Sumário
I. O âmbito objectivo do caso julgado delimita-se pela consideração conjunta dos sujeitos, pedido e causa de pedir formulados.
II. Em acção posterior que decorra entre as mesmas partes, o caso julgado preclude a alegação, pelo réu, de excepções que poderiam ter sido alegadas na primeira acção, em virtude do princípio da concentração da defesa e, pelo autor, de factos que possam ser reconduzidos à(s) causa(s) de pedir ali invocada(s), em virtude do ónus de alegação na petição inicial, desde que, em ambos os casos, possa vir a ser posta em causa a função da excepção de caso julgado : evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contrariar ou repetir a decisão anterior.
III. Uma vez decidida uma questão com força de caso julgado, não mais pode a mesma voltar a ser apreciada em acção posterior, quer surja a título principal, caso em que funcionará a excepção de caso julgado, quer surja a título prejudicial ou seja suscitada pelo réu, casos em que a força e autoridade do caso julgado obrigará a ter essa mesma questão como assente.
IV. A diferença teórica entre uma acção de reivindicação e uma acção de demarcação que corram sucessivamente entre as mesmas partes não é decisiva para saber se há ou não violação de caso julgado, embora deva estar presente no entendimento dos pedidos e das causas de pedir formulados, bem como das decisões proferidas nas duas acções em confronto.
V. Decisivo é apurar se o julgamento da segunda acção implica o risco de contradição prática, não meramente teórica, da decisão tomada na primeira.
VI. Por muito que o autor identifique com precisão a linha que entende dever ser considerada como demarcação, um pedido de demarcação implica a possibilidade de vir a ser efectuada de forma não coincidente com a que tiver sido definida pelo autor e, nomeadamente, dividindo-se o terreno em litígio por partes iguais.
VII. A causa de pedir da acção de demarcação é complexa, composta pela alegação de existirem prédios confinantes, de o autor ser proprietário de um deles e de haver incerteza quanto à delimitação recíproca.
VIII. Não é requisito de procedência de uma acção de demarcação a prova de uma posse suficiente (isto é, com a duração e as características) para fundamentar a aquisição por usucapião.
Decisão Texto Integral
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:
1. AA e mulher, BB propuseram contra Oceanlight, S.A., uma acção na qual pediram a sua condenação
«– A) A concorrer para a demarcação das estremas entre o prédio dos AA. e os prédios contíguos da Ré;
– B) A reconhecer e ver declarado que essa demarcação deverá ser feita pela linha divisória, traçada a cor vermelha, entre os mencionados prédios contíguos ou confinantes, de Autores e Ré, nas confrontações norte e poente (na perspetiva dos AA.) e sul e nascente (na perspetiva da R.) definida na planta topográfica, à escala 1/500, já junta por certidão como doc. n,º 20, e conforme foi decidido pelo douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 17-01-2021, transitado em julgado;
– C) A pagar as custas processuais.»
Para o efeito, e em síntese, alegaram ser proprietários de um prédio rústico confinante com prédios da ré; que a ré tem vindo a ocupar, por diversas formas, uma faixa de terreno de que são proprietários, seja por compra judicial, seja por usucapião; que autores e ré estão em desacordo sobre a delimitação recíproca dos prédios de que são proprietários.
Alegou ainda que “viram-se já na necessidade de instaurar contra as duas sociedades comerciais anteproprietárias, (…) a ação de processo comum e na forma ordinária n.º 2040/07.0..., do extinto 1.º Juízo Cível do extinto Tribunal Judicial da Comarca de Paços de Ferreira, pedindo a condenação destas a reconhecer que a parcela de terreno pertencente aos AA. possui a área de 11.247 m2, bem como a procederem à demolição das construções que ocupam o limite desse prédio, bem como à cessação da passagem através da faixa de terreno do mesmo que confina com os muros de vedação daquelas – atualmente da ora Ré -, com a execução do tapamento total destes muros nos pontos de confrontação direta com os AA., conforme certidão judicial que se junta e aqui se dá como reproduzida e integrada (Doc. n.º 19), E através do douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 17-01-2012, transitado em julgado em 08-02-2012, foram as ali RR. condenadas nos aludidos pedidos formulados pelos AA. (ut doc. n.º 19 já junto).”
A ré contestou, por impugnação e por excepção. Por entre o mais, negou que se verificasse «qualquer efeito de caso julgado do processo 2040/07.0... em relação aos presentes autos, tal como não houve em relação ao seu “processo irmão” 839/19.3...»; mas afirmou que ocorria a excepção de caso julgado, ou, e se assim se não entender, de autoridade de caso julgado, relativamente à “determinação da estrema no ribeiro público, à improcedência da posse dos AA. sobre a referida faixa de terreno e à inexistência de qualquer caminho público”, com fundamento “na decisão proferida no âmbito do processo 839/19.3...”; e que, pelo menos, “sempre teria o tribunal de dar como assente a decisão e os factos provados e não provados em sede da decisão transitada em julgado nos autos do 839/19.3... aquando da aferição dos critérios estabelecidos no artigo 1354º do Código Civil.”
Concluiu a contestação requerendo que se decidisse
a) Julgar provada e procedente a excepção de caso julgado da decisão do processo 839/19.3... que obsta à apreciação do mérito da presente acção por repetição da presente causa;
b) Se assim não se entender”, que se decrete “por efeito da autoridade do caso julgado da decisão do processo 839/19.3... como provados os factos aí dados por assentes designadamente as demarcações constantes dos títulos e demais documentação e decisões judiciais (nomeadamente a confrontação dos prédios dos AA e R no ribeiro público), bem como a improcedência da posse alegada pelos AA sobre a especifica faixa de terreno em discussão e a inexistência de qualquer caminho público;
c) Em todo o caso”, que se julgasse “não provada e improcedente a presente acção, reconhecendo a limitação dos prédios dos AA e R no ribeiro público e por via disso absolver a R. do pedido.”
