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Jurisprudência
Sumário

Tendo o requerente da liquidação de sentença formulado um pedido incompatível com o âmbito de aplicação do art. 359.º, n.º l, do CPC, pode o tribunal conhecer do mérito da causa (decidindo sobre a não verificação dos pressupostos de aplicação do meio pretendido), nos termos do art. 278.º, n.º 3, in fine, do CPC, em vez de se limitar a absolver da instância.
Decisão Texto Integral


Processo n. 493/13.6TVPRT-E.P1.S1


Recorrente: AA


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO


1. AA apresentou incidente de liquidação de sentença, por apenso à ação declarativa que havia movido contra “Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S.A”.


Pretendia a liquidação do ponto V. da sentença, nos termos do qual a ré foi condenada: «a disponibilizar ao Autor habitação, com áreas e equipamentos adaptada a paraplégico, preferencialmente na área de residência anterior do Autor, se necessário a determinar em liquidação em execução de sentença».


Neste incidente, o autor pediu que a ré fosse «condenada na parte da sentença referente à obrigação de disponibilizar ao autor habitação com áreas e equipamentos adaptada a paraplégico, sendo esta a residência do A. desde 27 de setembro de 2021.».


2. Alegou que, após o trânsito em julgado da sentença, a ré não lhe disponibilizou qualquer habitação adaptada a paraplégico, pelo que o autor, com os valores que recebeu da ré respeitantes a outras condenações no processo, adquiriu um terreno na mesma área da sua anterior residência e construiu, nesse terreno, uma habitação com áreas e equipamentos adaptados a paraplégicos, tendo, assim, sido forçado a cumprir a obrigação que caberia à ré, e suportando os custos inerentes à escritura, impostos e registo, conforme documentos que juntou.


3. A ré-requerida deduziu oposição ao incidente arguindo a exceção dilatória da nulidade de todo o processo, por ineptidão do requerimento inicial, alegando, em síntese, que o incidente de liquidação tem por objeto a quantificação do dano, da perda ou custo que já se encontra demonstrado na ação declarativa, e não se destina a obter nova condenação, nada alegando o requerente sobre a forma como deve ser quantificada a obrigação ilíquida, não existindo pedido no incidente de liquidação, que não pode ser igual ou repetição da condenação genérica já proferida na ação.


O Requerente respondeu às exceções deduzidas, e solicitou o prosseguimento do incidente de liquidação.


4. De seguida, o tribunal proferiu o seguinte despacho:


«Ao abrigo do dever de gestão processual (art. 6.º do CPC), e uma vez que o tribunal tenciona conhecer imediatamente do mérito – inviabilidade – do pedido deduzido no incidente de liquidação, dado que se afigura que a condenação da ré (efetuada na sentença proferida), que o autor se propõe liquidar através do presente incidente, se reporta a uma obrigação de prestação de facto, faculta-se às partes o exercício de contraditório, por escrito (assim se evitando a deslocação para a realização de audiência prévia mas assegurando-se o cumprimento do disposto no art. 591.º, n.º 1, al. b), do CPC), a exercer no prazo de 10 dias, quanto a tal matéria.»


Após pronuncia das partes, foi proferida a seguinte decisão:


«Pelo exposto, nos termos dos arts. 358.º, 359.º, 360.º, n.º 3, 186.º, n.º 1 e n.º 2, al. b), 576.º, n.º 1 e n.º 2, 577.º, al. b), 578.º e 278.º, n.º 1, todos do Cód. Proc. Civil, conhecendo da ineptidão do requerimento de liquidação, gerador da nulidade de todo o processado, absolvo a ré da instância do presente incidente de liquidação»


5. Inconformado, o autor-requerente interpôs recurso de apelação, tendo o TRP proferido acórdão com o seguinte dispositivo:


«julgar improcedente o recurso e, ao abrigo do nº 3, do art. 278º, do CPC, julgam improcedente o pedido incidentalmente formulado, absolvendo a Requerida da pretensão deduzida no presente incidente de liquidação pós sentença


6. Ainda inconformado o apelante interpôs recurso de revista, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:


«1. Ao contrário do que vem proferido no douto Acórdão recorrido, a pretensão do Recorrente é a quantificação da obrigação ilíquida que resulta da decisão Judicial Condenatória proferida no Processo 493/13.6TVPRT, que correu termos pelo Juízo Central ... - Juiz ..., mais concretamente e como cristalinamente decorre do requerimento de liquidação em execução de sentença, é a condenação a que se refere o ponto V da mencionada decisão.


