Sumário
Se a liquidação dos juros moratórios e compulsórios que se discute não assenta em factos seguramente abrangidos pelo título executivo mas da interpretação jurídica de decisões arbitrais que fazem parte integrante desse título, tal liquidação não depende seguramente de simples cálculo aritmético, motivo por que do acórdão que dela aprecia cabe recurso de revista nos termos do art. 854º do CPC
Decisão Texto Integral
Acordam na 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça:
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No âmbito da presente execução intentada pela Amorim Holding II, SGPS, S.A. contra os Executados Bragaparques – Estacionamentos, S.A. e outros, veio o Agente de Execução a 9.6.2018 apresentar cálculo quanto às quantias consideradas em dívida, discriminando o capital, valor dos juros vencidos e valor devido a título de sanção pecuniária compulsória, bem como a liquidação dos seus honorários, calculando a quantia exequenda à data de 30.06.2018 em € 7.089.073,48 conforme documento com 6 páginas que anexa, sugerindo que tal valor fosse pago diretamente à Exequente que liquidaria os honorários devidos ao AE e a sanção compulsória devida ao Estado.
Deste requerimento vieram os executados reclamar, invocando a errónea quantificação dos montantes liquidados e requerer a revisão da nota discriminativa de despesas e honorários do AE.
A exequente veio pronunciar-se no sentido de ser julgada improcedente a reclamação, requerendo a notificação dos executados para procederem ao pagamento das quantias em dívida.
A 5.7.2018 veio em resposta o AE apresentar no processo requerimento a reiterar a correção dos cálculos que apresentou em 9.6.2018.
A 31.10.2018 o tribunal proferiu decisão sobre estas questões controvertidas, concluindo que a liquidação dos juros apresentada se mostra feita de acordo com o título executivo; que a sanção pecuniária compulsória incide sobre 5 milhões de euros até 29.3. 2012 e a partir desta data sobre 2 milhões de euros, tal como liquidado pelo AE, aceitando também a liquidação dos honorários apresentada. Mais convidou os executados a fazer prova do cumprimento da obrigação, sob pena de se efetuar o pagamento acionando a caução.
Com esta decisão os executados não se conformaram e dela vieram interpor recurso para a Relação pedindo a sua revogação e substituição por outra que cumpra o teor e o alcance do título executivo, juntando Parecer do Ilustre Professor Doutor Jorge Sinde Monteiro.
O AE veio responder ao recurso, na parte em que incidiu sobre a impugnação dos honorários por si reclamados, pedindo que se julgasse a sua improcedência, confirmando-se a decisão recorrida.
Também a exequente veio responder ao recurso, restringindo-o às questões relativas à liquidação da quantia exequenda, pugnando pela sua improcedência e manutenção da decisão proferida.
Por requerimento de 7.12.2018 vieram os executados informar que já tinham efectuado o pagamento da quantia que entendiam ser devida, no montante global de € 4.442.471,62 solicitando que a garantia bancária prestada no âmbito da execução fosse correspondentemente reduzida e que fosse sustido o seu acionamento por parte da exequente.
A exequente pronunciou-se no sentido de que fosse indeferido o pedido de redução da garantia bancária, mais requerendo a notificação do Banco para tornar efetiva a garantia pelo valor de € 2.754.218,52.
Sobre esta questão foi a 30.1.2019 proferido despacho de indeferimento do requerido pelos executados, mantendo a caução.
Por também não se conformarem com esta decisão, vieram os Executados interpor recurso da mesma, pugnando a exequente, na resposta, pela manutenção da decisão recorrida.
Apreciando os recursos interpostos, a Relação decidiu da seguinte forma:
“- julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelos Executados do despacho de 31/10/2018, revogando-se o mesmo na parte em que admite a contabilização da remuneração adicional do Agente de Execução, que se substitui por outro que não admite a liquidação daquela remuneração adicional apresentada, confirmando-se aquele despacho em tudo o mais; [sublinhado nosso]
- julgar procedente o recurso interposto do despacho de 30/01/2019, revogando-se o mesmo, que se substitui por outro que admite a redução da garantia bancária prestada pelos Executados, no valor de € 4.442.471,62 correspondente ao pagamento efetuado.
As custas do primeiro recurso são devidas pelos Executados e pelo Agente de Execução na proporção em que decaíram.
As custas do segundo recurso são pela Exequente que nele decaiu. Notifique.”
Notificados de tal acórdão, vieram, em 6.1.2020, os recorrentes Bragaparques-Estacionamentos, S.A. e outros, ao abrigo do art. 613º nº 2 do CPC, requerer o suprimento de uma omissão que qualificaram de lapso manifesto ou, se assim não se entendesse, da nulidade a que alude o art. 615º n.º 1, al. d) do CPC, por omissão de pronúncia, argumentando que o tribunal não se tinha pronunciado sobre o pedido por si apresentado e que constava da al. O) das conclusões do recurso, em que pedia a correção do valor da acção.
Em conferência de 6.2.2020, a Relação desatendeu o pedido de rectificação e declaração de nulidade do acórdão.
Inconformados com os segmentos da parte decisória em que decaíram vieram, também, os executados interpor recurso de revista excepcional, em 16.1.2020, pedindo que fosse atribuído efeito suspensivo ao recurso, dado que o prosseguimento da execução, sem estarem resolvidas as questões suscitadas, era totalmente inútil e impunha aos recorrentes o pagamento imediato de avultada quantia em dinheiro, com as consequências daí decorrentes para a atividade comercial que prosseguem.