A acção veio a ser decidida no despacho saneador, que julgou “verificada a excepção do caso julgado formado pela decisão proferida nos autos sob o n.º 839/19.3... correram termos neste Juízo Central Cível de P....... (J2)” e absolveu a ré da instância.
Em breve síntese, o Tribunal entendeu que
«A improcedência da precedente acção de reivindicação fundada na não demonstração pelos ali e ora AA do “conteúdo do seu direito de propriedade sobre o prédio” impede já esta subsequente tentativa, mediante nova ação judicial, de delimitação/quantificação da “extensão” do prédio, mediante acção de demarcação.
Sendo certa a diversa natureza e finalidade – mormente por reporte ao objeto substantivo, às questões a tratar e aos objetivos a atingir – da ação de reivindicação e da ação de demarcação, também é claro que esta acção repete o “conflito” anterior, quanto à extensão do direito de propriedade dos AA sobre a concreta parcela cujo direito se lhes não reconheceu na acção pretérita.
Quer dizer, nessa anterior acção, como agora, quando se considere a causa de pedir, está essencialmente em causa a divergência sobre a propriedade de uma faixa de terreno, agora a pretexto de um litígio sobre as estremas, que se vislumbra não o ser, tal a coincidência entre a área reivindicada e aquela quanto à qual se pretende a demarcação…
Evidente ou manifesto é que a decisão desta ação de demarcação colidiria com o já decidido na anterior ação (seja por contradição ou mera repetição face ao sentido decisório firmado), em que a decisão respetiva transitou em julgado (risco de dupla decisão judicial sobre um mesmo objeto processual).
Inviável, pois, a pretensão de nova reapreciação da matéria já alegada e indemonstrada na acção anterior nesta acção judicial, a pretexto agora de uma indefinição de estremas (que se alcança da causa de pedir ser antes uma pretensão de reapreciação da integração da parcela reivindicada no imóvel cuja propriedade foi já reconhecida aos AA), sendo que, por interpretação, o pedido de demarcação vai referido ao preciso e exacto efeito útil já visado com a acção anterior.
Há caso julgado quando a ação de demarcação seja intentada depois de perdida uma ação de reivindicação, com o mesmo objetivo de obter para o autor a restituição da mesma parcela de terreno cuja posse tinha anteriormente reivindicado.
Em causa, manifesta e indisfarçadamente, o propósito de obter o reconhecimento da propriedade através do instituto da acção de demarcação. É o que mais se infere da invocação pelos AA de uma da linha de demarcação e dos termos concretos desta (quando é sabido que o instituto da acção de demarcação pressupõe a própria inexistência de demarcação em si…).
Pese embora a formulação hábil do pedido, o que os AA reclamam vem a ser a delimitação como sua de uma parcela de terreno bem definida, escondendo o objecto de uma verdadeira reivindicação, precisamente aquela que improcedeu já, julgada neste Juízo e transitada.
Os AA. invocam os seus títulos de aquisição do prédio confinante com o da Ré e, fundando-se neles, como nos exactos e mesmíssimos factos correspondentes à posse em termos de um direito de propriedade por lapso de tempo contínuo, traçam uma linha divisória precisa, definindo claramente as estremas, reconduzindo-se à integração no seu imóvel da exacta e mesmíssima parcela cuja reivindicação soçobrou nos autos que correram termos sob o n.º 839/19.3...…
Nessa parte, [que não já na inferência de que a decisão absolutória corresponde a uma qualquer declaração do contrário da alegação dos AA e por isso que a linha divisória entre os imóveis o é a do regato…, uma vez que não é evidentemente essa a afirmação da sentença absolutória], assiste razão à Ré.
Concluindo, a excepção de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em ação anterior, com objeto parcialmente coincidente face ao da ação posterior, visando evitar que a relação ou situação jurídica material definida pela sentença anterior seja definida de modo diverso por outra sentença, não se exigindo a completa identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir.»
Este saneador-sentença veio a ser revogado pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto, que, consequentemente, determinou o prosseguimento do processo.
Em síntese, a Relação considerou que a “questão fulcral” a decidir era a de saber se, não obstante «a diferença entre o pedido e a causa de pedir nas acções de reivindicação, ou seja, a acção que correu termos sob o n.º 839/19.3... – que é pacificamente aceite como uma típica acção de reivindicação – e a presente acção de demarcação,» «como, aliás, também se reconhece na decisão recorrida» se verificava ou não a excepção de caso julgado, como decidira a 1.ª instância, entendendo que, “«apesar de tais diferenças, o objecto do actual litígio, segundo o sustentado pela 1ª instância, é, ainda que de forma ínvia, o mesmo objecto do anterior litígio que já correu entre as mesmas partes, objecto este que atina com a arrogada propriedade sobre a parcela de terreno de 1. 850 m² ora em causa e com a sua integração no prédio dos Autores (segundo a linha divisória ou estrema invocada pelos mesmos), sendo certo que na sentença proferida naquela acção 839/19.3..., transitada em julgado, aquele direito de propriedade sobre tal faixa de terreno não foi reconhecido aos mesmos Autores.»