2. Desse ponto V da decisão dada à execução em liquidação consta: “Mais se condena a Ré a disponibilizar ao Autor habitação, com áreas e equipamentos adaptada a paraplégico, preferencialmente na área de residência anterior do Autor, se necessário a determinar em liquidação e execução de sentença.”


3. E da alínea c) dos considerandos constantes do acordo de liquidação antecipada outorgado entre Requerente e Requerida, consta: que os Outorgantes pretendem liquidar antecipada e integralmente o segmento III, parcialmente o segmento IV (apenas por referência à manutenção periódica do veículo já pago pela Segunda Outorgante ao Primeiro Outorgante da decisão) e parcialmente o segmento V (em face de não existir acordo definitivo dos outorgantes sobre este);


4. Falta, pois, liquidar totalmente o ponto V da predita decisão condenatória dado que não houve acordo definitivo dos outorgantes!


5. Por outro lado era do conhecimento da requerida que, o apartamento de que o Autor foi proprietário e localizado no 6° andar da Praceta ... em ..., não dispunha das mínimas condições nem de habitabilidade, nem sequer de adaptabilidade para a vida de um paraplégico. Isso mesmo ficou provado. E provado unanimemente em perícia colegial.


Sem prescindir


6. Sucede ainda que, durante os seus prolongados internamentos em diversos hospitais e centros de reabilitação, nomeadamente no Hospital de ..., no Hospital da ..., no Centro de Medicina de Reabilitação ... e no Centro de Medicina de Reabilitação da Região ... (Centro de Reabilitação ...), o recorrente, deixou de pagar o valor correspondente ao condomínio desse mesmo apartamento, tendo sido alvo de uma execução - Proc. n.e 224/14.3... que correu os seus termos na 1.- Secção de Execução da Instância Central do Tribunal Judicial da Comarca ... - (que apesar de nunca ter sido citado para a mesma), levou à venda do dito apartamento no processo executivo para maior desgraça do ora embargado, que se viu ainda obrigado a liquidar o que do crédito hipotecário referente ao predito imóvel restava.


7. Ou seja, o recorrente, além de ter ficado para toda a vida paraplégico, viu-se ainda subtraído da sua única habitação.


8. Como se referiu, a Recorrida apenas aceitou pagar parte do valor liquidado, tendo ficado absolutamente claro que o Recorrente não aceitaria apenas esse valor e que reclamaria em sede própria (como reclamou) o valor a que no seu entendimento tem efectivamete direito, direito esse consubstanciado no ponto V da sentença que consta do pedido como sendo a residência do A. desde 27 de Setembro de 2021 e cuja escritura com a “cristalina” quantificação, está junta aos autos como documento n.º 1.


9. É absolutamente extraordinário que se diga que não foi efetuada a quantificação, quando a mesma está documentada no requerimento inicial.


10. É também, por demais evidente que, “Mais se condena a Ré a disponibilizar ao Autor habitação com áreas e equipamentos adaptada a paraplégico...” só tem um significado: A Ré entregar ao autor uma habitação com as mencionadas características, o que esta jamais fez, apesar de por diversas vezes ter (através da sua Muito Ilustre Mandatária) sido para o facto devidamente alertada.


11. A sentença condenatória não condenou a Ré na adaptação da habitação! Condenou a Ré a disponibilizar ao Autor “habitação com áreas e equipamentos adaptada a paraplégico...”


12. O Recorrente, que vive hoje sozinho, já há muito tempo que tinha informado a Recorrida que iria dar início à construção da habitação adaptada, e fê-lo dado que como tinha perdido a sua única habitação (que também, como já supra se alegou, não lhe serviria por não ter condições de habitabilidade ou adaptabilidade capazes à sua desgraçada condição).


13. Sempre foi transparente, honesto, tudo facultando à Recorrida no que à construção da habitação adaptada diz respeito. Franqueando as portas da obra, enviando plantas, etc.


14. O Recorrente adquiriu a moradia que sinalizou (pelos motivos que se esclareceram no parêntesis supra) durante o decurso da acção declarativa, muito depois da prolação da sentença.