Formularam, para o efeito, as seguintes conclusões:
“A) Os Recorrentes não se conformam com a nota de liquidação que fez incidir juros de mora legais sobre a quantia de € 5.000.000.000,00, no período compreendido entre 07/07/2006 (data da citação dos RR na 1a ação arbitral) e 29/03/2012 (data do Acórdão do TCA Sul, considerado facto jurídico superveniente na 2a ação arbitral); e ainda
B) Não podem aceitar que, no caso sub judice, os mesmos incidam sobre a quantia de € 5.000.000.000,00, a qual, por ter assentado num erro de prognose judicialmente reconhecido, foi reduzida para € 2.000.000,00, por Acórdão arbitral de 26/03/2015 proferido em ação modificativa do Acórdão anterior;
C) Ou seja, os Recorrentes não podem conformar-se com a liquidação de juros compulsórios sobre a quantia de € 5.000.000,00 de 14/07/2009 (data do 1o acórdão arbitral) até 29/03/2012;
D) A interpretação de uma qualquer decisão judicial em que esteja em causa se o seu teor é claro ou se necessita de ser coadjuvado por outros dados constantes da fundamentação, tem de ser feita caso a caso e não há jurisprudência ou doutrina que possa substituir-se ao critério do julgador a quem é pedido que aprecie a questão
E) O Acórdão recorrido entra em flagrante contradição quando afirma que "importa ter em conta, em primeira linha, o teor do próprio texto escrito que a formaliza, não podendo retirar-se um sentido que nele não tenha um mínimo de correspondência" para, a final, invocando uma parte restrita e ambígua da fundamentação, subverter por completo o segmento decisório que, especificadamente, diz a partir de que momento se inicia a contagem dos juros moratórios sobre € 5.000.000,00 e o momento em que acaba;
F) A admitir-se que, através de uma fundamentação tortuosa e rebuscada, qualquer tribunal de recurso possa vir a ultrapassar e subverter o teor literal, claro e límpido, de uma decisão judicial, ficará aberto o caminho para uma sucessão de outros casos pondo em causa a confiança na aplicação do Direito e a segurança no sistema de justiça;
G) Por esse motivo, a apreciação desta questão por parte do Supremo Tribunal de Justiça é imprescindível para uma melhor aplicação do direito, encontrando-se, desse modo, preenchido o requisito de admissibilidade da revista, ao abrigo da alínea a) do n° 1 do artigo 672° do CPC;
H) A complexidade das questões que se colocam nos presentes autos resulta da existência de dois acórdãos arbitrais - tendo o segundo sido proferido em ação modificativa do primeiro - ambos transitados em julgado, e constituindo, por isso, dois títulos executivos sucessivos;
I) Não podem os Recorrentes ficar obrigados a pagar juros compulsórios - que servem para induzir ao cumprimento de uma prestação - quando é certo que tal prestação deixou de ser exigível - não sendo exigível a dívida, também não podem ser liquidados juros sobre o seu montante, com o objetivo único de obrigar o devedor a cumprir aquilo que já não tem obrigação de cumprir;
J) Trata-se de uma questão nova, por se tratar de uma sucessão de títulos executivos e, do ponto de vista da efetivação do direito e materialização da justiça, importa que o Supremo Tribunal de Justiça se pronuncie para que se fique a saber o que valem e como se conjugam esses mesmos títulos executivos na fase da liquidação final da execução;
K) Esta apreciação é imprescindível para uma melhor aplicação do direito, encontrando-se, assim, preenchido o requisito de admissibilidade da revista, ao abrigo da alínea a) do n° 1 do artigo 672° do CPC;
L) Acresce que a possibilidade de situações semelhantes se virem a colocar no futuro ganha particular pertinência num tempo em aceleração e mutação crescentes, que proporciona a formação de juízos de prognose com forte probabilidade de se revelarem incorretos no curto e médio prazo, dando lugar a ações modificativas, arbitrais ou estaduais;
M) E será então necessário saber como conciliar duas decisões transitadas em julgado, que dão origem a dois títulos executivos, com conteúdo total ou parcialmente diverso;
N) Assim sendo, por se encontrar de igual modo verificado o requisito constante do artigo 672°, n° 1, alínea b) do CPC, deve o presente recurso de revista ser admitido;
O) Para o Tribunal recorrido a questão controvertida sobre os juros moratórios "é então a de saber, à luz do acórdão modificativo que constitui o título executivo a que temos de nos ater, se e em que medida devem ser contabilizados os juros de mora, concretamente os juros de mora do período que medeia entre a citação dos RR. na primeira ação arbitral e a prolação da decisão nessa ação, aos quais o segundo acórdão arbitral não aludiu expressamente na parte decisória"
P) Ora, a boa técnica de redação, legislativa ou jurisprudencial, aconselha a que se legisle ou decida pela positiva e não pela negativa. Ou seja, não é necessário dizer "não há juros", basta que, pela positiva, se esclareça que são devidos juros no período de X a Y
Q) Retirando da fundamentação do 2o Acórdão Arbitral excertos que evidenciam a preocupação do Tribunal Arbitral em salvaguardar o princípio da intangibilidade do caso julgado, o Tribunal recorrido apressa-se a concluir: "Dessa fundamentação decorre, por um lado, que o único ponto da decisão proferida pelo primeiro acórdão que o segundo acórdão arbitral quis alterar e alterou, foi o valor indemnizatório resultante da aplicação da cláusula penal que reduziu de €5.000.000,00para €2.000.000,00 mais considerando ser inatacável a anterior decisão, que continuou a produzir plenamente os seus efeitos até à data de 29.03.2012, já que a nova decisão só a partir desta data, que corresponde ao facto modificativo, produz efeitos";
R) Daqui resulta que, para o Tribunal recorrido, se mantém intocável o caso julgado, ainda que seja reduzida a pena em três milhões de euros, desde que se mantenha o pagamento de juros sobre a pena inicialmente fixada;
S) Uma tal conclusão é, só por si, absurda e denota desatenção, quer quanto à natureza dos juros, quer quanto aos próprios limites do caso julgado versus a sua intangibilidade;
T) Na verdade, parece ser de mediana compreensão que o Acórdão Arbitral modificativo ao afirmar que "o princípio da intangibilidade do caso julgado obriga a que aquela decisão se mantenha incólume, estando excluída qualquer possibilidade de, directa ou reflexamente, apreciar ou sindicar erros de julgamento", visava apenas deixar claro que nunca poderia pôr em causa os fundamentos jurídicos que tinham levado o 1o Tribunal Arbitral a considerar incumprido o contrato-promessa de compra e venda de ações celebrado entre as partes, acionando, por isso, a cláusula penal indemnizatória nele prevista;