Ora, entendeu ainda o acórdão recorrido, «1ª A causa de pedir e o pedido formulado nas duas acções são distintos, não se podendo, com o devido respeito, sustentar que a presente acção é a repetição da prévia acção de revindicação que correu termos sob o n.º 839/19.3...; 2ª Por conseguinte, inexistindo a tríplice identidade, no caso, ao nível da causa de pedir e dos pedidos formulados nas duas acções, não é defensável que ocorra a excepção de caso julgado, conforme se decidiu no acto decisório ora sob recurso».
2. Oceanlight, S.A, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos conjugados do disposto no n.º 1 do artigo 671.º e das als. a) e d) do n.º 2 do artigo 629.º do Código de Processo Civil. Nas alegações que apresentou, formulou as seguintes conclusões:
«I. O presente recurso vem interposto da decisão do venerando Tribunal da Relação do Porto que decidiu “conceder provimento ao recurso de apelação e, em consequência, revogar o despacho que declarou procedente a excepção de caso julgado e absolveu a Ré da instância, devendo, ao invés, os autos prosseguirem os seus ulteriores termos.”, baseando-se nas seguintes conclusões: “inexistindo a tríplice identidade, no caso, ao nível da causa de pedir e dos pedidos formulados nas duas acções, (…). Neste sentido, a excepção de caso julgado, na sua vertente negativa, supõe a repetição em ambos o processos do mesmo objecto do litígio (definido pela trípliceidentidade)(…). Também não se pode sustentar, com o devido respeito, que ocorra, no caso dos autos, ao contrário do que sustenta a Ré/Recorrida excepção de autoridade de caso julgado, pois que, conforme acima se expôs, a vertente positiva do caso julgado supõe que a anterior acção e a decisão judicial nela proferida se configure como dependente ou prejudicial à decisão de mérito do objecto distinto na acção subsequente.”
II. Tal decisão desconsidera a mais elementar lógica jurídica, adoptando uma interpretação meramente formalista do caso julgado, ferindo os valores da certeza, da segurança jurídica e das decisões judiciais, assim contribuindo para a descredibilização dos tribunais e a justiça;
III. A presente “acção de demarcação” é uma réplica da acção de reivindicação já decidida que correu termos no juízo central de .... sob número de processo 839/19.3...;
IV. Nessa acção, os Recorridos não lograram “que a 2º R. fosse condenada a reconhecer o direito de propriedade dos AA. e cessar a ocupação do prédio dos AA., na área de 1.850 m2, junto à confrontação norte desse prédio sita além do ribeiro público” pelo que está vedado a qualquer tribunal, por força do caso julgado, conhecer qualquer pedido (seja qual fora sua forma jurídica) que implique o reconhecimento do direito de propriedade dessa mesma parcela de terreno;
V. Os recorridos propuseram a presente “acção de demarcação”, alegando que existe divergência e desacordo quanto a definição da linha que separa os prédios, o que é absolutamente irrisório tendo em conta a precisão com que os próprios Recorridos identificam a “linha a cor vermelho” que delimita a mesma faixa que estava em discussão no processo 839/19.3...;
VI. Ao afirmar que: “A acção de reivindicação é uma acção real, ao passo que a acção de demarcação é uma acção pessoal, prosseguindo ambas objectivos (…), não se podendo, com o devido respeito, sustentar que a presente acção é a repetição da prévia a acção de revindicação que correu termos sob o n.º 839/19.3...;” a veneranda Relação do Porto bastou-se com uma análise meramente formalista dos pressupostos legais da reivindicação, da demarcação e do instituto do caso julgado;
VII. O Acórdão ora recorrido desconsidera as especificidades do caso concreto, na medida em que o pedido de demarcação dos aqui Recorridos (da mesma faixa de terreno em discussão no processo 839/19.3...) redunda no preciso eexacto efeito útil já visado nessa acção anterior;
VIII. Ao contrário do alegado pela veneranda Relação existindo a tríplice identidade ao nível da causa de pedir e dos pedidos formulados nas duas acções, desde logo porque a “linha a cor vermelha” que os Recorridos pretendem ver “reconhecida como estrema”, corresponde exactamente à faixa de terreno que pretendiam ver reconhecida na anterior acção 839/19.3...;
IX. Depois de terem perdido a referida acção de reivindicação, os Recorridos intentam uma “nova acção”, agora de “demarcação”, na qual, a pretexto de definir confrontações pretendem que lhe seja reconhecida a propriedade dessa mesma parcela de terreno;
X. A eficácia do caso julgado compreende a dupla função de evitar não só a “repetição de uma causa”, mas também “evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.”;
XI. Há total identidade do efeito jurídico útil que se pretende obter, no que respeita aos pedidos e causa de pedir;
XII. A verdadeira pretensão dos Recorridos é, apenas (ainda que dissimuladamente), o reconhecimento da propriedade sobre a faixa de terreno sita além do ribeiro público na confrontação norte do regato;
XIII. Pese embora os pedidos de reivindicação e o de demarcação se fundem, em teoria, em institutos jurídicos distintos a verdade é que, com a presente acção, os Recorridos pretendem habilmente obter o exacto efeito jurídico útil da acção 839/19.3..., designadamente ver reconhecida a alegada propriedade sobre a faixa de terreno junto à estrema norte dos terrenos para além do ribeiro público até à linha que agora apelidam de “linha a cor vermelha”;
XIV. A identidade é translúcida, constituindo a presente acção de demarcação apenas um meio hábil de obter o reconhecimento da propriedade sobre a parcela de terreno, aliás, muito bem definida, cujo reconhecimento se negou nos autos do processo 839/19.3...;
