Sumário
I. A lei processual civil estabelece regras quanto à admissibilidade e formalidades próprias de cada recurso, reconhecendo-se que a admissibilidade dum recurso depende do preenchimento cumulativo de três requisitos fundamentais, quais sejam, a legitimidade de quem recorre, ser a decisão proferida recorrível e ser o recurso interposto dentro do prazo legalmente estabelecido para o efeito.
II. O Supremo Tribunal de Justiça tem perfilhado o entendimento de que somente deixa de atuar a dupla conforme, a verificação de uma situação, conquanto a Relação, conclua, sem voto de vencido, pela confirmação da decisão da 1ª Instância, em que o âmago fundamental do respetivo enquadramento jurídico seja diverso daqueloutro assumido neste aresto, quando a solução jurídica prevalecente na Relação seja inovatória, esteja ancorada em preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros que fundamentaram a sentença, sendo irrelevantes discordâncias que não encerrem um enquadramento jurídico alternativo, ou, pura e simplesmente, seja o reforço argumentativo aduzido pela Relação para sustentar a solução alcançada.
III. Os elementos de aferição da conformidade ou desconformidade das decisões das Instâncias têm de se conter na matéria de direito, donde, nenhuma divergência das Instâncias sobre o julgamento da matéria de facto é passível de implicar, por si só, a desconformidade entre aquelas decisões que importem a admissibilidade da revista, em termos gerais, sublinhando-se que a apreciação do obstáculo recursório respeitante à figura da dupla conforme terá sempre e necessariamente de se deter nos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto Tribunal de revista, acentuando-se que qualquer alteração da decisão de facto pela Relação, apenas será relevante para aquele efeito quando implique uma modificação, também essencial, da motivação jurídica, sendo, portanto, esta que servirá de elemento aferidor da conformidade ou desconformidade das decisões.
IV. Decorre do direito adjetivo civil - alínea c) do n.º 1 do art.º 674º do Código de Processo Civil - que a revista pode ter por fundamento as nulidades previstas nas alíneas b) a e) do art.º 615º do Código de Processo Civil, todavia, aquele preceito adjetivo tem de ser relacionado com a norma consagrada no n.º 4 do citado art.º 615º do Código de Processo Civil, donde, não sendo admissível recurso ordinário, aquelas nulidades teriam de ser arguidas mediante reclamação perante o Tribunal que proferiu a decisão.
Decisão Texto Integral
Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça
I. RELATÓRIO
1. AA e outra deduziu a presente reclamação do despacho do Mmº. Juiz Desembargador relator a quo que não admitiu o recurso de revista, em termos gerais, interposto, consignando, a propósito, o seguinte:
“O acórdão oportunamente proferido por este Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente a apelação, confirmando a sentença da primeira instância, reafirmando a absolvição das R.R. de todos os pedidos contra si formulados, sem prejuízo de ressalvar o reconhecimento do direito de propriedade das A.A. sobre o imóvel que identificaram no artigo 1.º da petição inicial.
Nos termos do Art. 671.º n.º 3 do C.P.C.: “Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”.
A fundamentação é essencialmente diferente quando: “a confirmação da decisão da 1ª instância se processa a partir de um quadro normativo substancialmente diverso, como sucede nos casos em que a uma determinada qualificação contratual se sucede uma outra distinta que implica um diverso enquadramento jurídico”; a 1ª instância aplique um regime contratual e a Relação decida com base não enriquecimento sem causa ou com base na nulidade do referido contrato; quando a Relação decida com base em exceção dilatória diferente da julgada em primeira instância (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2013, pág. 285).
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a densificar o Art. 671.º n.º 3 do C.P.C. nestes termos:
- Só pode, pois, considerar-se estarmos perante uma fundamentação essencialmente diferente quando ambas as instâncias divergirem, de modo substancial, no enquadramento jurídico da questão, mostrando-se o mesmo decisivo para a solução final: ou seja, se o acórdão da Relação assentar num enquadramento normativo absolutamente distinto daquele que foi ponderado na sentença de 1.ª instância. Ou, dito, ainda de outro modo: quando o acórdão se estribe definitivamente num enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado do perfilhado na 1.ª instância – cfr. Ac. do S.T.J. de 30/4/2015. Relator: Serra Baptista, Proc. n.º 1583/08 disponível em www.dgsi.pt);
- Estamos perante duas decisões com “fundamentação diferente” se forem diversificados os caminhos percorridos por ambas até à sua idêntica solução final, reportando-se esta realidade jurisdicional à circunstância de o Julgador, ponderando o universo normativo da legislação compreendida no sistema jurídico a que recorre, ter ido buscar distinto regime jurídico daquele que foi selecionado por outro Juiz – cfr. Ac. do S.T.J. de 18/9/2014 – Relator: Silva Gonçalves, Proc. n.º 630/11, disponível no mesmo sítio;
- A diferençada fundamentação da matéria de facto não assume a importância jurídico-recursória que, “prima facie”, dela poderia provir e excessivamente assinalada pelo recorrente, porquanto em termos proficientemente rigorosos, a sua relevância se equaciona, principalmente, na ponderação da subsunção legal que tal variação vai operar e, desta feita, da capacidade de poder renovar a decisão em exame pelo tribunal superior – cfr. Ac. do S.T.J. de 15/5/2014, Relator: Silva Gonçalves, Proc. n.º 5869/09, idem;
- “Fundamentação essencialmente diferente” significa que não é toda e qualquer divergência, por mais insignificante e por mais irrelevante que seja, entre a decisão do tribunal de 1.ª instância e a decisão do tribunal de recurso, que obsta à formação da denominada dupla conforme. Exigem-se divergências marcantes, importantes ou significativas entre essas decisões judiciais, em termos de qualificação ou de enquadramento jurídico, no tocante a aspetos que não sejam acessórios ou secundários para a discussão ou julgamento da causa – cfr. Ac. do S.T.J. de 18/6/2015 – Relatora: Helena Moniz, Proc. n.º 623/10, idem;
- Sempre que o apelante obtenha procedência parcial do recurso na Relação, com uma decisão mais favorável do que a decisão recorrida, está-se perante duas decisões “conformes”, no sentido de impedirem que essa parte possa interpor recurso de revista para o STJ porquanto se a improcedência total da apelação obsta, por imposição do sistema da dupla conforme, à interposição da revista, então também a improcedência parcial dessa apelação não pode deixar de produzir, por idêntica razão, o mesmo efeito impeditivo – cfr. Ac. do S.T.J. de 12/3/2015 – Relator: Leonel Dantas, Proc. n.º 1277/11 idem;
- A verificação da dupla conformidade prevista no n.º 3 do Art. 671.º do NCPC (2013) tem, ademais, como óbice o emprego, pela 2.ª instância, de “fundamentação essencialmente diferente” na manutenção do decidido na 1.ª Instância, expressão que enquadra os casos em que a confirmação da sentença na 2.ª Instância assenta num enquadramento normativo absolutamente distinto daquele que foi ponderado na decisão da 1.ª Instância, o que equivale por dizer que irrelevam uma eventual modificação da decisão de facto efetuada nesta última sede, dissensões secundárias, a não aceitação de um dos caminhos percorridos, ou a mera adição de fundamentos – cfr. Ac. do S.T.J. de 8/1/2015- Relator: João Trindade, Proc. n.º 1229/11, idem.