U) Ora, tem vindo a ser reconhecido na doutrina e na jurisprudência que o caso julgado tem limites, designadamente um limite objetivo: a decisão proferida é indiscutível perante a causa de pedir em que se fundou, mas não perante nova causa de pedir, integrada por factos supervenientes que não podiam ter sido apreciados aquando da decisão inicial;
V) No caso dos autos, o acórdão modificativo resultou precisamente do reconhecimento feito pelo 2o Tribunal Arbitral do errado juízo de prognose sobre a verificação de determinados factos feito pelo 1o Tribunal Arbitral - os factos previstos como prováveis, em que assentou o montante da indemnização fixada, não se vieram de todo a verificar;
W) Como bem explicou o Professor Lebre de Freitas, todas as questões de direito decididas pelo primeiro Tribunal Arbitral - e ainda a avaliação feita sobre o montante dos danos emergentes já verificados - ficaram incólumes no acórdão do segundo Tribunal Arbitral em obediência ao princípio da intangibilidade do caso julgado;
X) Só foi alterado o conteúdo da obrigação de indemnizar - capital e juros -já que o primeiro acórdão arbitral assentou num juízo de prognose que não se veio a concretizar;
Y) O juízo de previsibilidade de prejuízos futuros (danos emergentes ou lucros cessantes) enquadra-se na previsão do artigo 619°, n° 2 CPC - no segmento que refere as "prestações dependentes de circunstâncias especiais quanto à sua medida" - pelo que a decisão transitada em julgado pode ser modificada se se verificar uma discrepância substancial entre a realidade prevista na sentença e a realidade que, após a sua prolação, veio a ocorrer;
Z) O erro de direito em que incorreu o Tribunal recorrido foi o de ter considerado a ação modificativa em causa como tendo subjacente prestações periódicas ou circunstâncias com determinada continuidade temporal, cuja modificação, ao abrigo do artigo 619°, n° 2, do CPC, só operaria para o futuro, após verificado o facto superveniente;
AA) Erro este que pode ter sido induzido pela circunstância dos juros se traduzirem efetivamente em prestações continuadas e periódicas;
BB) Mas já não se encontra justificação para a incongruência que resulta da aceitação pelo Tribunal recorrido da possibilidade de ser substancialmente reduzido, pelo segundo Tribunal Arbitral, o montante da indemnização devida, mas já não lhe ser admitido alterar a fixação da contagem dos juros devidos;
CC) Como sintetiza o já citado Professor: Os juros, qualificados como frutos civis (art. 212-2 CC), representam o rendimento de um capital e, quando moratórios, constituem indemnização proporcionada à utilização indevida dum capital que há o dever de entregar a outrem; a obrigação de juros constitui, em qualquer caso, uma obrigação acessória da obrigação de capital (cf. art. 786-1 CC), que pressupõe"; e, segundo a doutrina e jurisprudência mais recente, a mora no pagamento de indemnização decorrente de cláusula penal compensatória dá lugar ao pagamento de juros, tal como o daria a mora no pagamento da obrigação originária;
DD) Assim foi decidido pelo primeiro Tribunal Arbitral que fez incidir a taxa de juros de mora sobre o capital de 5 M euros desde a citação, fazendo aplicação do artigo 805°, n°3 do CC a um caso que não integrava, porém, o âmbito da sua previsão expressa por não estar em causa a responsabilidade por facto ilícito (extraprocessual) ou pelo risco, mas sim a responsabilidade pelo incumprimento duma obrigação contratual;
EE) Para o Professor Lebre de Freitas, "talvez esta circunstância [juros desde a citação em caso de responsabilidade por incumprimento contratual] tenha levado o segundo tribunal arbitral, na sua decisão de redução equitativa, a fazer incidir o juro de mora sobre o capital de 5 M euros apenas sobre o período de 14.7.09 a 29.3.12.", ainda que entenda não ser essa a melhor solução;
FF) Acrescenta de seguida: "O segundo tribunal arbitral entendeu que assim respeitaria melhor a decisão anterior. Era livre de o fazer, visto que a redução da cláusula penal se faz equitativamente (art. 812 CC), embora fosse mais lógico tirar todas as consequências da redução do capital de 5 M euros a 2 M euros e, em vez de fazer incidir a taxa de juro de mora sobre um capital ficcionado, fazê-lo lo incidir sobre o capital que, de acordo com os factos que condicionavam a indemnização pelo lucro cessante, era afinal devido ";
GG) Por sua vez, o Professor Sinde Monteiro avança com uma outra explicação: "Numa decisão de equidade, o Tribunal terá entendido existirem expectativas que mereciam ser tidas em conta. Nessa medida se compreende que a condenação anterior, apesar de ter ficado sem base fáctica de sustentação, tenha continuado a ser tomada como parâmetro para o cálculo dos juros comerciais durante um período relativamente longoJ/Na mesma linha de equilíbrio, excluiu, porém, os juros decorridos desde a data da citação para a ação, que eram tidos em conta na decisão anterior";
HH) É inquestionável que o Acórdão de 26/03/2015 decidiu de acordo com a equidade - decisão essa sancionada pelos tribunais superiores que se pronunciaram sobre a ação de anulação instaurada pela aqui Recorrida -polo que só pode ser tido em conta exclusivamente o que consta do seu dispositivo;
II) Como conclui o Professor Lebre de Freitas: "Certo é, de qualquer modo (tenha sido qual fosse a intenção dos árbitros), que o que qualquer homem normal lê na segunda decisão arbitral (bem como na sua fundamentação) é que o juro de mora sobre 5 M euros é devido desde 14.7.09 até 19.3.12: esses -e só esses - foram os termos em que o segundo tribunal arbitral entendeu dever respeitar o alcance do caso julgado de 2009";
JJ) E conclui igualmente o Professor Sinde Monteiro: "Numa palavra: os fundamentos da condenação ficaram definitivamente definidos no primeiro Acórdão Arbitral. O montante da indemnização foi modificado no segundo Acórdão Arbitral, tendo em conta os factos supervenientes, que conduziram a uma redução equitativa da cláusula penal. //Só é legítimo incluir na "conta " o capital e os juros previstos no Acórdão modificativo. E este não inclui qualquer referência a juros moratórios com respeito ao período que vai de 07/07/2006 a 14/07/2009. Pelo contrário, contém uma referência expressa e inequívoca à data do 1."Acórdão Arbitral (14/07/2009) ";
KK) No que respeita aos juros compulsórios, a divergência dos Recorrentes quanto ao teor do Acórdão recorrido centra-se, pois, no que consideram ser o montante da dívida a tomar em consideração e o período de contagem dos referidos juros;
LL) A decisão do Tribunal recorrido conduz, mais uma vez, a um resultado absurdo - os Recorrentes ficariam assim sujeitos a uma "sanção coercitiva", traduzida em juros, que os coagia a pagar uma dívida de cinco milhões que, afinal, não estavam obrigados a pagar;