XV. Os Recorridos procuram moldar as normas aos seus interesses e, assim, evitarem os efeitos do caso julgado da decisão do processo 839/19.3... que lhes foi manifestamente improcedente;
XVI. Existem, de facto, em abstracto, diferenças entre os pedidos e as causas de pedir das acções de reivindicação e de demarcação, no entanto, quando esta última apenas pretenda habilmente furtar-se ao caso julgado da primeira, visando parcela de terreno bem definida, alvo dessa decisão prévia, na verdade estaremos perante pedidos e causas de pedir idênticas determinando a aplicabilidade da excepção de caso julgado;
XVII. Há ofensa do caso julgado quando a acção de demarcação seja intentada depois de perdida uma acção de reivindicação, com o mesmo objectivo de obter para o autor a “demarcação”/restituição mesma parcela de terreno cuja posse tinha anteriormente reivindicado;
XVIII. O instituto da acção de demarcação visa, não a invocação de uma linha de demarcação (como fazem os Recorrentes), mas antes a própria inexistência de demarcação em si, não existindo, in caso, qualquer dúvida na demarcação dos prédios em causa nos autos;
XIX. O que os Recorridos reclamam é a “demarcação” como sua de uma parcela de terreno muito bem definida (correspondente à faixa previamente por si reivindicada), escondendo o objecto de uma verdadeira reivindicação, precisamente aquela que já lhes improcedeu em absoluto;
XX. Razão pela qual, nunca poderia o venerando tribunal da Relação entender a acção n.º 839/19.3... não prejudica, nem exclui, que os aqui Recorridos possam vir a demonstrar nestes autos, por algum dos meios de prova, incluindo a posse que a linha divisória dos prédios deve ser a que os mesmos advogam;
XXI. E tampouco se compreende a lógica da veneranda Relação ao afirmar que não existe relação de prejudicialidade, sequer para efeitos de autoridade do caso julgado quando a “demarcação” pela “linha a cor vermelha” agora invocada pelos Recorridos corresponde palmo por palmo à faixa de terreno que reivindicaram no processo 839/19.3...;
XXII. O efeito jurídico útil de ambas as acções, redunda, inevitavelmente, no reconhecimento da propriedade dos Recorridos sobre essa mesma faixa de terreno;
XXIII. Para efeitos de ofensa da eficácia do caso julgado, (seja como excepção, seja como autoridade) é notório que, quando a demarcação é intentada como meio de obter o reconhecimento da mesma faixa de terreno anteriormente alvo de acção de reivindicação, existe não só prejudicialidade entre ambas as acções, como também evidente identidade de pedido e causa de pedir, padecendo o Acórdão recorrido de erro na apreciação dos pressupostos legais da aplicação da eficácia do caso julgado do processo 839/19.3... aos presentes autos;
NESTES TERMOS e nos mais de direito, deve o presente Recurso merecer total provimento e, consequentemente, ser revogado o Acórdão Recorrido, e substituída a decisão por outra que mantenha a sentença de primeira instância, assim fazendo Justiça, como, aliás, é hábito de V. Exas.»
Os autores contra-alegaram, concluindo as sus alegações nestes termos:
«1ª- Questão prévia da inadmissibilidade do recurso de revista (Art. 638º NCPC):
O recurso de revista interposto pela Ré/Apelada deverá ser rejeitado, por ser processualmente inadmissível;
SEM PRESCINDIR, E SOMENTE POR MERA CAUTELA:
2ª- De toda a maneira, mesmo que a revista fosse de admitir – o que não se aceita e apenas como mera hipótese académica ou de raciocínio se coloca –, sempre não assistiria qualquer razão à recorrente;
3ª- “Ao invés, na acção de demarcação (…), o que se visa é somente a definição da linha divisória entre os seus prédios (através de sinais físicos – marcos), naturalmente no pressuposto que os mesmos são confinantes entre si e que é duvidosa a respectiva estrema.” (ut douto Ac. recorrido, pág. 19 ibidem);
4ª- “(…) os pedidos em ambas as acções são distintos, fruto da natureza pessoal ou real de cada uma e dos fins visados numa e noutra acção” (pág. 20 ibidem);
5ª- E também são, segundo temos por pacífico, distintas as respectivas causas de pedir, enquanto o conjunto de factos essenciais à individualização da situação jurídica alegada pela parte para fundamentar a sua pretensão.” (pág. 20 ibidem);
6ª- A presente acção, em função da causa de pedir e dos pedidos formulados a final, é, segundo julgamos, uma acção de demarcação entre prédios.” (pág. 20 ibidem);
7ª- A demarcação peticionada depende, assim, como acima se referiu, da existência de dois prédios distintos (dos Autores e da Ré), da circunstância de os mesmos serem confinantes entre si (a norte e a poente) – artigo 1353º, do Cód. Civil –, sendo que, demonstrados aqueles pressupostos, em termos de mérito da causa, a definição da linha divisória deve obedecer ao previsto nos títulos que cada proprietário apresente, na falta destes, à posse em que estejam os confinantes ou o que resultar de outros meios de prova, sendo certo, ainda, que se não for viável a resolução da questão através desses meios de prova, a demarcação entre os prédios confinantes faz-se através da divisão da parte em disputa em partes iguais – artigo 1354º, do Cód. Civil;
8ª- “Por seu turno, a anterior acção que correu entre as partes sob o nº 839/19.3... apresenta-se como uma típica acção de reivindicação.”
9ª- “Também não se pode sustentar, com o devido respeito, que ocorra, no caso dos autos, ao contrário do que sustenta a Ré/Recorrida, excepção de autoridade de caso julgado, pois que(…), a vertente positivado caso julgado supõe que a anterior acção e a decisão judicial nela proferida se configure como dependente ou prejudicial à decisão de mérito doobjecto distinto na acção subsequente.