No caso em apreço, o Tribunal da Relação, para além de julgar improcedentes as nulidades apontadas à sentença recorrida e de não ter procedido a qual alteração à matéria de facto impugnada pela Recorrente, confirmou a sentença da primeira instância com base nos mesmos fundamentos jurídicos, a saber, o regime jurídico da transmissão da posição de arrendatário decorrente do NRAU, mais precisamente do seu Art. 57.º, na sua versão original, que permitia a possibilidade de haver uma dupla transmissão e, bem assim, o regime jurídico aplicável à comunicação dessa transmissão pelo inquilino beneficiário, nos termos do Art. 1107.º do C.C.. Foi este o núcleo central da fundamentação jurídica que sustentou o acórdão do Tribunal da Relação, o qual é inteiramente coincidente com a sentença da 1.ª Instância, logo não houve “fundamentação essencialmente diferente” na manutenção do decidido na 1.ª Instância, nem ela decorre sequer da ressalva feita de que é reconhecido o direito de propriedade das A.A., porque tal já era implícito na sentença recorrida. Assim sendo, verifica-se a dupla conforme que impede a interposição de recurso de revista ordinária, razão pela qual se rejeita este por legalmente inadmissível. - Notifique.
Sem prejuízo, as Recorrentes invocam ainda que haveria fundamento para revista excecional, nos termos do Art. 672.º n.º 1 al. a) do C.P.C. Sucede que, a apreciação da admissibilidade de recurso de revista excecional nesses termos está dependente de apreciação da verificação dos seus pressupostos pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do Art. 672.º n.º 3 do C.P.C. Pelo que, oportunamente será apreciada pela formação daquele Tribunal.”
2. Sustentam as Reclamantes/AA e outra que deve ser deferida a presente reclamação, sem prejuízo da competência da formação para a qualificação da revista excecional, e proferir competente despacho admitindo o recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa sobre a matéria invocada, simultaneamente como revista ordinária e excecional com as consequências sobre o julgamento, em via de recurso, das nulidades invocadas, revogando-se, consequentemente, o despacho de não admissão da revista, enunciando a seguinte argumentação:
“I – INTRODUÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO DA PRESENTE RECLAMAÇÃO
1. Deduziram as aqui recorrentes alegações de recurso de revista do douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, o qual manteve integralmente a decisão de 1ª instância e que, apesar de ressalvar o reconhecimento do direito de propriedade das recorrentes sobre o imóvel que identificaram no artigo 1º da Petição Inicial, confirmou assim a absolvição das recorridas todos os pedidos deduzidos pelas recorrentes.
2. Esse Recurso de Revista foi interposto com base em três fundamentos que permitiam a sua admissão e que eram os seguintes:
a) Interposição do recurso de revista como revista ordinária, atendendo a inexistência real de dupla conforme e face ao que dispõe o art. 671º nº 3 do CPC;
b) A dedução de nulidades do acórdão, as quais de acordo com os arts. 615º nº 1 e nº 4 e 666º ambos do CPC seriam dedutíveis pela via de recurso;
c) Interposição do recurso como revista extraordinária uma vez que estava em causa designadamente os institutos da caducidade do arrendamento e da realização de obras não autorizadas, institutos fundamentais do direito do arrendamento, designadamente quando está em causa o conceito de exercício de propriedade privada, bem como o direito de habitação da família das recorrentes.
3. Sobre a alínea c), quer o douto despacho do Sr. Desembargador Relator quer o acórdão subsequente entenderam e confirmaram que a subsunção do recurso à natureza de revista excecional carecia sempre de apreciação pela formação do Supremo Tribunal de Justiça, de acordo com o art. 672º nº 3 do CPC, razão pela qual, e nessa parte, mandaram subir o recurso.
4. Por isso a presente reclamação só tem por objeto impugnar a não admissão de revista ordinária e em consequência impugnar também não serem as nulidades arguidas admitidas para serem julgadas pela via de recurso.
II – A REJEIÇÃO DO RECURSO COMO REVISTA ORDINÁRIA
5. Com efeito, entendem as recorrentes que não existiu efetiva dupla conforme entre a sentença de primeira instância e o douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.
6. Na verdade, a situação de o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa dizer que mantém a decisão recorrida, mas simultaneamente ressalvar o reconhecimento do direito de propriedade das recorrentes, que corresponde a um pedido autónomo deduzido na petição, afasta salvo melhor opinião, o conceito da dupla conforme.
7. E certo é que o reconhecimento do direito de propriedade da consequente constatação da dupla transmissão, nos termos em que está definida no douto acórdão, não permite deduzir que se está perante duas decisões conformes e uniformes e, como tal, insuscetíveis de recurso, porquanto a legitimidade processual das recorrentes só ficou própria e definida com a procedência do pedido do direito de propriedade consequente.
8. É que, como se pode ver da petição da presente acção, e, aliás sumariada no Acórdão proferido, constituem os pedidos da presente acção: a) o reconhecimento do direito de propriedade das recorrentes sobre o imóvel sito no largo ..., ... em ...; b) a correspondente desocupação pelas recorridas do referido imóvel entregando-o livre e devoluto às recorrentes; c) a pagar a título de indemnização a quantia de €2.000,00 euros por mês que corresponde sensivelmente ao valor locativo dado como provado no ponto 20 dos factos provados; d) e como pedido subsidiário, ser declarado resolvido o contrato com a condenação a despejo imediato por concretização de obras não autorizadas no locado e que também poriam em risco a natureza estrutural do prédio.