MM) O erro de julgamento implícito no Acórdão recorrido foi o de considerar definitiva uma indemnização que tinha natureza provisória e que veio a ser modificada, quanto ao seu quantitativo, ainda antes de ter sido paga;
NN) Como diz o Professor Lebre de Freitas: A sanção pecuniária compulsória do art. 829-A-4 CPC pressupõe a existência duma divida pecuniária. A sua taxa está pré-determinada por lei, mas o montante do capital sobre o qual incide tem obviamente que ser determinado, só fazendo sentido a compulsão ao pagamento de uma prestação líquida";
00) E continua: "A primeira decisão arbitral condenou a BRAGAPARQUES no pagamento da quantia certa de 5.000 M euros. Mas o juízo de prognose em que ela se baseou não veio a ter correspondência na realidade futura e tal deu lugar à redução da indemnização para 2 M euros, com o que a dívida de 5.000 M euros se extinguiu, por razões que tiveram a ver com os próprios termos em que o primeiro tribunal a declarara constituída (a previsão da ocorrência de factos futuros, que não se realizaram). A obrigação de pagar os 5.000 M euros foi assim atingida na sua base e, inclusivamente, a nulidade da permuta que o tribunal administrativo viria a decretar existiu ab initio, não fazendo sentido, por via da retroatividade operada, considerar que alguma vez a Bragaparques tenha estado obrigada a pagar uma taxa de juros compulsórios de 5% sobre uma quantia de indemnização pré-fixada no pressuposto da validade dessa permuta";
PP) O mesmo vem dito, doutra forma, pelo Professor Sinde Monteiro: "Por outras palavras, estabelecendo o primeiro Acórdão Arbitral uma "indemnização provisória " em virtude de o colégio arbitral ter abertamente reconhecido que não "dispunha de elementos "para calcular o montante dos lucros cessantes, por isso mesmo remetendo essa "liquidação" para uma "decisão ulterior", estamos, juridicamente, perante uma obrigação ilíquida; essa "decisão ulterior" veio porém a concretizar-se através de um Acórdão Arbitral modificativo do caso julgado arbitral anterior, o qual fixou o montante do dever de indemnizar, com isso tornando líquida essa obrigação.// Pelo que, em definitivo, a "liquidação " só pode considerar-se consumada após a prolação do segundo Acórdão Arbitral";
QQ) Face ao que ficou exposto, dúvidas não restam de que qualquer sanção pecuniária compulsória que venha a ser aplicada só pode sê-lo sobre a quantia de dois milhões de euros e a partir do trânsito em julgado do segundo acórdão arbitral, datado de 26/03/2015, que tornou líquida a obrigação de indemnizar;
RR) Por último, e ainda que a questão não seja objeto do presente recurso, as distorções que o presente processo executivo encerra, decorrentes da dificuldade em articular dois títulos executivos sucessivos, bem assim como as reduções da quantia exequenda ocorridas ao longo da tramitação processual, justificam uma correção do valor da causa, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 299°, n° 4 e 306°, n°s 1 e 2 do CPC.”
Pedem, a finalizar, a revogação do acórdão recorrido.
Os exequentes contra-alegaram formulando as seguintes conclusões:
“A - DO EFEITO MERAMENTE DEVOLUTIVO DO PRESENTE RECURSO
1ª. Ao presente recurso deve ser atribuído efeito meramente devolutivo (v. art. 676º do CPC), pois (i) os arts. 647º/2 e 4 e 676º/2 do CPC são inaplicáveis in casu, e (ii) não se verifica qualquer prejuízo considerável para os ora recorrentes, (iii) não tendo sido invocada ou demonstrada a sua verificação (v. art. 5º do CPC e art. 342º do Cód. Civil) - cfr. texto n°. í;
B - DA INADMISSIBILIDADE DO PRESENTE RECURSO
2ª. O recurso excepcional de revista é manifestamente inadmissível, pois:
a) Os recorrentes não invocaram clara, concreta e especificadamente, qualquer questão com relevância jurídica ou social nas conclusões formuladas, que “definiram o objecto do recurso” (v., por todos, Ac. STJ de 2016.09.15, Proc. 2/13.7 TTBRG.G1. S1, in www.dgsi.pt e art. 639º do CPC)
b) Os ora recorrentes não indicaram as concretas razões que justifiquem qualquer “relevante interesse jurídico” ou demonstrem a “relevância social” do presente recurso;
c) Não se verificam os pressupostos previstos no art. 672º/1/a) e b) do CPC (cfr. 672º/2/a) e b) do CPC);
d)Os ora recorrentes limitaram-se a referir meras discordâncias ou divergências interpretativas com o decidido no douto acórdão recorrido, imputando-lhe erros de direito - cfr. texto n°s. 2 a 5;
3ª. O presente recurso de revista é claramente inadmissível, ex vi do disposto no art. 671º/3 do CPC, pois o douto acórdão recorrido confirmou a decisão proferida na 1ª instância nos seus precisos termos, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente - cfr. texto n°s. 4 a 6;
C - DOS JUROS DEVIDOS DESDE A CITAÇÃO
4ª. O douto Acórdão Arbitral, de 2009.07.14, condenou os executados numa parte líquida (capital) e noutra parte liquidável por simples cálculo aritmético (juros), abrangendo:
a) O montante de € 5.000.000,00, correspondente à “cláusula penal de indemnização mínima” ou “indemnização provisória” (v. ponto 7º da decisão, a fls. 103 do Acórdão);
b) O valor correspondente a “juros sobre o montante de cinco milhões de euros, calculados, a partir da data da citação dos Réus para a presente acção, às taxas que resultarem da aplicação do artigo 102º § 3º, do Código Comercial” (v. ponto 8º da decisão, a fls. 103 do Acórdão) - cfr. texto n°s. 7 e 8;
5ª. No Acórdão Arbitral, de 2015.03.26, decidiu-se o seguinte:
a) Redução do montante da cláusula penal, de € 5.000.000,00 para € 2.000.00000;
b) A redução da cláusula penal apenas produz “efeitos a contar de 29 de Março de 2012”;
c) “Esta decisão deve manter incólume” os demais segmentos decisórios do Acórdão Arbitral de 2009.07.14 - cfr. texto n°. 8;
6ª. É assim manifesto que, contrariamente ao defendido pelos ora recorrentes, não tem qualquer fundamento a contagem, apenas desde 2009.07.14, de juros comerciais sobre o valor de € 5.000.000,00 - cfr. texto n°s. 8 e 9;
7ª. No caso sub judice tem assim de ser respeitado o decidido nos Acórdãos Arbitrais, de 2009.07.14 e de 2015.03.26, bem como o decidido nas decisões proferidas no presente processo - sentença do Tribunal a quo, de 2016.11.10, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 2017.09.14, e acórdãos do Venerando STJ, de 2018.03.22 e de 2018.05.16 -, sob pena de violação do postulado do caso julgado e dos princípios da prevalência, autoridade, imutabilidade e intangibilidade das referidas decisões (v. art. 205º/2 da CRP e arts. 619º e segs. do CPC; cfr. arts. 42º/7 da LAV 2011 e art. 26º da LAV 1986) -cfr. texto n°s. 8 a 11;
D - DA SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
8ª. Como se decidiu - e bem - no douto Acórdão recorrido, é devida sanção pecuniária compulsória desde a prolação do douto Acórdão Arbitral, de 2009.07.14, como foi expressamente requerido pela exequente - cfr. texto n°s. 12 a 15.