15. A sentença foi proferida em 30-11-2018 e o contrato de compra e venda da mencionada moradia foi apenas outorgado em 27 de Setembro de 2021, ou seja, quase três anos depois!


16. Durante estes três anos o Recorrente não cessou de “mendigar” da Requerida o pagamento que veio ele a suportar, sabendo muito bem esta última qual era o valor da moradia. O mesmo consta da escritura!


17. Recusando-se a ir mais além do que ao pagamento que efetuou na liquidação parcial, por entender, na sua cabeça, que não devia disponibilizar ao Autor habitação com áreas e equipamentos adaptada a paraplégico e, como parece óbvio, assumir o custo da aquisição, tal como foi lapidarmente condenada na parte da sentença que se liquida.


18. Os pagamentos efetuados pela Recorrida e referentes ao reembolso das despesas com alojamento necessárias e solicitadas pelo Recorrente eram, naturalmente, uma obrigação daquela.


Isto posto,


19. O comportamento da Recorrida quanto aos pagamentos devidos ao Recorrente está, cristalinamente, espelhado no processo cuja decisão condenatória agora parcialmente se pretende liquidar.


20. Foi sempre, sempre, necessário arrancar a ferros (várias Providências Cautelares) quaisquer quantias, mesmo aquelas em que foi a Recorrida foi condenada.


21. A obrigação da Recorrida em disponibilizar uma nova casa (com as características impostas pela decisão condenatória) para o Recorrente passou a ser evidente a partir:


i. Do resultado do relatório de peritagem colegial que consta dos autos e que é inequívoco quanto à impossibilidade do Recorrente continuar a viver na sua antiga casa;


ii. Do momento em que este ficou privado da propriedade que tinha anteriormente;


iii. E, finalmente da obrigação imposta pela condenação de a Recorrida disponibilizarão


Recorrente habitação, com áreas e equipamentos adaptada a paraplégico


22. Sendo, portanto, absolutamente falso que a Recorrida tenha custeado e pago ao Recorrente, em data anterior à interposição da presente liquidação, aquilo a que foi efectivamente condenada, a disponibilizar ao Recorrente: habitação, com áreas e equipamentos adaptada a paraplégico.


23. Não foi ao pagamento das adaptações que a Recorrida foi efetivamente condenada no ponto V da Decisão que se pretende ver liquidada.


24. Assim, é nosso entendimento, salvo o devido respeito, que deverão Vossas Excelências, ordenar o que estatuído vem no n.º 4 do artigo 360.º do Código de Processo Civil, a fim de se constatar o efetivo valor devido pela ré ao requerente, sempre levando em consideração o inominável incumprimento do que consta da sentença.


25. Assim, é nosso entendimento, salvo o devido respeito, que deverão Vossas Excelências ordenar o que estatuído vem no n.º 4 do artigo 360.º do Código de Processo Civil, a fim de se constatar o efetivo valor devido pela ré ao requerente, sempre levando em consideração o inominável incumprimento do que consta da sentença. Este é que é o pedido feito e que, com o devido respeito, ao contrário do entendimento manifestado no Douto Acórdão Recorrido em nada contraria a causa de pedir. Não se trata de tentar obter nova condenação, trata-se, isso sim, de confirmar a liquidação do quantum da condenação proferida.


26. Se o Recorrente não optasse por contruir a sua própria casa, adaptada à sua triste condição, ainda hoje esperaria (como ainda espera outras coisas) que a Recorrida se lembrasse de dar cumprimento à Sentença Condenatória, esta, no nosso entendimento (humilde, obviamente) clara e objectiva!


27. Dar razão a quem não cumpre (como in caso e salvo o devido respeito, nos parece) é participar numa armadilha que as seguradoras muito gostam e essa armadilha tem um nome: protelar injustificadamente o cumprimento daquilo a que ficou obrigada.


28. Pagou a viatura adaptada após a compra pelo recorrente da mesma e envio
da fatura recibo (também após uma luta desenfreada para que o cumprimento
do decidido, fosse, por parte da Recorrida, efetuado, como é que este pedido do Recorrente pode ser entendido como contrária à causa de pedir?)