9. Verifica-se assim dos mesmos pedidos que, em termos dos diversos pedidos deduzidos, aquele que consta da alínea a) tem a ver com a titularidade registral do imóvel e o pedido sobre a alínea c) da indemnização requerida, respeita não só ao facto da sentença recorrida ter atribuído o arrendamento a quem nunca o requereu, como também a tal pretenso transmissário ser obrigado a indemnizar os danos derivados da omissão de não ter requerido novo arrendamento e da obrigação que tal transmissão o vinculava.
10. Só a questão da desocupação, seja por invalidade da transmissão, seja por fundamento da resolução contratual é que eram decorrentes dos pedidos efetuados nas anteriores alíneas.
11 Ora, cotejando a parte decisória do Acórdão, verifica-se que a mesma julga a presente ação totalmente improcedente por não provada absolvendo as recorridas de todos os pedidos.
12. Porém, a rejeição do recurso como Revista Ordinária parte do errado entendimento que o reconhecimento do direito de propriedade e consequentes pedidos em nada prejudicava a sentença de primeira instância, o que se mantém ser totalmente incoerente, pois tendo a sentença de primeira instância dado como procedente um dos pedidos da ação, não podia, na parte dispositiva, vir julgar a ação totalmente improcedente, tanto mais estabelecendo a sua natureza como ação de reivindicação, mas omitindo a pronúncia sobre o direito de propriedade.
13. Por outro lado, e sobre a indemnização pedida, determina o Acórdão confirmativo da sentença de 1ª Instância que o pedido de indemnização tem de improceder, dado que a improcedência do pedido da indemnização, confirmada pelo acórdão da Relação, não teve em conta que, mesmo julgando as duas transmissões admissíveis, a contrapartida sinalagmática da renda nunca seria igual á renda que vigorava à data da morte da inquilina transmissária.
14. Confirma-se, por isso, que, quer sobre a questão do direito de propriedade, quer sobre o direito de indemnização, não existiu dupla conforme que impedisse o reconhecimento de que o recurso, como revista ordinária, deveria ser admitido.
Para além disso,
III – A QUESTÃO DAS NULIDADES
15. A não admissão do recurso como revista ordinária prejudica também e inexoravelmente a pronúncia desse Tribunal Superior sobre tais nulidades.
16. Efetivamente, dispõe o nº 4 do art. 615º do CPC que as nulidades que não sejam as que resultem da inexistência da assinatura do Juiz, só podem ser decididas pelo Tribunal a quo se a decisão não admitir recurso.
17. Significa isto que a decisão sobre nulidades constante do douto acórdão notificado, foi deliberada em conferência do Tribunal da Relação de Lisboa, como decisão sem recurso, em função de não ter sido admitida a revista ordinária.
18. Com efeito, a deliberação sobre as nulidades feita pelo Tribunal da Relação foi realizada ao abrigo do art. 615º nº 4 do CPC, quando, a existir recurso, a deliberação sobre as nulidades deveria ter sido produzida nos termos do art. 617º do mesmo código.
19. Assim, e formalmente, a não admissão da revista ordinária conduziu a uma também inválida decisão definitiva sobre a natureza das nulidades, quando as mesmas deveriam ser apreciadas no âmbito do recurso de revista.
20. Determina o art. 615º nº 1 alínea c) do CPC que é nula a sentença, quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
21. Daqui resulta que, dando a sentença como provado o direito de propriedade das autoras, e sendo este um dos pedidos, não poderia decidir julgando totalmente improcedente a presente ação.
22. Acresce que, mesmo no caso de manutenção do arrendamento, tendo este sido atribuído na sentença recorrida a quem nunca o requereu, o caso da segunda recorrida, e não estando esta isenta de atualização da renda, não poderia também a sentença recorrida julgar improcedente o pedido de indemnização, pois quanto à sua natureza ela seria sempre devida, podendo quando muito discutir-se o quantum.
23. Ambas estas matérias determinariam a nulidade da sentença de acordo com o art. 615 nº 1, alínea c) do CPC, especialmente pelas consequências que têm ao nível dos restantes pedidos da ação, não podendo o Acórdão recorrido mantê-lo com base em que se trata de um mero erro lógico-discursivo, e impedir, pela não admissão da revista com a natureza de ordinária, a análise e decisão sobre as nulidades a ser feita por tribunal superior.
IV – A CORRECÇÃO E A ADEQUAÇÃO DA PRESENTE RECLAMAÇÃO
24. No despacho e no douto acórdão que não admitiram o recurso como revista ordinária e que é objecto da presente reclamação, os Exmos. Desembargadores elencam como fundamentos que a ressalva do reconhecimento do direito de propriedade e a questão da indemnização em relação ao regime das vendas era fundamento de não admissão da revista ordinária, o que conduziu à definitividade da decisão sobre nulidades colocadas em primeira instância.
25. E certo é que sobre o acórdão em recurso, a deliberação que não admite o recurso interposto, entende que a questão das nulidades suscitadas já tinha sido definida no respectivo acórdão, o que não corresponde à realidade uma vez que pelas razões invocadas continuam, com a confirmação da sentença de primeira instância, a permanecer nos autos com toda a sua irregularidade jurídica.
26. Dentro de todo este enquadramento, confirma-se que não versa a presente reclamação sobre a mera não admissão do presente recurso de revista, na parte qualificada como revista ordinária, para o Supremo Tribunal de Justiça mas sim em terem sido negadas nulidades especificas deduzidas no recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa sobre as questões do direito de colocadas em 1ª instância designadamente do direito de propriedade e do pedido indemnizatório.
27. É por isso a reclamação do art. 643º do CPC, e sem prejuízo da superior competência da formação sobre a admissibilidade da revista excecional, a sede jurídica própria para impugnar a não admissão de um recurso como revista ordinária com alçada e decisões em grande parte dissemelhantes nas instâncias apesar de definido pelo próprio Tribunal da Relação sem qualquer consequência na manutenção da sentença de primeira instância.
Nestes termos e nos mais de Direito, vêm as reclamantes requerer a V. Exa. que se digne, analisada a presente reclamação e sem prejuízo da douta competência da formação para a qualificação da revista excecional, julgá-la procedente e provada e designadamente quanto à não admissão de revista ordinária pelo tribunal da Relação, e proferir competente despacho admitindo o recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa sobre a matéria invocada, simultaneamente como revista ordinária e excecional com as consequências sobre o julgamento, em via de recurso, das nulidades invocadas.”