Pediu, a final, que seja atribuído efeito meramente devolutivo e (ii) liminarmente rejeitado o presente recurso ou, caso assim não se entenda, (iii) julgado totalmente improcedente, mantendo-se a douta decisão recorrida, com as legais consequências.”
O recurso foi admitido na Relação como de revista excepcional nos termos do disposto nos art.º 671.º n.º 3 e 672.º n.º 1 al. a) e n.º 2 do CPC, com efeito devolutivo, por não terem sido alegados factos em concreto que pudessem levar à conclusão de que a execução da decisão lhe poderia causar prejuízo considerável, não sendo bastante para integrar a previsão do art. 647, nº 4 do CPC. No Supremo, o relator remeteu para tabela.
Foram dados como provados pela Relação os factos que constam do relatório elaborado, factos a que a Relação fez acrescer, ainda, os seguintes:
“1. O título executivo que fundamentou a presente execução constitui um acórdão do tribunal arbitral de 2009.07.14 que decidiu, além do mais, e na parte que a Exequente dá à execução:
“7º Julgar procedente o pedido de aplicação da cláusula penal de indemnização mínima de cinco milhões de euros, estipulada no referido contrato-promessa, e, em consequência, condenar solidariamente os Réus no pagamento imediato à Autora de uma indemnização provisória de cinco milhões de euros, nos quais já se incluem os provados danos emergentes de € 656.386,83 (cfr. supra III, n.º 6.5.).
8º Julgar procedente o pedido relativo a juros de mora legais e, em consequência, condenar solidariamente os Réus ao pagamento à Autora de juros sobre o montante de cinco milhões de euros, calculados, a partir da data da citação dos Réus para a presente acção, às taxas que resultarem da aplicação do artigo 102º § 3º, do Código Comercial (cfr. supra III, n.º 7.2.)”.
2. Neste acórdão a indemnização provisória arbitrada corresponde à indemnização pelos lucros cessantes, aplicando a cláusula penal de € 5.000.000,00 montante no qual incluiu a quantia de € 656.386,83 de danos emergentes.
3. No âmbito da presente execução o AE procedeu às seguintes penhoras:
-Auto de Penhora de 10/03/2010 (penhora saldos bancários): 4.807.037,84 €
- Auto de Penhora de 06/04/2010 (penhora saldo bancário BES): 23.128,71€
- Auto de Penhora de 31/03/2010 (penhora de quotas): 3.125.000,00 €
- Penhora de Créditos Câmara Municipal ...: 9.790,01 €
4. Os Executados vieram requerer a prestação de garantia bancária irrevogável e à primeira solicitação em 09/03/2010, garantia que o Agente de Execução considerou inidónea, tendo o tribunal de 1ª instância indeferido a mesma, decisão que veio a ser revogada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17/05/2011, que aceitou a garantia bancária apresentada pelos Executados como caução e em substituição da penhora, no valor de € 7.919.788,48 nos termos do art.º 821.º n.º 3 do CPC por a considerar garantia idónea.
5. Em 2014.02.11, os executados propuseram no Centro de Arbitragem Comercial, “acção arbitral modificativa do acórdão arbitral proferido em 14.7.2009”, do que veio a resultar um novo Acórdão Arbitral proferido a 2015.03.26 junto aos autos e que aqui se dá como inteiramente reproduzido, constando na sua parte final a seguinte decisão:
“1. Julgar a acção parcialmente procedente e reduzir o montante da pena estabelecida na cláusula penal de indemnização fixada, no anterior acórdão arbitral, em € 5.000.000 (nos quais se incluíam os danos emergentes de € 656.386,83) para € 2.000.000 (nos quais se incluem os danos emergentes de € 656.386,83), acrescida de juros de mora sobre o montante de € 2.000.000, calculados às taxas que resultarem da aplicação do art, 102º, § 3º, do Código Comercial;
2. Decidir que a redução da pena determinada nos termos do número anterior produz efeitos a contar de 29 de Março de 2012. Nestes termos:
a) Os Demandantes continuarão obrigados a pagar à Demandada, desde 14 de Julho de 2009 (data do acórdão arbitral) até 29 de Março de 2012, juros sobre € 5.000.000, calculados às taxas que resultem da aplicação do artigo 102º, § 3, do Código Comercial;
b) Os Demandantes ficarão obrigados a pagar à Demandada € 2.000.000, acrescidos, a contar de 29 de Março de 2012, de juros sobre este montante, calculados às taxas que resultem da aplicação do art. 102º, § 3, do Código Comercial.
3. Condenar a Demandada a restituir aos Demandantes o que deles tiver recebido ou vier a receber relativamente à efectivação da cláusula penal, no que exceder o montante da pena agora fixado e respectivos juros, acrescido de juros, à taxa legal, até efectivo pagamento.
4. Julgar a acção improcedente na parte restante.
6. Este segundo acórdão arbitral considerou a data de 29 de março de 2012 – data do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul que declarou a nulidade do loteamento e da permuta que inviabilizou a promoção imobiliária dos terrenos da ... - como aquela que corresponde aos factos supervenientes, modificando por isso o valor da cláusula penal aplicada de € 5.000.000,00 para € 2.000.000,00 por alteração superveniente das circunstâncias, considerando aquela pena manifestamente excessiva (“a pena se tornou, à luz da própria decisão arbitral manifestamente excessiva”).
7. Após a prolação do segundo Acórdão Arbitral a Exequente não se conformou com a decisão que havia reduzido a indemnização que teria a receber dos Executados, de cinco para dois milhões de euros, tendo intentado, uma ação de anulação que foi considerada improcedente por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 28/01/2016, a que se seguiu um recurso para o Supremo tribunal de Justiça que confirmou o acórdão do Tribunal da Relação, por acórdão de 22/09/2016.
8. A 10/11/2016 foi proferida decisão que declarou "extinta a execução na parte que excede o valor devido pelos executados calculado em conformidade com o decidido no acórdão arbitral de 26.3.2015 e constante do ponto 3) dos factos provados".
9. No Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14/09/2017 após a afirmação de que o acórdão arbitral de 2015 reduziu a pena convencional para 2M euros com efeitos a partir de 29.3.12, concluiu, na p. 6 in fine: – “Daí que, para respeitar os termos e alcance do caso julgado de 2009, [o ac. de 2015] tenha mantido os juros devidos desde 14.7.09 até 29.3.12 calculados sobre os mencionados 5 M euros”.
10. No Acórdão do STJ de 22/03/2018 foi referido “O acórdão de 2009 persiste como título fundador da execução, apenas sofrendo a alteração quantitativa nele produzida pelo acórdão arbitral de 2015.”