29. O Acórdão Recorrido é que sofre de formalismo. Vejamos: Em rigor, permite o dever de gestão processual que o juiz, e na linha da filosofia subjacente ao C.P.C., assegure, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, pretendendo que o processo e a respectiva tramitação possam ter a maleabilidade necessária para que possa funcionar como um instrumento (e não como um obstáculo, como salvo o devido respeito parece decorrer do Acórdão recorrido), para alcançar a verdade material e a concretização do direito das partes.


30. Em suma, e agora socorrendo-nos de Madeira de Brito (O Novo Princípio da Adequação Formal, Aspectos do Novo Processo Civil, Lex pág. 36), vem o novo princípio da adequação formal romper com o regime apertado do princípio da legalidade das formas processuais, pois que, através dele, visa-se remover um obstáculo ao acesso à justiça em obediência à natureza instrumental da forma de processo: se a tramitação prevista na lei não se adequa ao fim do processo, então conferem-se os correspondentes poderes ao Juiz para adaptar a sequência processual às especificidades da causa. Parece-nos claro (como o devido respeito), muito claro! Há, in casu, um prejudicado (o Recorrente) e uma permanente e consciente prevaricadora, a Recorrida.


31. Só a Recorrida faltou, deliberadamente ao cumprimento daquilo que o Recorrente sempre lhe solicitou e, que consta da Sentença dada à liquidação. Sentença esta que, no que a este título diz respeito, a Recorrida fez tábua rasa: sempre.


Nestes termos e, nos demais de Direito que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, dando provimento ao presente recurso e, em consequência, revogando o Acórdão recorrido, farão, como sempre, inteira e sã justiça.»


7. A recorrida apresentou contra-alegações, que sintetizou nos seguintes termos:


«A. A sentença proferida em primeira instância é cristalina ao referir, expressamente, que “…Relativamente à habitação, embora o custo da mesma tenha sido relegado pelo Autor para execução de sentença, também se ressalva que a Ré não é obrigada a comprar ou custear uma nova casa para o Autor, pois que este não ficou privado da propriedade da que tinha anteriormente, apenas lhe é exigível que faculte ao Autor o uso e habitação de um imóvel (próprio ou arrendado) adaptada com os equipamentos necessários a ser habitada por um paraplégico.”


B. Por via do incidente de liquidação que constitui o objecto dos presentes autos, veio o Recorrente tentar, mais uma vez, ver satisfeito o seu plano de enriquecimento ilegítimo a expensas da Recorrida, fazendo, uma vez mais, tábua rasa da decisão em causa.


C. Conforme doutamente explicado na douta decisão recorrida, a sentença condenatória de primeira instância não condenou a Recorrida na adaptação da habitação, muito menos condenou a Recorrida a comprar um imóvel ou a custeá-lo para o Recorrente, meramente resultando a obrigação de lhe “disponibilizar” um, de lhe facultar um para que o mesmo aí possa habitar durante a sua vida.


D. As instâncias recorridas já deixaram muito claro que ao Recorrente não assiste tal direito.


E. Nenhuma liquidação de obrigação genérica vem efetuada no incidente, bem resultando a ineptidão do requerimento de liquidação por nenhuma condenação genérica, estando o pedido em contradição com a pretensa causa de pedir, pelo que sempre tinha a Recorrida de ser absolvida da instância relativamente àquela pretensão.


F. O Recorrente no recurso doutamente decidido pelo douto acórdão recorrido, apresentou suscitou nova questão, concretamente, a da competência do Tribunal para execução da sentença, questão essa cujo conhecimento resulta, desde logo, prejudicado pela constatação de não estarmos perante ação executiva e, para além disso, se tratar de questão não suscitada em primeira instância e não objeto de recurso.


G. Doutrina e a jurisprudência, são unanimes em afirmar que o recurso é o meio para obter o reexame das questões já submetidas à apreciação do tribunal inferior e não para criar decisão sobre matéria nova, que lhe não foi submetida.


H. Por fim, bem andou o Tribunal a quo em julgar da inviabilidade do mérito da pretensão formulada no incidente de liquidação em causa nos autos.