3. Este Tribunal ad quem proferiu decisão singular, em cujo dispositivo consignou: “Termos em que se decide manter o despacho reclamado. Custas pelas Reclamantes/Recorrentes/Autoras/AA e outra. Notifique.”
4. Notificados os litigantes da aludida decisão singular, as Reclamantes/Recorrentes/Autoras/AA e outra, mostraram o seu inconformismo, tendo reclamado para a Conferência, nos termos do disposto nos artºs. 652º n.º 3 do Código de Processo Civil, consignando a propósito:
“I – A QUESTÃO FORMAL DA PRESENTE RECLAMAÇÃO
1. Dispõe o art. 652º nº 3 do CPC que, quando a parte se considere prejudicada por qualquer despacho de relator que não seja de mero expediente, pode requerer que sobre a matéria da decisão singular, recaia um acórdão com submissão do caso à conferência.
2. Neste caso concreto, e uma vez que, nem existindo em rigor dupla conforme, ter sido o presente recurso deduzido também como revista excecional relativamente a questões de grande relevância jurídica como o direito de propriedade das recorrentes e o respectivo direito à habitação da sua família, estava a revista em condições de ser admitido.
3. Era, por isso, sempre o presente processo suscetível de recurso para o Venerando Supremo Tribunal de Justiça como revista ordinária e excecional, o que foi negado pela decisão singular notificada.
4. A douta decisão singular notificada não admitiu, no Tribunal ad quem, o recurso de revista interposto nem dele tomou conhecimento, fundamentando-se prática e unicamente na alegação de que:
a) Inexistiria dupla conforme, que é afastada, pelas sucessivas decisões das instâncias, e que também não é relevante para os termos da revista excecional pelo artigo 672º nº 1 do CPC.
b) E por outro lado que também julgava o recurso inadmissível por não se integrar nas situações previstas no nº 2 do art. 671º do CPC.
5. Em função deste enquadramento, e pelas razões expostas, deduzem as recorrentes desde já um pedido de acórdão pela admissão do presente recurso de revista e sua respetiva procedência com a revogação do acórdão recorrido.
II – INTRODUÇÃO E FUNDAMENTOS DO PRESENTE PEDIDO DE SUBMISSÃO À CONFERÊNCIA
6. Deduziram as aqui recorrentes alegações de recurso de revista do douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, o qual aparentemente manteve integralmente a decisão de 1ª instância e que, apesar de ressalvar o reconhecimento do direito de propriedade das recorrentes sobre o imóvel que identificaram no artigo 1º da Petição Inicial, confirmou assim a absolvição das recorridas todos os pedidos deduzidos pelas recorrentes, quando um deles era exactamente o reconhecimento de tal direito de propriedade.
7. Esse Recurso de Revista foi interposto com base em três fundamentos que permitiam a sua admissão e que eram os seguintes:
a) Interposição do recurso de revista como revista ordinária, atendendo a inexistência real de dupla conforme e face ao que dispõe o art. 671º nº 3 do CPC;
b) A dedução de nulidades do acórdão, as quais de acordo com os arts. 615º nº 1 e nº 4 e 666º ambos do CPC seriam dedutíveis pela via de recurso;
c) Interposição do recurso como revista extraordinária uma vez que estava em causa designadamente os institutos da caducidade do arrendamento e da realização de obras não autorizadas, institutos fundamentais do direito do arrendamento, designadamente quando está em causa o conceito de exercício de propriedade privada, bem como o direito de habitação da família das recorrentes.
8. Sobre a alínea c), a douta decisão singular do Exmº Conselheiro Relator entendeu e confirmou que a subsunção do recurso à natureza de revista excecional carecia sempre de o mesmo recurso ser admitido com os fundamentos da revista ordinária.
9. Por isso, a mesma decisão singular acabou por não admitir a revista ordinária e em consequência não levar à apreciação da formação o presente recurso e em consequência também não serem decididas as nulidades arguidas e admitidas para serem julgadas pela via do recurso.
III – A REJEIÇÃO DO RECURSO COMO REVISTA ORDINÁRIA E EXCEPCIONAL
10. Com efeito, entendem as recorrentes que não existiu efetiva dupla conforme entre a sentença de primeira instância e o douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.
11. Na verdade, a situação de o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa dizer que mantém a decisão recorrida, mas simultaneamente ressalvar o reconhecimento do direito de propriedade das recorrentes, que corresponde a um pedido autónomo deduzido na petição, afasta salvo melhor opinião, o conceito da dupla conforme.
12. E certo é que o reconhecimento do direito de propriedade da consequente constatação da dupla transmissão, nos termos em que está definida no douto acórdão, não permite deduzir que se está perante duas decisões conformes e uniformes e, como tal, insuscetíveis de recurso, porquanto a legitimidade processual das recorrentes só ficou própria e definida com a procedência do pedido do direito de propriedade consequente.
13. É que, como se pode ver da petição da presente acção, constituem os pedidos da presente acção:
a) o reconhecimento do direito de propriedade das recorrentes sobre o imóvel sito no largo ..., ... em ...;
b) a correspondente desocupação pelas recorridas do referido imóvel entregando-o livre e devoluto às recorrentes;
c) a pagar a título de indemnização a quantia de €2.000,00 euros por mês que corresponde sensivelmente ao valor locativo dado como provado no ponto 20 dos factos provados;
d) e como pedido subsidiário, ser declarado resolvido o contrato com a condenação a despejo imediato por concretização de obras não autorizadas no locado e que também poriam em risco a natureza estrutural do prédio.
14. Verifica-se assim dos mesmos pedidos que, em termos dos diversos pedidos deduzidos, aquele que consta da alínea a) tem a ver com a titularidade registral do imóvel e o pedido sobre a alínea c) da indemnização requerida, respeita não só ao facto da sentença recorrida ter atribuído o arrendamento a quem nunca o requereu, como também a tal pretenso transmissário ser obrigado a indemnizar os danos derivados da omissão de não ter requerido novo arrendamento e da obrigação que tal transmissão o vinculava.
15. Só a questão da desocupação, seja por invalidade da transmissão, seja por fundamento da resolução contratual é que eram decorrentes dos pedidos efetuados nas anteriores alíneas.
16. Ora, cotejando a parte decisória do Acórdão, verifica-se que a mesma julga a presente ação totalmente improcedente por não provada absolvendo as recorridas de todos os pedidos.