11. Na nota de liquidação da obrigação exequenda apresentada pelo AE a 09/06/2018, o mesmo:
- faz incidir os juros de mora legais sobre € 5.000.000,00 no período compreendido entre 31/07/2006 (data da citação dos RR na 1ª ação arbitral) e 29/03/2012 (data do acórdão do TCA Sul, considerado facto superveniente modificativo no 2º acórdão arbitral) - 1º período - e sobre € 2.000.000,00, no período posterior a 30/03/2012 - 2º período;
- faz incidir a sanção pecuniária compulsória sobre o capital de € 5.000.000,00 de 14/07/2009 a 29/03/2012 e sobre o capital de 2.000.000,00 a partir de 30/03/2012;
- reclama como os encargos do processo, além do mais, os seus honorários no valor de € 191.163,87 que calcula em função do valor recuperado de € 6.372.128,88 sobre o qual faz incidir a taxa de 3% em aplicação do art.º 18.º e anexo II da Portaria 331-B/2009 de 30 de março, com a redação atualizada pela Portaria 225/2013 de 10 de Julho.
12. Os Executados procederam ao pagamento da quantia global de € 4.442.471, 62 em 07.12.2018, valor que consideraram corresponder à liquidação da sua dívida nos autos, que fazem corresponder a € 2.000.000,00 de capital, juros de mora sobre a quantia de € 5.000.000,00 de 14.07.2009 a 29.03.2012 e sobre a quantia de € 2.000.000,00 desde 30.03.2012 a 05.12.2018 e juros relativos à sanção pecuniária compulsória desde 26.03.2015 até 05.12.2018.”
Da admissibilidade do recurso:
Respeitando o acórdão recorrido a uma decisão prolatada no âmbito de um processo de execução. a admissibilidade da revista encontra-se sujeita ao disposto no art. 854º do CPC, segundo o qual “sem prejuízo dos casos em que é sempre admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apenas cabe revista, nos termos gerais, dos acórdãos da Relação proferidos em recurso nos procedimentos de liquidação não dependente de simples cálculo aritmético, de verificação e graduação de créditos e de oposição deduzida contra a execução.” A contrario, não cabe, pois, revista (a não ser nos casos em que o recurso é sempre admissível) dos acórdãos da Relação que, em sede de ação executiva, não respeitem a recursos nos procedimentos de liquidação não dependente de simples cálculo aritmético, de verificação e graduação de créditos e de oposição deduzida contra a execução ( Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, volume II, Coimbra, Almedina, 2018, págs. 737-738)
Assim, a questão que se coloca é a de saber se o acórdão da Relação foi proferido no âmbito de um procedimento de liquidação não dependente de simples cálculo aritmético e se, em caso afirmativo, dele cabe revista nos termos gerais.
Como se recorda, o Agente de Execução veio apresentar cálculo quanto às quantias consideradas em dívida, discriminando o capital, valor dos juros vencidos e valor devido a título de sanção pecuniária compulsória, bem como a liquidação dos seus honorários, calculando a quantia exequenda à data de 30.06.2018 em € 7.089.073,48.
Os executados reclamaram, invocando a errónea quantificação dos montantes liquidados e requerendo a revisão da nota discriminativa de despesas e honorários do AE.
Porém, a decisão de 1ª instância julgou improcedente a reclamação apresentada pelos executados, confirmando a correção da quantificação dos montantes liquidados pelo agente de execução.
Inconformados com tal decisão, os executados apresentaram recurso de apelação, tendo sido proferido acórdão que , revogando embora a decisão na parte em que admitia a contabilização da remuneração adicional do Agente de Execução (que aqui não importa), confirmou o decidido na parte em que considerou que o título dado à execução integrava o pagamento à exequente de juros moratórios calculados sobre a quantia de € 5.000.000,00 desde a citação realizada no âmbito da primeira acção arbitral, 7.7.2006, até 29.03.2012, assim como os juros compulsórios a que se reporta o artigo 829.º-A, nº 4 do CC, contabilizados sobre a quantia de €5.000.000,00 a partir do primeiro acórdão arbitral, de 14.7.2009, até 29.03.2012, e sobre o montante de €2.000.000,00 a partir desta última data.
Em face do conteúdo da reclamação e da decisão, afigura-se-nos, pois, que, materialmente, o incidente, no âmbito do qual foi proferida a decisão sobre a qual incidiu o acórdão recorrido, não pode deixar de se reconduzir a um incidente de liquidação não dependente de simples cálculo aritmético.
Como observa Rui Pinto, em CPC anotado, a pág. 446, “Toda a liquidação é um cálculo aritmético, mas necessariamente um cálculo aritmético juridicamente relevante, tanto nos factos em que assenta, como nos efeitos que dela decorrem. Ora se estes vão sempre permitir a prossecução da execução da realização da prestação, já o diferente tratamento processual dos factos em que assenta determina o seu regime: Distingue-se, a este propósito, entre liquidação dependente de simples cálculo aritmético e liquidação não dependente de simples cálculo aritmético. A liquidação dependente de simples cálculo aritmético assenta em factos que ou estão abrangidos pela segurança do título executivo ou são factos que podem ser oficiosamente conhecidos pelo tribunal e agente de execução. Estes são, nos termos gerais, os factos notórios, de conhecimento resultante do exercício das suas funções ou cujo propósito permite esse conhecimento (cf. Artigos 5º, nº 2, al. c) e 412º, entre outros). (…) A liquidação não dependente de simples cálculo aritmético, embora implique também, por definição, um cálculo aritmético, assenta em factos (i.e., em matéria de facto) que, por não estarem abrangidos pela segurança do título executivo, não serem notórios ou não serem de conhecimento oficioso, são passíveis de controversão (…) Esta liquidação carece, por isso, de ser apreciada judicialmente, num processo declarativo acessório, de simples apreciação positiva: o incidente de liquidação.” (sublinhado nosso)
Também o Ac. STJ de 15.12.2020, proc. 26405/09.3YYLSB.L1.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt ponderou que “a caracterização do procedimento de liquidação dependente de simples cálculo aritmético radica na natureza das operações necessárias para a determinação da quantia exequenda.”
Ora, como se verifica através da factualidade provada – em que a decisão arbitral dada à execução foi posteriormente modicada por outro acórdão arbitral (factos 1 e 5). – a liquidação dos juros moratórios e compulsórios que ora se discute não assenta em factos seguramente abrangidos pelo título executivo ou que podem ser oficiosamente conhecidos (por serem notórios ou provenientes do conhecimento resultante do exercício das funções por parte do juiz ou do agente de execução) pois que, para dilucidar o “quantum” de capital relativamente ao qual serão calculados os juros, assim como o “dies quo” da sua contagem, se torna necessário aquilatar em que medida a segunda decisão arbitral modificou a primeira no tópico dos juros (moratórios e compulsórios), juízo que não prescinde (como não prescindiu) de uma apreciação valorativa por parte do tribunal que entrou em linha de conta com a interpretação jurídica das decisões arbitrais dadas à execução.