Ora, nesta outra matéria, a circunstância de na acção nº 839/19.3... não se ter reconhecido a aquisição originária por parte dos Autores da parcela de terreno de 1850 m2 e, logicamente, não se ter reconhecido o direito de propriedade sobre a mesma, não prejudica, nem exclui, em nosso ver, que possam os Autores vir a lograr demonstrar nestes autos, por algum dos meios de prova previstos no citado artigo 1354º, incluindo a posse (mesmo não sendo ela bastante para a aquisição originária, (…), que a linha divisória dos prédios em causa, ou seja, a respectiva estrema (…), deve ser a que os mesmos aqui advogam, ou seja, a linha assinalada a vermelho na planta topográfica junta pelos mesmos”. (págs. 30/32 ibidem);
10ª- “(…). O que está em causa nestes autos de demarcação é saber, em termos diversos, admitindo que os prédios de Autores e Ré são confinantes, qual a sua linha divisória e, em particular, se a mesma deve ser implantada sob alinha assinalada avermelho na dita planta topográfica, questão esta que não é, directa ou indirectamente, atingida pela sentença proferida naquela acção”. (pág. 20 ibidem);
11ª- “O que naquela prévia acção se definiu em termos definitivos foi, apenas e só, que os Autores não adquiriram, por usucapião, aquela parcela de terreno e, por isso, não foram ali declarados/reconhecidos como seus proprietários. Nada mais.
A questão que ora se debate neste autos é outra, qual seja, saber qual a linha de estrema entre os dois prédios, de Autores e Ré, admitindo-se, na fase dos autos prévia à instrução e julgamento, a alegação dos Autores de que os mesmos prédios são confinantes a norte e a poente e que as respectivas estremas são controversas.” (pág. 32 ibidem)
12ª-Ex abundanti, refira-se que é incorreta e descabida a alegação de que as confrontações entre os dois prédios confinantes “não estão minimamente em dúvida” e que os recorridos “pretendem que lhe(s) seja reconhecida a propriedade DESSA MESMÍSSIMA PARCELA DE TERRENO” (cfr. nºs 27. e 52. e conclusões IX e XII a XVII);
13ª- Outrossim, constitui um dislate jurídico a alegação de que “O instituto da acção de demarcação visa, não a invocação de uma linha de demarcação (como fazem os Recorrentes), mas a própria inexistência de demarcação em si” (cfr. nº 51. e conclusões XVIII a XXIII).
Se tal fosse assim tão simples – mas, na realidade, não é –, significaria que a petição inicial enfermaria de ineptidão, por falta de indicação do pedido (Art. 186º-1 e 2, al. b) do NCPC);
14ª- Como resulta do teor da petição inicial, na presente ação de demarcação estamos perante um conflito de prédios, na qual se discute a extensão dos prédios confinantes de Autores e Ré (e, não de um “conflito de títulos de aquisição”, em que se discute a titularidade da totalidade do prédio ou de parte dele, como ocorre na ação de reivindicação).
NESTES TERMOS, e nos mais que V. Exªs. superiormente suprirão, deve o recurso ser rejeitado, por legalmente inadmissível; caso assim não se entenda, subsidiariamente, em todo o caso e sempre, ser negada a revista, como é DIREITO E DE JUSTIÇA!
3. O presente recurso foi interposto com fundamento no n.º 1 do artigo 671.º do Código de Processo Civil e nas als. a) e d) do n.º 2 do artigo 629.º do Código de Processo Civil.
Os recorridos contestam a sua admissibilidade com fundamento no n.º 1 do artigo 671.º e na al. d) do artigo 629.º do Código de Processo Civil.
Na verdade, e pese embora a justificação apresentada pela recorrente para o recurso ser interposto ao abrigo do disposto nos n.º 1 e 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil, em termos que tornam inútil a sua notificação para se pronunciarem sobre a inadmissibilidade contraposta pelos recorridos, do n.º 1 do artigo 671.º do Código de Processo Civil não decorre a admissibilidade da presente revista.
Com efeito, o acórdão recorrido, nem conheceu do mérito da causa, nem pôs termo ao processo: revogou o despacho saneador, que tinha posto termo ao processo, e determinou que a causa prosseguisse os seus termos.
Uma das alterações introduzidas pelo Código de Processo Civil de 2013 na regra geral sobre a admissibilidade da revista, hoje constante do n.º 1 do seu artigo 671.º, foi a de tomar como ponto de referência – para saber se estava em causa uma decisão que conhecesse do mérito da causa ou que pusesse termo ao processo – o acórdão da Relação e não a decisão da 1.ª Instância, como até aí sucedia (cfr. artigo 721.º do Código anterior). O âmbito da revista deixou assim de ser definido em função da decisão impugnada na apelação, ou seja, da decisão da 1ª Instância, e passou a ser definido em função do conteúdo do acórdão da Relação.
Por outro lado, e independentemente de saber se poderia ser invocada a al. d) do n.º 2 do artigo 629.º num caso de revista excluída pelo n.º 1 do artigo 671.º do Código de Processo Civil, e de averiguar se podem considerar-se cumpridas as exigências formais da interposição de recurso com fundamento em oposição de acórdãos (cfr. n.º 2 do artigo 637.º do Código de Processo Civil), cumpre averiguar se o acórdão recorrido violou o caso julgado formado no processo 839/19.3..., por não haver dúvidas de que, a verificar-se essa violação, haverá que tirar as consequências da infracção de caso julgado anterior – alcançando-se, por esta via, o mesmo efeito, uma vez que a contradição invocada para justificar a admissibilidade da revista ao abrigo da al. d) do n.º 2 do artigo 629.º se reconduz à alegação de diferentes entendimentos sobre a violação do caso julgado formado numa acção de reivindicação por uma acção de demarcação posterior.