17. Porém, a rejeição do recurso como Revista Ordinária e Extraordinária parte do errado entendimento que o reconhecimento do direito de propriedade e consequentes pedidos em nada prejudicava a sentença de primeira instância, o que se mantém ser totalmente incoerente, pois tendo a sentença de primeira instância dado como procedente um dos pedidos da ação, não podia, na parte dispositiva, vir julgar a ação totalmente improcedente, tanto mais estabelecendo a sua natureza como ação de reivindicação, mas omitindo a pronúncia sobre o direito de propriedade.
18. Por outro lado, e sobre a indemnização pedida, determina o Acórdão confirmativo da sentença de 1ª Instância que o pedido de indemnização tem de improceder, dado que a improcedência do pedido da indemnização, confirmada pelo acórdão da Relação, não teve em conta que, mesmo julgando as duas transmissões admissíveis, a contrapartida sinalagmática da renda nunca seria igual á renda que vigorava à data da morte da inquilina transmissária.
19. Confirma-se, por isso, que, quer sobre a questão do direito de propriedade, quer sobre o direito de indemnização, não existiu dupla conforme que impedisse o reconhecimento de que o recurso, como revista ordinária, deveria ser admitido.
Para além disso,
IV – A QUESTÃO DAS NULIDADES
20. A não admissão do recurso como revista prejudica também e inexoravelmente a pronúncia desse Tribunal Superior sobre tais nulidades.
21. Efetivamente, dispõe o nº 4 do art. 615º do CPC que as nulidades que não sejam as que resultem da inexistência da assinatura do Juiz, só podem ser decididas pelo Tribunal a quo se a decisão não admitir recurso.
22. Significa isto que a decisão sobre nulidades constante do douto acórdão notificado, foi deliberada em conferência do Tribunal da Relação de Lisboa, como decisão sem recurso, em função de não ter sido admitida a revista ordinária.
23. Com efeito, a deliberação sobre as nulidades feita pelo Tribunal da Relação foi realizada ao abrigo do art. 615º nº 4 do CPC, quando, a existir recurso, a deliberação sobre as nulidades deveria ter sido produzida nos termos do art. 617º do mesmo código.
24. Assim, e formalmente, a não admissão da revista conduziu a uma também inválida decisão definitiva sobre a natureza das nulidades, quando as mesmas deveriam ser apreciadas no âmbito do recurso de revista.
25. Determina o art. 615º nº 1 alinea c) do CPC que é nula a sentença, quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
26. Daqui resulta que, dando a sentença como provado o direito de propriedade das autoras, e sendo este um dos pedidos, não poderia decidir julgando totalmente improcedente a presente ação.
27. Acresce que, mesmo no caso de manutenção do arrendamento, tendo este sido atribuído na sentença recorrida a quem nunca o requereu, o caso da segunda recorrida, e não estando esta isenta de atualização da renda, não poderia também a sentença recorrida julgar improcedente o pedido de indemnização, pois quanto à sua natureza ela seria sempre devida, podendo quando muito discutir-se o quantum.
28. Ambas estas matérias determinariam a nulidade da sentença de acordo com o art. 615 nº 1, alínea c) do CPC, especialmente pelas consequências que têm ao nível dos restantes pedidos da ação, não podendo o Acórdão recorrido mantê-lo com base em que se trata de um mero erro lógico-discursivo, e impedir, pela não admissão da revista, a análise e decisão sobre as nulidades a ser feitas por Tribunal Superior.
V - A REVISTA EXCEPCIONAL
29. Por outro lado, e como se disse a revista excepcional foi também interposta para permitir a reanálise dos institutos da caducidade do arrendamento e a realização de obras não autorizadas, e a respectiva concertação com os conceitos de exercício de propriedade privada e do direito à habitação da família das recorrentes.
30. Esta questão teria que ser necessariamente julgada, segundo o artº 672º, nº 3 do CPC pela formação, designadamente pelos três Conselheiros mais antigos das Secções Cíveis, tal como aliás o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu em despacho com a referência ...71, datado de 26/04/2022.
31. A decisão singular, ao decidir não admitir o recurso sem a própria submissão à conferência, veio violar tal normativo não podendo o recurso ser rejeitado por tal decisão.
VI – A RAZÃO DO PRESENTE PEDIDO DE SUBMISSÃO À CONFERÊNCIA DA DECISÃO SINGULAR DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
32. Foi neste enquadramento que a decisão singular aqui posta em crise confirmou a não admissão do recurso à revelia da natureza da decisão recorrida, da ofensa dos direitos constitucionais sobre o direito da propriedade e do direito à habitação da família das recorrentes, dos direitos substantivos sobre os institutos da caducidade do arrendamento e de realização de obras não autorizadas e dos pressupostos adjetivos da inexistência da dupla conforme face ao reconhecimento pela primeira vez pelo Tribunal da Relação de Lisboa do direito de propriedade das recorrentes.
33. Por tudo quanto se alegou, a decisão singular não teve em conta os verdadeiros pressupostos processuais e substantivos do recurso de revista e muito particularmente o carater definitivo do acórdão recorrido em relação às matérias que se apresentavam controvertidas.
34. E a decisão constitui uma decisão final que põe termo à causa sem curar de analisar a inexistência da dupla conforme nem os direitos constitucionais que se colocam no processo.
35. Sendo todos estes aspetos que causam prejuízo irreparável às recorrentes que ficarão impossibilitadas de deduzir o seu recurso de revista que lhe é conferido por lei, conforme se demonstrou, e que só através de prolação de douto acórdão poderá a questão ser ultrapassada.
Nestes termos e nos demais de Direito, vêm as recorrentes requerer a V. Exas. que a decisão singular de não admissão de recurso de revista seja submetida à conferência e a douto julgamento de Tribunal Coletivo que permita a admissão do consequente recurso de revista, com o que se fará a costumada JUSTIÇA
5. BB e CC, Recorridas nos autos, apresentaram resposta, tendo concluído: “Nestes termos e nos mais de Direito deve a reclamação das Recorrentes ser submetida apresentada a colectivo para prolação de acórdão apenas e tão-só sobre a matéria julgada na reclamação, ou seja, sobre a apreciação da inamissibilidade da revista ordinária e sobre a impossibilidade de apreciação das nulidades arguidas pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Ser confirmada a inamissibilidade do recurso das Recorrentes como revista ordinária e, por conseguinte, ser confirmada a impossibilidade de apreciação das nulidades arguidas em tal recurso pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Ser confirmada a relegação da apreciação da inamissibilidade do recurso das Recorrentes como revista extraordinária apreciação preliminar sumária nos termos previstos no n.º 3 do art. 672.ºdo CPC.