É certo que, não se encontrando a liquidação dos juros em análise dependente de simples cálculo aritmético, a tramitação seguida no caso se afigurou anómala, posto que os executados deveriam ter sido citados para a contestar em oposição à execução mediante embargos, nos termos do nº 4 do artigo 716º do CPC (aplicável por remissão do nº 5 do mesmo normativo, que alude à execução das decisões arbitrais).
Afigura-se-nos, porém, que tal circunstância não descaracteriza o incidente sob escrutínio como incidente (da própria execução) de liquidação não dependente de simples cálculo aritmético.
Por outro lado, e tendo em atenção que de um tal acórdão deve caber revista nos termos gerais, não existem dúvidas de que a decisão recorrida conheceu do mérito da causa (do incidente) ao julgar improcedente a reclamação apresentada pelos executados à liquidação dos juros moratórios e compensatórios, apreciando uma questão atinente ao “quantum” da dívida exequenda susceptível de formar caso julgado material. A este propósito, trazem-se aqui à colação as palavras de Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª edição, 2022, págs. 403-404 que sublinha que “verificados os requisitos legais respeitantes ao valor e à sucumbência, admite recurso de revista o acórdão da Relação que, no âmbito de uma recurso de apelação interposto de decisão de 1.ª instância (tenha esta um conteúdo formal ou material), julgue procedente ou improcedente o pedido ou algum dos pedidos quanto a todas ou algumas das partes, julgue procedente ou improcedente alguma exceção perentória correspondente a algum facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito em causa ou, em geral, julgue procedente ou improcedente alguma questão atinente ao mérito da causa suscetível de formar caso julgado material.” (sublinhado nosso).
Em suma, o acórdão recorrido integra-se na previsão do nº 1 do art. 671º do CPC, tendo sido proferido num procedimento especialmente contemplado no art. 854º do mesmo diploma.
Mostram-se também reunidos os requisitos atinentes ao valor da causa, ao valor da sucumbência (superior a metade da alçada do tribunal da Relação), à legitimidade dos recorrentes e, bem assim, à tempestividade do recurso (cfr. arts 629º, nº 1, 631º, nº 1 e 674º, nº 1, b) do CPC).
Com excepção da questão suscitada a respeito do valor da causa, que será analisada, a final, não existem dúvidas de que os recorrentes limitaram o objecto da impugnação recursória ao segmento do acórdão que incidiu sobre o despacho da primeira instância, na parte em que este confirmou a liquidação dos juros moratórios e compulsórios levada a cabo pelo agente de execução.
E que sobre essa parte as instâncias decidiram de forma coincidente sem fundamentação essencialmente diferente,
Com efeito, na situação decidenda, a interpretação das decisões sob escrutínio permite concluir que ambas mobilizaram o mesmo enquadramento jurídico, interpretando as normas jurídicas aplicáveis (arts. 295º, 236º a 239º, 829º-A, nº 4 do Código Civil e 716º do CPC) coincidentemente e extraindo idênticas consequências no que respeita à situação concreta. Efectivamente, as duas instâncias procederam à interpretação, por apelo às normas constantes dos arts. 236º e seguintes do Código Civil, do título executivo consubstanciado na decisão arbitral modificativa datada de 26.3.2015 (que reduziu a cláusula penal, fixada em 5 milhões de euros por acórdão arbitral datado de 14.7.2009, para 2 milhões de euros, com o fundamento de aquela ser manifestamente excessiva em função da ocorrência de factos supervenientes), alcançando a conclusão convergente de que o segundo acórdão não modificou o primeiro no segmento da condenação dos recorrentes no pagamento dos juros moratórios sobre a quantia de 5 milhões de euros desde a data da citação e até 29.3.2012 (data do facto modificativo superveniente). A confluência em termos de fundamentação avulta, aliás, como explícita da parte da decisão recorrida que se passa a transcrever: “Neste contexto, que se afigura ser o que decorre da fundamentação jurídica e das questões avaliadas no segundo acórdão arbitral, forçoso se torna concluir que ao decidir-se ali que a redução da pena determinada produz efeito a contar de 29 março de 2012, não pode deixar de considerar-se que não foi alterada a primeira decisão arbitral na parte em que condenou os RR. a pagar os juros legais calculados sobre a quantia de € 5.000.000,00 desde a citação e até àquela data, na determinação de que aquela primeira decisão produz plenamente os seus efeitos até 29.03.2012. Não se vê, aliás, que tivesse muita coerência uma decisão orientada apenas no sentido de salvaguardar os juros calculados sobre tal quantia desde a prolação da decisão arbitral até 29.03.2012 e não os juros desde a citação, em que os RR. também haviam sido condenados, quando se realça que a redução da cláusula penal determinada deve manter incólume a decisão arbitral. Confirma-se, por isso, o despacho recorrido nesta parte, não nos merecendo censura a decisão do tribunal a quo quando conclui: “… a interpretação do acórdão modificativo impõe que se conclua que o mesmo não visou afastar os efeitos do acórdão primitivo anteriores a 29.3.2012 e daí os juros serem devidos sobre os cinco milhões até esta data, pelo que, também não visou revogar o primeiro acórdão no que respeita à data inicial de contagem desses juros, nem fazer qualquer correcção ao julgamento do primeiro acórdão quanto a serem devidos juros desde a citação. Por conseguinte, impõe-se concluir que a liquidação dos juros efectuada pelo senhor AE se mostra conforme ao título executivo, sendo de manter.”
Num outro plano, entenderam as instâncias serem devidos juros compulsórios (que haviam sido peticionados pela exequente na ação declarativa) sobre o valor correspondente à cláusula penal inicialmente fixada (5 milhões de euros) desde a data da prolação da primeira decisão e até 29.3.2012. O tribunal “a quo”, na linha do que fez o tribunal de primeira instância, apreciou, em momento prévio (a ela respondendo negativamente), a questão de saber se o facto de a exequente não ter peticionado e liquidado os juros compulsórios no seu requerimento executivo inicial e de não ter ficado expressamente prevista a sua condenação no acórdão arbitral dado à execução desobrigaria os executados do seu pagamento a final.