I. O Artigo 278.º, n.º 3 consagra o princípio da prevalência da decisão de mérito, pressupondo distinção entre pressupostos processuais dispensáveis e não dispensáveis, de modo que, a não se encontrar preenchido um pressuposto processual destinado a proteger interesses das partes, importa verificar se o conhecimento de mérito pode ser favorável à parte que seria beneficiada com a proteção que resultaria do preenchimento do pressuposto e, em caso afirmativo, a decisão que prevalece, a proferir, é a de mérito, sendo esta a situação dos autos.


J. Se, apesar da ineptidão da petição inicial se verificar manifesta inviabilidade da pretensão formulada, visando aquela exceção dilatória tutelar interesses do sujeito passivo que sai beneficiado com uma decisão de absolvição do pedido, na medida em que impedirá a repetição da causa por força do caso julgado, prevalente sendo a substância sobre a forma, cabe proferir decisão de fundo.


K. Assim, verificando-se ineptidão do requerimento inicial, nos termos do disposto Artigo 186º, n.º 1, al. b), do CPC, tal acarretaria nulidade de todo o processo, exceção dilatória a obstar ao conhecimento do mérito da causa e a dar lugar à absolvição do sujeito passivo da instância, nos termos da al. b), do nº1, do art. 278º, nº2, do art. 576º e da al. b), do art. 577º, todos do CPC.


L. Porém, como exemplarmente discorrido no douto acórdão recorrido, a pretensão do Recorrente é manifestamente inviável, o que resulta patente do confronto do pedido com a causa de pedir, não tendo o Recorrente o direito que se presentou a exercer.


M. Na esteira do que vem dito, bem andou o Tribunal a quo em julgar manifestamente inviável a pretensão formulada no incidente de improceder, decisão esta que se espera seja mantida e sustentada por V. Exas., com o que farão a costumada justiça.»


*


II. ADMISSIBILIDADE DO RECURSO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS


1. Admissibilidade e objeto do recurso


Embora se esteja perante um incidente da instância, no presente caso seguem-se os termos do processo comum declarativo, por aplicação do art.360º, n.3 do CPC.


O acórdão recorrido confirmou o sentido da sentença, enquanto decisão desfavorável ao requerente, reconhecendo a existência de uma exceção dilatória que conduziu à absolvição da instância; mas foi mais longe, ao decidir pela prevalência do mérito, nos termos do art. 278º, n.3 do CPC, julgando o pedido improcedente, pelo que se pode concluir ter existido uma fundamentação diferente nas duas decisões. Logo, não se verifica o obstáculo da dupla conforme (previsto no art.671º, n.3), pelo que o recurso é admissível nos termos do art.671º, n.1 do CPC.


Pelas conclusões das alegações do recorrente, que delimitam o objeto do recurso (nos termos do art.635º, n.4 do CPC), constata-se que (apesar da vaguidade dessas conclusões) o objeto da revista corresponde à questão de saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação do direito ao absolver a requerida da pretensão contra ela deduzida, em vez de determinar a continuação do processo para liquidação dos valores pretendidos pelo requerente.


2. A factualidade provada


Pela limitação do objeto do presente recurso, a factualidade relevante para a decisão de direito é aquela que já consta do relatório supra apresentado.


3. O direito aplicável


3.1. Nas conclusões das suas alegações o recorrente não procede, em rigor, ao rebatimento da fundamentação do acórdão recorrido, ou seja, não apresenta argumentos técnicos destinados a demonstrar em que medida essa decisão teria feito errada aplicação do direito, particularmente da lei de processo.


O recorrente limita-se a reiterar a sua pretensão no sentido de que está em causa a quantificação de uma obrigação ilíquida correspondente à condenação constante do ponto V. da sentença proferida no proc. n. 493/13.6TVPRT.


Decidiu-se nesse ponto da sentença que a ré devia: «disponibilizar ao Autor habitação, com áreas e equipamentos adaptada a paraplégico, preferencialmente na área de residência anterior do Autor, se necessário a determinar em liquidação em execução de sentença».


Como consta do relatório supra, dado que, após o transito em julgado da sentença, a ré não cumpriu a condenação constante do referido ponto V, o réu adquiriu um terreno e construiu uma casa com áreas e equipamentos adaptados a paraplégico, na qual passou a viver. Alegando que foi forçado a cumprir a obrigação que caberia à ré, o autor apresentou o incidente para liquidação de sentença pedindo que a ré fosse: «condenada na parte da sentença referente à obrigação de disponibilizar ao autor habitação com áreas e equipamentos adaptada a paraplégico, sendo esta a residência do A. desde 27 de setembro de 2021.».