Para o caso do entendimento de V. Exas. ser o de que a decisão singular ora reclamada apreciou a inadmissibilidade do recurso como revista excepcional, ser a julgada inadmissível a revista excepcional por inexistirem questões controversas ou inéditas ou cuja reapreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito e também na medida em que as Recorrentes nem sequer identificaram as exactas razões pelas quais uma tal reapreciação seria (por hipótese) claramente necessária para uma melhor aplicação do direito (cf. art. 672.º, n.º 2 do CPC).
6. Foram dispensados os vistos.
7. Cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
Cotejada a argumentação aduzida pelas Reclamantes/Autoras/AA e outra, ao impetrarem que seja proferido acórdão que revogue a decisão singular reclamada e se admita o recurso de revista, este Tribunal ad quem não retira da respetiva argumentação, virtualidade bastante que infirme a decisão singular, entretanto proferida.
Cremos que se distingue, com clareza, da decisão singular proferida que manteve o despacho reclamado que não admitiu o recurso de revista interposto, concluindo pela inadmissibilidade da revista, argumentação bastante para que se sustente a bondade de tal decisão, permitindo-nos, a propósito, respigar o que então foi consignado:
“A previsão expressa dos tribunais de recurso na Lei Fundamental, leva-nos a reconhecer estar vedado ao legislador suprimir, sem mais, em todo e qualquer caso, a prerrogativa ao recurso, admitindo-se, todavia, que o mesmo estabeleça regras/normas sobre a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões. A este propósito o Tribunal Constitucional sustenta que “Na verdade, este Tribunal tem entendido, e continua a entender, com A. Ribeiro Mendes (Direito Processual Civil, III - Recursos, AAFDL, Lisboa, 1982, p. 126), que, impondo a Constituição uma hierarquia dos tribunais judiciais (com o Supremo Tribunal de Justiça no topo, sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional - artigo 210º), terá de admitir-se que “o legislador ordinário não poderá suprimir em bloco os tribunais de recurso e os próprios recursos” (cfr. a este propósito, Acórdãos nº 31/87, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 9, pág. 463, e nº 340/90, id., vol. 17, pág. 349). Como a Lei Fundamental prevê expressamente os tribunais de recurso, pode concluir-se que o legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática. Já não está, porém, impedido de regular, com larga margem de liberdade, a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões (…)”. (Acórdão n.º 159/2019 de 13 de março de 2019).
Na Doutrina, sustenta Rui Pinto, in, Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra, 2015, páginas 174-175, “se o objeto de recurso de apelação é irrestrito, apenas com especificidades quanto à oportunidade da sua dedução (cf. art. 644º), já o objeto do recurso de revista é tipificado pela lei (…). Nesta perspectiva, o direito ao recurso é essencialmente garantido pelo regime do recurso de apelação, ficando reservada para a revista uma função de estabilização e uniformização na aplicação do direito (…).”
Também Abrantes Geraldes, in, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, páginas 335-336, salienta que “com o CPC de 2013 se encontra consolidada a ideia de que o triplo grau de jurisdição em matéria cível não constitui garantia generalizada. Ainda que ao legislador ordinário esteja vedada a possibilidade de eliminar em absoluto a admissibilidade do recurso de revista para o Supremo (…), ou de elevar o valor da alçada da relação a um nível irrazoável e desproporcionado que tornasse o recurso de revista praticamente inatingível na grande maioria dos casos, não existem obstáculos à previsão de determinados condicionalismos a tal recurso. Aliás, (…) o Tribunal Constitucional vem uniformemente entendendo que as normas que, em concreto, restringem o recurso para o Supremo não estão feridas de inconstitucionalidade. O mesmo se poderá dizer das regras que limitam o recurso de decisões intercalares (…).”
Assim, a lei processual civil estabelece regras quanto à admissibilidade e formalidades próprias de cada recurso, reconhecendo-se que a admissibilidade dum recurso depende do preenchimento cumulativo de três requisitos fundamentais, quais sejam, a legitimidade de quem recorre, ser a decisão proferida recorrível e ser o recurso interposto dentro do prazo legalmente estabelecido para o efeito.
No caso que nos ocupa está reconhecida a tempestividade e legitimidade das Recorrentes/Autoras/AA e outra, uma vez que a interposição do recurso obedeceu ao prazo legalmente estabelecido, e a decisão de que recorre lhe foi desfavorável, encontrando-se, pois, a dissensão quanto a ser a decisão proferida recorrível.
Neste particular há que convocar as regras recursivas adjetivas civis, concretamente o art.º 671º n.º 3 do Código de Processo Civil, atinente à irrecorribilidade das decisões do Tribunal da Relação em consequência da dupla conforme, nos precisos termos aí concretizados (…não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância …).
Com o deliberado objetivo de racionalizar o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça e acentuar as suas funções de orientação e uniformização de jurisprudência, consagra o direito adjetivo civil - art.º 671º n.º 3 do Código de Processo Civil - a regra da chamada dupla conforme que torna inadmissível o recurso do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1ª instância.
Do art.º 671º n.º 3 do Código de Processo Civil condizente ao n.º 3 do art.º 721º do anterior Código do Processo Civil, com a redação do Decreto-Lei n.º 303/2007 de 24 de Agosto, decorre, importar, agora, que a decisão da segunda instância não tenha uma fundamentação essencialmente diferente da decisão de primeira instância para que produza a dupla conforme, ao contrário do que acontecia com a alteração adjetiva civil, imposta pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, em que se abstraía da fundamentação do acórdão da segunda instância para que se verificasse a dupla conforme.
Levada a cabo a exegese do consignado normativo adjetivo civil o Supremo Tribunal de Justiça tem perfilhado o entendimento de que somente deixa de atuar a dupla conforme, a verificação de uma situação, conquanto a Relação, conclua, sem voto de vencido, pela confirmação da decisão da 1ª Instância, em que o âmago fundamental do respetivo enquadramento jurídico seja diverso daqueloutro assumido neste aresto, quando a solução jurídica prevalecente na Relação seja inovatória, esteja ancorada em preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros que fundamentaram a sentença apelada, sendo irrelevantes discordâncias que não encerrem um enquadramento jurídico alternativo, ou, pura e simplesmente, seja o reforço argumentativo aduzido pela Relação para sustentar a solução alcançada.