É certo que o Tribunal da Relação de Lisboa apoiou a sua conclusão, não apenas na interpretação da segunda decisão arbitral em cotejo com o primitivo acórdão, mas igualmente na análise da finalidade da sanção a que alude o nº 4 do art. 829º-A do Código Civil. Recorde-se, porém, que, tal como o Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado de modo consistente, “o conceito de fundamentação essencialmente diferente não se basta com qualquer modificação ou alteração da fundamentação no iter jurídico que suporta o acórdão do Tribunal da Relação em confronto com a sentença do Tribunal de 1.ª Instância. Afigura-se antes indispensável que, naquele aresto, ocorra uma diversidade estrutural e diametralmente diferente no plano da subsunção do enquadramento normativo da mesma matéria litigiosa” (Ac. STJ de 4.11.2021, proc. nº 26069/18.3T8PRT.P1.S1, subscrito também pelo ora relator, como adjunto). Destarte, “somente deixa de existir dupla conforme quando a solução jurídica prevalecente na Relação seja inovatória, esteja ancorada em preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros que fundamentaram a sentença apelada, sendo irrelevantes discordâncias que não encerrem um enquadramento jurídico alternativo, ou, pura e simplesmente, seja o reforço argumentativo aduzido pela Relação para sustentar a solução alcançada” (Ac. STJ de 31.3.2022, proc. 14992/19.2T8LSB.L1.S1, em www.dgsi.pt).
A esta luz, não obsta, assim, à fundamentação essencialmente coincidente a circunstância de o Tribunal da Relação de Lisboa ter conferido tratamento desenvolvido aos fundamentos da primeira instância (tratamento esse reconduzível à escalpelização da finalidade coercitiva do mecanismo a que alude o artigo. 829º-A, nº 4 do Código Civil) para acompanhar esta na asserção de que os juros compulsórios podem ser cobrados na execução ainda que não tenham sido expressamente peticionados e liquidados pelo exequente. Sublinhando que o primeiro acórdão arbitral considerou que a sanção pecuniária em crise decorria automaticamente da lei, devendo ser reconhecido o direito por ela conferido, as duas pronúncias judiciais confluíram no entendimento de que os recorrentes, a partir daquela primeira decisão, passaram a estar obrigados ao pagamento da cláusula penal - irrelevando, para efeitos de descaracterização da dupla conforme, a circunstância de a segunda instância ter explicitado que se verificava o requisito da mora no cumprimento da obrigação dos recorrentes exigido pelo art. 829º-A, nº 4 do Código Civil.
Do exposto decorre que quanto às questões respeitantes à liquidação dos juros moratórios e compulsórios se verifica entre a decisão de primeira instância e o acórdão recorrido uma conformidade decisória tal como delineada pelo art. 671º, nº 3 do CPC, que obsta ao acesso ao terceiro grau por via do regime ordinário de revista.
Porém, os recorrentes interpuseram revista excepcional, pugnando pela revogação do acórdão recorrido porque: “A)… não se conformam com a nota de liquidação que fez incidir juros de mora legais sobre a quantia de € 5.000.000.000,00, no período compreendido entre 07/07/2006 (data da citação dos RR na 1a ação arbitral) e 29/03/2012 (data do Acórdão do TCA Sul, considerado facto jurídico superveniente na 2a ação arbitral [ por entenderem que, nessa parte, o segundo acórdão arbitral revogou o primeiro]; B) Não podem aceitar que, no caso sub judice, os mesmos incidam sobre a quantia de € 5.000.000,00, a qual, por ter assentado num erro de prognose judicialmente reconhecido, foi reduzida para € 2.000.000,00, por Acórdão arbitral de 26/03/2015 proferido em ação modificativa do Acórdão anterior; C) Ou seja, …não podem conformar-se com a liquidação de juros compulsórios sobre a quantia de € 5.000.000,00 de 14/07/2009 (data do 1o acórdão arbitral) até 29/03/2012.”. No que a estes diz respeito, pretendem, assim, obter decisão no sentido de que qualquer sanção que venha a ser aplicada só pode sê-lo sobre a quantia de dois milhões de euros a partir do trânsito em julgado do segundo acórdão arbitral, datado de 26.3.2015, indicando, designadamente, nas conclusões D) a K), as razões pelas quais se justifica a apreciação da questão para uma melhor aplicação do direito e nas conclusões L) a N) os interesses de relevância social subjacentes à mesma ( als a) e b) do nº 1 do art. 672º do CPC).
Cumprirá à formação de apreciação preliminar a que se reporta o art. 672.º/3 do CPC. ajuizar da verificação dos requisitos da revista excepcional.
Correcção do valor da causa:
Já quanto à questão suscitada pelos recorrentes da correcção do valor da acção, é manifesto que a mesma não é susceptível de ser conhecida em sede de revista (ordinária ou excepcional).
Efectivamente, ainda que o tribunal “a quo” apenas tenha apreciado tal questão em acórdão datado de 6.2.2020, na sequência do pedido apresentado pelos executados a 6.1.2020 de suprimento de uma omissão e suscitação subsidiária de nulidade de acórdão, a verdade é que tal questão, respeitando unicamente ao valor da causa executiva, não se integra nos procedimentos especialmente previstos no art. 854º do CPC.
Por outro lado, é seguro não se tratar de um caso em que o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça é sempre admissível, já que o que os executados pretendem é a diminuição do valor da causa - a qual, de qualquer forma, já excede o valor da alçada do tribunal recorrido (pelo que a pretensão não se enquadra no âmbito do art. 629º, nº 2, al. b) do CPC).
Assim, e quanto a esta decisão, há que concluir que não se verificam os pressupostos gerais de admissibilidade de revista normal, pelo que a revista excepcional – que pressupõe a conformidade de julgados a que alude o art. 671º, nº 3 do CPC, mas que não prescinde da verificação daqueles pressupostos de índole geral – se mostra igualmente vedada.
Sumário (art. 663º, nº 7 do CPC):
“Se a liquidação dos juros moratórios e compulsórios que se discute não assenta em factos seguramente abrangidos pelo título executivo mas da interpretação jurídica de decisões arbitrais que fazem parte integrante desse título, tal liquidação não depende seguramente de simples cálculo aritmético, motivo por que do acórdão que dela aprecia cabe recurso de revista nos termos do art. 854º do CPC”
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em:
a) não conhecer do objecto da revista na parte relativa à pretendida correção do valor da causa;
b) remeter os autos à Formação para apreciação dos requisitos específicos da admissibilidade da revista excepcional.
As custas do recurso ficarão pelos recorrentes, se a revista excepcional não for admitida.
*
Lisboa, 27 de setembro de 2022
António Magalhães (Relator)
Jorge Dias
Jorge Arcanjo