3.2. As instâncias entenderam que o pedido formulado, dada a sua inadequação face à causa de pedir, não era comportável no âmbito do incidente de liquidação, e concluíram, embora com fundamentação diferente, que esse incidente não poderia continuar.


Efetivamente, tal como regulado nos artigos 358º, n.2 e 359º do CPC, o incidente de liquidação não é aplicável ao caso concreto, atenta a especificidade do pedido formulado.


Estabelece o n.1 do art.359º do CPC que «A liquidação é deduzida mediante requerimento no qual o autor, conforme os casos, relaciona os objetos compreendidos na universalidade, com as indicações necessárias para se identificarem, ou especifica os danos derivados do facto ilícito e conclui pedindo quantia certa


A primeira instância, entendendo existir contradição entre o pedido e a causa de pedir, gerador da nulidade de todo o processado [nos termos do art.186º, n.2, alínea b) do CPC], conclui pela ineptidão do requerimento de liquidação, e decidiu, nos termos do art.278º, n.1 do CPC, absolver a ré da instância.


Dado que tal solução não impediria o autor de voltar a formular idêntica pretensão, a segunda instância foi mais longe e aplicou a solução prevista no n.3, in fine, do art.278º, entendendo que, apesar de subsistir uma exceção dilatória, era possível conhecer logo do mérito da causa, assim decidindo definitivamente (porque se forma caso julgado) que a figura da liquidação de sentença não pode ter aplicação ao caso concreto face ao tipo de pretensão formulada pelo requerente.


E decidiu corretamente, pois (para além da questão da contradição entre o pedido e a causa de pedir) preenchem-se os requisitos dos quais depende a aplicação da solução prevista na parte final do n.3 do art.278º do CPC, estando em causa apenas a equação de interesses das partes, e não de interesses de natureza geral.


Como afirmam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa (em anotação ao art.278º do CPC): «O n.º 3 constitui expressão evidente da prevalência do direito material, preconizando que a persistência de uma exceção dilatória não obsta à prolação de uma decisão de mérito desde que: a função desse pressuposto processual seja apenas a de tutela dos interesses da parte e não a defesa do interesse público na boa administração da justiça; o juiz esteja em condições de proferir decisão de mérito de imediato, sendo desnecessária a realização de outros atos processuais; a decisão de mérito a proferir seja integralmente favorável à parte que seria beneficiada com o preenchimento do pressuposto em falta (…)»1.


3.3. Não está em causa, neste recurso, qualquer julgamento sobre o direito que no ponto V. da sentença foi reconhecido ao autor. O que se trata de ajuizar é da adequação da via processual invocada para materializar o pedido formulado pelo autor-requerente face ao fundamento desse pedido.


O recorrente não tem razão quando afirma (nomeadamente no ponto n.27 das suas conclusões) que o acórdão recorrido dá razão a quem não cumpre e que esse acórdão sofre de formalismo (nomeadamente no ponto n.29 das conclusões).


Não cabe, obviamente, ao tribunal indicar às partes as estratégias processuais que devem seguir. Cabe, apenas, apreciar se a aplicação do concreto meio processual pretendido pelo requerente é, ou não, adequada à realização do pedido formulado.


As pretensões que as partes formulam em juízo têm de seguir os caminhos processuais que o legislador lhe traça. Os requerentes não podem dirigir-se ao tribunal usando vias processuais inadequadas para as pretensões formuladas e esperar que, em todo e qualquer caso, seja o tribunal a dizer-lhes como devem atuar. Tal não é uma questão de formalismo. É uma matéria de ordenação normativamente eficiente dos meios que o legislador põe à disposição dos utilizadores do sistema de justiça.


Em resumo, conclui-se que o acórdão recorrido não merece censura, pois fez a correta aplicação do direito ao caso concreto.


DECISÃO: Pelo exposto, julga-se a revista improcedente e confirma-se o acórdão recorrido.


Custas pelo recorrente (sem prejuízo do apoio judiciário de que possa beneficiar).


Lisboa, 13.09.2023


Maria Olinda Garcia (Relatora)


Graça Amaral


Luís Espírito Santo


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1. Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, páginas 324 e 325.↩︎