Torna-se necessário, pois, para que a dupla conforme deixe de atuar, a aquiescência, pela Relação, da solução jurídica sufragada em 1ª Instância, suportada num enquadramento jurídico inovatório, que aporte preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros enunciados no aresto apelado, neste sentido, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Fevereiro de 2015, de 30 de Abril de 2015, de 28 de Maio de 2015, de 26 de Novembro de 2015, de 16 de Junho de 2016, e de 8 de Novembro de 2018, in, http://www.dgsi.pt/stj, e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, não publicado [Processo n.º 856/12.4TJVNF.G1.S1], desta 7ª Secção Cível, proferido em 4 de Julho de 2019, pelo relator da presente decisão singular.
A este propósito, sustenta António Abrantes Geraldes, in, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª edição, Almedina, página 349, “que com o CPC de 2013 foi introduzida uma nuance: deixa de existir dupla conforme, seguindo a revista as regras gerais, quando a Relação, para a confirmação da decisão da 1ª instância, empregue “fundamentação essencialmente diversa”. A admissibilidade do recurso de revista, no caso do acórdão da Relação ter confirmado, por unanimidade, a decisão da 1ª instância, está, assim, dependente do facto de ser empregue “fundamentação substancialmente diferente”. Aclarando o sentido e alcance da expressão “fundamentação essencialmente diferente”, elucida Abrantes Geraldes, in, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª edição, Almedina, página 352, que “a aferição de tal requisito delimitador da conformidade das decisões deve focar-se no eixo da fundamentação jurídica que, em concreto, se revelou crucial para sustentar o resultado declarado por cada uma das instâncias, verificando se existe ou não uma real diversidade nos aspectos essenciais”.
Outrossim, anota-se que quando a parte dispositiva do aresto recorrido contém mais do que um segmento decisório, um ou uns em conformidade e outro ou outros em desconformidade com a primeira decisão judicial, o cotejo de cada um dos segmentos é decisivo para delimitar a divergência relevante para aferir da conformidade das decisões.
A revista, em termos gerais, deve “circunscrever-se ao segmento ou segmentos que revelem uma dissensão entre o resultado declarado pela 1.ª instância e pela Relação ou relativamente aos quais exista algum voto de vencido de um dos três juízes do colectivo (…) se quanto a determinado segmento se verificar a confirmação do resultado declarado na 1.ª instância, sem qualquer voto de vencido e com fundamentação essencialmente idêntica, fica eliminada, nessa parte, a interposição de recurso “normal” de revista. Em tal circunstância, o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça ficará dependente do acionamento da revista excecional e da sua aceitação pela formação referida no art. 672.º, n.º 3”, neste sentido, Abrantes Geraldes, in, Recursos no Novo Código do Processo Civil, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2018, página 370.
No caso sub iudice, confrontadas as decisões proferidas em 1ª e 2ª Instâncias, divisamos que o acórdão da Relação concluiu, sem voto de vencido, pela confirmação da decisão da 1ª Instância, reafirmando a absolvição das Rés de todos os pedidos contra si formulados, sem prejuízo de ressalvar o reconhecimento do direito de propriedade das Autoras sobre o imóvel que identificaram no art.º 1º da petição inicial.
Resulta consignado no acórdão recorrido, e com utilidade, para a economia da presente apreciação: “(…) as questões essenciais a decidir são as seguintes:
(…)
c) A reivindicação e a caducidade do contrato de arrendamento que tinha por objeto o imóvel reivindicado;
(…)
g) As custas do processo.
(…)
3. Da reivindicação e caducidade do direito ao arrendamento.
(…) Numa ação de reivindicação a eventual subsistência do arrendamento, como vínculo contratual que legitima a detenção da coisa pelas R.R., é apenas relevada como facto impeditivo à procedência do pedido de restituição da coisa, nos termos do disposto no Art. 1311.º n.º 2 “in fine” do C.C., funcionando assim como um caso típico de fundamento de recusa da restituição previsto na lei.
Neste contexto, cumpre ainda tomar posição sobre a divergência doutrinária que deixámos expressa no ponto 1.1. do presente acórdão, nomeadamente por nos parecer que as Recorrentes suscitaram a nulidade da sentença com o propósito de, em qualquer caso, verem julgado por procedente o pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel que identificaram no artigo 1.º da petição inicial.
É nosso entendimento que a ação de reivindicação, tal como ela é regulada no Art. 1311.º do C.C., pressupõe necessariamente a formulação de dois pedidos cumulativos: o de reconhecimento do direito de propriedade, por um lado, e o de restituição da coisa reivindicada, por outro. É isso que resulta literalmente da lei.
Na mesma medida, a procedência da ação de reivindicação está sempre dependente da procedência desses dois pedidos. Pelo que, se não se provar que os A.A. são proprietários da coisa reivindicada, ou se os detentores demandados provarem que são titulares de direito que legitime a sua posse ou detenção sobre a coisa reivindicada, a ação de reivindicação improcede necessariamente na totalidade, porque não é cumprida a finalidade que ela pressupõe na sua plenitude.
Admitimos ainda assim, como Luís Menezes Leitão (in “Direitos Reais”, 8.ª Ed., pág. 234), que o tribunal possa limitar-se a reconhecer o direito de propriedade, não condenando na restituição da coisa, quando os demandados logrem provar serem legítimos titulares de direito incompatível com o pedido de restituição. Mas daí não decorre uma procedência parcial da ação de reivindicação. A ação de reivindicação, esse caso, deve ser julgada totalmente por improcedente, mesmo que se reconheça, porque não foi sequer posto em causa, que as A.A. são proprietárias da coisa reivindicada.
Há mesma conclusão se chega, se ponderarmos a questão em termos de custas pelo decaimento da ação.
De facto, se no caso cindíssemos o pedido de reconhecimento do direito de propriedade relativamente ao pedido de restituição da coisa reivindicada, então teríamos dois pedidos autónomos: um que corresponde a uma ação de simples apreciação e outro a uma ação de condenação.
Á improcedência do pedido de condenação (restituição da coisa), corresponderia o decaimento que atribuiria a responsabilidade pelas custas às A.A., nos termos do Art. 527.º n.º 1 do C.P.C. Mas à procedência do pedido de simples apreciação (reconhecimento do direito de propriedade), que não foi sequer posto em causa pelas R.R. em momento algum, também corresponderia uma responsabilidade tributária das A.A., porque a parte contrária também não deu causa a essa pretensão isoladamente considerada (Art.s 527.º n.º 1 e 535.º n.º 1 do C.P.C.).