A ocorrência ou não de violação de caso julgado também foi debatida das alegações das partes.
Ora a invocação de violação de caso julgado pelo acórdão recorrido permite a sua interposição; foi, aliás, com esse fundamento que o recurso foi admitido no Tribunal da Relação do Porto.
O recurso é, portanto, admissível, e foi recebido no efeito e com o modo de subida correcto. A questão que está em causa é justamente a de saber se o acórdão recorrido violou o caso julgado formado no processo n.º 839/19.3...
Consigna-se, desde já, que constam do processo certidões dos articulados, da acta da audiência prévia e do despacho saneador, bem como da sentença, do acórdão do Tribunal da Relação do Porto e do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que rejeitou a revista excepcional, bem como das alegações apresentadas pelas partes, do processo 839/19.3...
A matéria de facto relevante para o presente recurso consta do relatório. Interessam ainda os articulados e as decisões proferidas no do processo 839/19.3...
4. Ora, no presente caso, a decisão de que se recorre é uma decisão que, revogando a decisão de absolvição da instância, determinou o prosseguimento do processo, por não se verificar a excepção de caso julgado, com referência proc.º 839/19.3...
O recurso previsto na al. a) do n.º 2 do artigo 629.º do Código de Processo Civil é admissível quando a decisão de que se recorre violou caso julgado anterior – que, no caso, seria o caso julgado formado pela decisão final que conheceu de mérito no processo 839/19.3..., isto é, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto. Com efeito, a não admissão da revista excepcional interposta nesse processo torna o referido acórdão do Tribunal da Relação do Porto a respectiva decisão final.
Sucede, todavia, que este acórdão, considerando ter improcedido a impugnação da matéria de facto, manteve a sentença e remeteu para a respectiva fundamentação, nestes termos:
“IV – Procedência ou improcedência dos pedidos formulados pelos autores.
Os autores formularam os seguintes pedidos:
a) Reconhecimento do seu direito de propriedade e cessação da ocupação pelas rés do seu prédio na área de 1.850 m2 junto à confrontação norte desse prédio sita além do ribeiro público;
b) Inibição de qualquer ato de obstrução do caminho público que constitui o acesso ao prédio dos autores a partir da Rua da ...;
c) Reconstrução da casa de apoio agrícola demolida anteriormente existente nessa confrontação norte e execução da reposição integral do muro com cento e treze metros lineares, que constituía a vedação dessa confrontação norte do prédio dos autores;
d) Demolição do novo muro implantado no solo pertencente ao prédio dos autores.
Acontece que a procedência de todos estes pedidos – excetuando no que toca ao de reconhecimento do direito de propriedade dos autores relativamente ao prédio inscrito na matriz rústica sob o artigo 2477 da freguesia de ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Paços de Ferreira sob o nº 2006/20110530 julgado procedente na sentença recorrida – dependia da alteração da matéria de facto no sentido pretendido pelos recorrentes.
Como essa alteração factual não ocorreu, também a solução jurídica do pleito, que se objetivou na improcedência de todos aqueles pedidos, será mantida, remetendo-se em termos de argumentação jurídica para o que, a propósito, se deixou explanado na sentença recorrida.
O recurso interposto pelos autores será assim julgado improcedente.
DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelos autores AA e mulher BB e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.”
O alcance do caso julgado material formado pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no proc. n.º 839/19.3... implica, assim, interpretar a sentença que confirmou.
Com efeito, esta interpretação é um passo necessário para se alcançar o âmbito do caso julgado material formado pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto, e, portanto, para poder concluir se o acórdão agora recorrido, ao revogar a decisão da 1.ª Instância e determinar o prosseguimento do processo, violou ou não o caso julgado formado no proc. n.º 839/19.3...
Como repetidamente se tem recordado, nomeadamente no Supremo Tribunal de Justiça, para interpretar uma sentença não basta considerar a sua parte decisória, “cabendo tomar na devida conta a respectiva fundamentação (“é ponto assente na doutrina que os fundamentos da sentença podem e devem ser utilizados para fixar o sentido e alcance da decisão contida na parte final da sentença, coberta pelo caso julgado”, escrevem Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra, 1985, pág. 715, como se recorda no acórdão de 29 de Abril de 2010, www.dgsi.pt, proc. n 102/2001.L1.S1), o contexto, os antecedentes e outros elementos que se revelem pertinentes (acórdão de 8 de Junho de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 25.163/05.5YLSB.L1.S1). Para além disso, e porque se trata de um acto formal, aliás particularmente solene, cumpre garantir que o sentido tem a devida tradução no texto (cfr., com o devido desenvolvimento, o acórdão de 3 de Fevereiro de 2011, www.dgsi.pt, proc. nº 190-A/1999.E1.S1 e o acórdão de 25 de Junho de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 351/09.9YFLSB)”, escreveu-se recentemente no acórdão deste Supremo Tribunal de 16 de Novembro de 2023, www.dgsi.pt, proc. n.º 1044/18.1T8VNF-A.G1.S1.
Ora, na sentença proferida no proc. 839/19.3..., o tribunal, julgando os pedidos atrás transcritos, com referência às causas de pedir invocadas, decidiu: “sem prejuízo de se reconhecer que os Autores são donos e legítimos proprietários do prédio que se encontra inscrito na matriz rústica sob o artigo 2477 e descrito a seu favor o direito de propriedade na Conservatória do Registo Predial de Paços de Ferreira sob o nº 2006/20110530, julgo totalmente improcedentes as demais pretensões, absolvendo as RR da totalidade dos pedidos contra si deduzidos.”.
