º, n.º 1, e 64.º, n.º 2, do Código Penal e 138.º, n.º 4, al. c), do CEPMPL, não se mostra presente qualquer dos motivos de ilegalidade da prisão previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

Tendo o tempo de prisão que o requerente atualmente cumpre, a partir de 19.10.2021, a duração de 2 anos, 5 meses e 24 dias, a prisão mantém-se dentro do prazo fixado por decisão judicial, cujo termo ocorrerá em 12.4.2024.

Pelo que também não se verifica o motivo de ilegalidade previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

18. Nesta conformidade, deve concluir-se que o pedido carece manifestamente de fundamento, devendo ser indeferido [artigo 223.º, n.º 4, al. a), do CPP].

III. Decisão

19. Pelo exposto, deliberando nos termos dos n.ºs 3, 4, alínea a), e 6, do artigo 223.º do Código de Processo Penal (CPP), acordam os juízes da 3.ª Secção Criminal em indeferir o pedido, julgando a petição de habeas corpus manifestamente infundada.

Nos termos do artigo 223.º, n.º 6, do CPP, vai o peticionante condenado na soma de 6 (seis) UC.

Custas pelo peticionante, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, nos termos do artigo 8.º, n.º 9, e da Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.

Supremo Tribunal de Justiça, 11 de maio de 2022.

José Luís Lopes da Mota (relator)

Maria da Conceição Simão Gomes

Nuno António Gonçalves