Apenas interessa agora a reivindicação da parcela de terreno a que respeita a al. a) dos pedidos (a) Reconhecimento do seu direito de propriedade e cessação da ocupação pelas rés do seu prédio na área de 1.850 m2 junto à confrontação norte desse prédio sita além do ribeiro público;).
Apreciando as causas de pedir então formuladas – a arrematação em hasta pública, em processo de execução, aquisição derivada, e a usucapião, forma de aquisição originária, em abstracto apta a fundar um pedido de reivindicação, a sentença considerou:
“Porque o fundamento da pretensão do autor assenta na sua qualidade de proprietário da coisa reivindicada – art. 498.º, n.º 4, 2.ª parte, do Código de Processo Civil, onde encontra consagração expressa o princípio da substanciação –, cabe-lhe o ónus de provar os factos por virtude dos quais a adquiriu. Ora, tratando-se de aquisição derivada, dominada pelo princípio nemo plus iuris in alium transferre potest quam ipse habet, o reivindicante terá de provar a regularidade, substancial e formal, da cadeia das sucessivas transmissões anteriores que, a partir de uma qualquer aquisição originária, sirva de suporte ao direito por ele invocado - Pires de Lima / Antunes Varela, ob. cit., p. 115, Ac. RL de 6.7.77 (CJ, II, t. 4, p. 926), Ac. RL de 10.05.78 (CJ, III, t. 3, p. 931); Ac. STJ de 11.01.79 (BMJ 283, p. 234) e Ac. STJ de 4.02.93 (CJSTJ, I, t. 1, p. 137)). Todavia, esta prova apresenta inúmeras dificuldades, motivo por que a lei recorre a presunções de propriedade que o reivindicante pode invocar a seu favor.
Desde logo, estabelece-se no art. 7.º do Código do Registo Predial que «o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define».
(…)
Na situação decidenda, já se anotou e justificou a imprestabilidade do recurso às presunções emergentes do registo, em sede probatória, como nesta.
Com efeito, a presunção registral não abrange a área e sempre a delimitação/definição/concretização desta, na ausência de um cadastro da propriedade, carece de prova complementar/suplementar.
Donde os AA aduziam, subsidiariamente, a aquisição originária do direito de propriedade no que tange à parcela em litígio.
Assim é que, nos termos do art. 1287º do Código Civil, «a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião».
A verificação da usucapião depende de dois elementos: da posse e do decurso de certo período de tempo, variável conforme a natureza móvel ou imóvel da coisa.
Para conduzir à usucapião a posse tem de revestir sempre duas características: pública e pacífica. Os restantes caracteres (boa ou má fé, titulada, etc.) influem apenas no prazo. Assim, Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1967, p. 112.
A usucapião pressupõe a posse, que se adquire pelo facto e pela intenção, definindo-se pelos elementos essenciais que são o corpus, na aquisição unilateral, e o animus. Assim, STJ, Acórdão de 13.02.1979, BMJ, n.º 346, p. 302.
Como já acontecia com o Código Civil de 1867, o actual ordenamento jurídico português adopta a concepção subjectiva da posse. Daí ser esta integrada por dois elementos estruturais: o corpus e o animus possidendi.
Quanto à caracterização da situação possessória invocada pelos AA, pelas razões que melhor resultam da motivação da matéria de facto, ausente a prova pelos AA, a quem cabia, enquanto facto constitutivo do direito respectivo, dos pressupostos da aquisição originária da parcela que reclamavam fosse declarada parte integrante do imóvel a seu favor registado, a conclusão não pode ser outra que não a da improcedência das pretensões.”
Após analisar a prova produzida, e sentença julgou improcedente a reivindicação, “pela falta de prova pelos AA, a quem cabia, de uma actuação em nome próprio, como proprietários, em termos de poder ser conhecida pela generalidade das pessoas e, designada e relevantemente pelos demais confinantes da parcela em causa…”.
Ora, tendo em conta que o âmbito objectivo do caso julgado se delimita pela consideração conjunta dos sujeitos, pedido e causa de pedir formulados (n.º 1 do artigo 619.º do Código de Processo Civil) – considerar-se-á apenas a usucapião, por ter sido a causa de pedir que, em abstrato, repete-se, a sentença teve como apta a fundar o pedido de reivindicação –, a primeira conclusão a retirar é a de que ficou definido, com força de caso julgado entre as partes da acção n.º 839/19.3... (entendidas nos termos previstos no n.º 2 do artigo 581.º do Código de Processo Civil, ou seja, do “ponto de vista da sua qualidade jurídica”), os autores não adquiriram por usucapião a propriedade da parcela que reivindicavam.
Esta decisão não significa, naturalmente, que sejam proprietárias as rés; nem impede a invocação de diferente causa de pedir em acção posterior. Todavia, fica precludida, por parte das rés, a invocação, em acções posteriores, de excepções que poderiam ter sido alegadas na acção, em virtude do princípio da concentração da defesa (artigo 573.,º do Código de Processo Civil) e, por parte dos autores, a alegação de factos que possam ser reconduzidos à(s) causa(s) de pedir invocada(s), em virtude do ónus de alegação na petição inicial, ónus que se deduz da inadmissibilidade da alegação de factos que excedam a resposta às excepções deduzidas – cfr. n.º 1 do artigo 584.º e n.º 4 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, desde que, em ambos os casos, possa vir a ser posta em causa a função da excepção de caso julgado : evitar que, nessa acção posterior, o tribunal seja colocado na alternativa de contrariar ou repetir (porque seria inútil, artigo 625.º do mesmo Código) uma decisão anterior (n.º 2 do artigo 580.º do Código de Processo Civil). Assim se respeita o que Antunes Varela, J.M. Bezerra e Sampaio e Nora (Manual cit., pág. 302), chamam a “directriz substancial traçada no [então] n.º 2 do artigo 497.º” do Código de Processo Civil.
Recorde-se que, uma vez decidida uma questão com força de caso julgado, não mais pode a mesma voltar a ser apreciada em acção posterior, quer surja a título principal, caso em que funcionará a excepção de caso julgado, quer surja a título prejudicial ou seja suscitada pelo réu, casos em que a força e autoridade do caso julgado obrigará a ter essa mesma questão como assente.
5. Todos conhecemos, em abstracto, as diferenças entre o objectivo de uma acção de reivindicação e o de uma acção de demarcação (que, aliás, deixou de estar incluída nos processos especiais pela reforma de 1995-1996, por razões que se podem ver no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro); mas convém igualmente assentar em que a diferença teórica entre uma e outra não é decisiva para saber se houve ou não violação de caso julgado, embora deva estar presente no entendimento dos pedidos e das causas de pedir formulados, bem como das decisões proferidas nas duas acções agora em confronto.
Para o efeito de saber se a presente acção (de demarcação) repete a acção com o n.º 839/19.3... (de reivindicação). o que é decisivo é apurar se o julgamento desta segunda acção implica o risco de contradição prática, não meramente teórica, da decisão tomada na primeira.
Deixando de lado a questão da identidade subjetiva, que aqui não se coloca, releva determinar se deve ou não entender-se que o pedido e a causa de pedir das duas acções são os mesmos, ou se identificam uma questão decidida com força de caso julgado na primeira acção e prejudicial na segunda.
O pedido é o efeito prático-jurídico pretendido pelo autor de uma acção (cfr. n.º 2 do artigo 581.º do Código de Processo Civil e, como exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2016, www.dgsi.pt, proc. n.º 219/14.7TVPRT-C.P1.S1, no qual, citando o acórdão também do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2013, www.dgsi.pt, proc.n.º 7770/07.3TBVFR.P1.S1, se escreveu “A questão da definição da identidade do pedido ou da pretensão material deduzida nas duas acções, sucessivamente propostas, passa essencialmente pela exacta delimitação do efeito jurídico pretendido pelo demandante, pela definição da forma de tutela que pretende obter, tendo-se, para tal, em conta, não propriamente a mera qualificação jurídica de tal pretensão, num plano puramente normativo, mas o efeito prático jurídico a alcançar”).
Ora, ao formular um pedido de demarcação do prédio de que se dizem proprietários – e há caso julgado material quanto a que não são proprietários por usucapião da parcela reivindicada na primeira acção e, portanto, não é admissível, na acção presente, contrariar essa decisão –, e por muito que identifiquem com precisão a linha que entendem dever ser considerada como demarcação, a verdade é que um pedido de demarcação, substantivamente, implica a possibilidade de tal demarcação vir a ser efectuada nos termos previstos no artigo 1354.º do Código Civil e, portanto, de forma não coincidente com a que tiver sido definida pelos autores e, nomeadamente, dividindo-se o terreno em litígio por partes iguais (n.º 2). Cfr., assim interpretando os critérios de demarcação, o a acórdão deste Supremo Tribunal de 10 de Maio de 2012, www.dgsi.pt, proc. n.º 725/04.1TBSSB.L1.S1.
No que respeita à causa de pedir invocada na presente acção, é complexa, composta pela alegação de existirem prédios confinantes, de os autores serem proprietários de um deles, e de haver incerteza quanto à delimitação recíproca. Com efeito, a causa de pedir define-se por referência do facto ou complexo de factos a uma previsão normativa – no caso, ao artigo 1353.º do Código Civil. Dir-se-á, com todo o fundamento, que ser proprietário é um conceito de direito e não de facto; trata-se, todavia, de uma forma abreviada de dizer que o autor, numa acção de demarcação, tem o ónus de alegar factos dos quais resulte o seu direito de propriedade; recorde-se que, substantivamente, o direito de demarcação relativamente a prédios confinantes é um direito do proprietário (não interessa agora saber se a acção pode ou não ser instaurada pelo titular de um direito real menor, eventualmente provocando intervenção do proprietário).
Não há assim coincidência com a causa de pedir invocada na acção n.º 839/19.3...; na verdade, o que sucede é que, nessa mesma acção, foi reconhecida a propriedade dos autores sobre o prédio, tal como descrito no registo – com o valor que se referiu já e, portanto, sem que isso implique que o prédio abranja a parcela então reivindicada, naturalmente.
Mas também se não pode dizer que exista uma relação de prejudicialidade entre as duas acções, em termos de justificar que, improcedente a acção de reivindicação da parcela por não provada a aquisição originária do direito de propriedade, por usucapião, a acção de demarcação tenha de improceder por ilegitimidade (substantiva) dos autores.
Não é requisito de procedência de uma acção de demarcação a prova de uma posse suficiente (isto é, com a duração e as características) para fundamentar a aquisição por usucapião. Assim resulta do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 1354.º do Código Civil.
6. Concluindo-se pela ausência de violação de caso julgado, pela decisão recorrida, há que rejeitar o recurso.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 12 de Dezembro de 2023
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Lino Ribeiro
José de Sousa Lameira