Em conclusão, admitimos que a sentença, na parte dispositiva pudesse ter julgado a ação (de reivindicação) totalmente improcedente, sem prejuízo de poder ressalvar o reconhecimento do direito de propriedade das A.A. sobre o imóvel identificado no artigo 1.º da petição inicial, considerando que o facto provado no ponto 1, conjugado com a presunção registral constante do Art. 7.º do C.R.P., permitiria essa declaração judicial. O que, diga-se, em substância, nada de fundo mudaria.
No final, a procedência da ação de reivindicação estará sempre dependente da conclusão de saber se as R.R. são, ou não, titulares do direito de arrendamento sobre a parte do imóvel que ocupam.
(…)
7. Das custas.
Finalmente, põem as Recorrentes em causa a sua condenação em custas, repescando o argumento de que pelo menos deveria ser reconhecido o seu direito de propriedade sobre o imóvel, considerando no final que foi violado o disposto no Art. 528.º do C.P.C..
Apreciando, não vemos a que propósito é invocado o disposto no Art. 528.º do C.P.C., que estabelece as regras relativas a custas em situações de litisconsórcio e coligação.
Em todo o caso, a nossa posição sobre a matéria já ficou explicitada no ponto 3 do presente acórdão.
A ação de reivindicação deveria necessariamente ser julgada improcedente por não provada, por não ter cumprido a sua finalidade plena, nos termos do Art. 1311.º do C.C.. Mesmo que se devessem ressalvar o reconhecimento do direito de propriedade das A.A., que no contexto deste tipo de ação não goza efetivamente de verdadeira autonomia, como essa pretensão nunca foi sequer posta em causa pelas R.R., à mera procedência do “pedido” de simples apreciação (reconhecimento do direito de propriedade) também deverá corresponder a responsabilidade tributária das A.A., porque a parte contrária não deu causa a essa pretensão, quando isoladamente considerada (Art.s 527.º n.º 1 e 535.º n.º 1 do C.P.C.). Logo, a responsabilidade por custas competiria sempre inteiramente às A.A., improcedendo as conclusões que sustentam o contrário.
Em resumo, em função de todo o exposto, a sentença recorrida deverá ser inteiramente confirmada, sem prejuízo de se ressalvar o reconhecimento de que as A.A. são as titulares do direito de propriedade sobre o imóvel dos autos, o que não tem qualquer implicação quanto ao necessário julgamento de que a ação de reivindicação improcede.”
Tudo visto, identificámos que o acórdão recorrido não só conclui pela confirmação da decisão da 1ª Instância, mas também o cerne do respetivo enquadramento jurídico se identifica com aqueloutro assumido e plasmado pela 1ª Instância, não encerrando, de todo, um qualquer enquadramento jurídico alternativo.
Como bem adianta o Senhor Juiz Desembargador relator no despacho de não admissibilidade da interposta revista, em termos gerais, “No caso em apreço, o Tribunal da Relação, para além de julgar improcedentes as nulidades apontadas à sentença recorrida e de não ter procedido a qual alteração à matéria de facto impugnada pela Recorrente, confirmou a sentença da primeira instância com base nos mesmos fundamentos jurídicos, a saber, o regime jurídico da transmissão da posição de arrendatário decorrente do NRAU, mais precisamente do seu Art. 57.º, na sua versão original, que permitia a possibilidade de haver uma dupla transmissão e, bem assim, o regime jurídico aplicável à comunicação dessa transmissão pelo inquilino beneficiário, nos termos do Art. 1107.º do C.C.. Foi este o núcleo central da fundamentação jurídica que sustentou o acórdão do Tribunal da Relação, o qual é inteiramente coincidente com a sentença da 1.ª Instância, logo não houve “fundamentação essencialmente diferente” na manutenção do decidido na 1.ª Instância, nem ela decorre sequer da ressalva feita de que é reconhecido o direito de propriedade das A.A., porque tal já era implícito na sentença recorrida.”, donde o enquadramento jurídico sufragado em 1ª Instância tem a aquiescência da Relação, aportando esta os mesmos preceitos, interpretações normativas e institutos jurídicos.
Ademais, mesmo a conceber que não a conceder que o reconhecimento do direito de propriedade das Autoras sobre o imóvel que identificaram no art.º 1º da petição inicial encerra um segmento do dispositivo do acórdão recorrido, não podemos deixar de relembrar a orientação doutrinal e jurisprudencial no sentido de equiparar uma situação de “dupla conformidade” total àqueloutra em que a Relação profere uma decisão que, embora não totalmente coincidente com a da 1ª Instância, se revele mais favorável à apelante, importando uma procedência parcial do recurso na Relação - “isto é, sempre que a Relação pronuncie uma decisão que é mais favorável - tanto no aspecto quantitativo, como no aspecto qualitativo - para esse recorrente do que a decisão recorrida proferida pela 1.ª instância, está-se perante duas decisões “conformes” que impedem que essa parte possa interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça.
(…) “Se a improcedência total da apelação obsta, por imposição do sistema da “dupla conforme”, à interposição da revista, então também a procedência parcial dessa apelação não pode deixar de produzir, por idêntica razão, o mesmo efeito impeditivo”, neste sentido, Teixeira de Sousa, in, Dupla conforme: critério e âmbito da conformidade, CDP n.º 21, 2008, página 26; Abrantes Geraldes, in, Recursos no Novo Código do Processo Civil, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2018, páginas 371 e seguintes, onde se anota jurisprudência que segue esta orientação; Alves Velho, in, Sobre a revista excecional. Aspetos práticos, Colóquio sobre o Novo CPC, 2015, páginas 7 e seguintes, in, https://docentes.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/ager_MA_26300.pdf; Francisco Ferreira de Almeida, in, Direito processual civil, volume II, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2019, páginas 578/579; e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Julho de 2019 (Processo n.º 1677/16.0T8STB.E1.S1), in, www.dgsi.pt.
Assim, mesmo concebendo que o dispositivo do acórdão recorrido não seja totalmente coincidente com a sentença proferida em 1ª Instância, encerraria, em todo o caso uma decisão mais favorável para as Autoras/AA e outra ao reconhecer-lhes o direito de propriedade sobre o imóvel que identificaram no art.º 1º da petição inicial, daí que, importa afirmar que não será esta circunstância que obstará ao reconhecimento da conformidade das decisões, que impede que se possa interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça.
Ademais, com vista ao reconhecimento do efeito adjetivo da dupla conformidade, importa também sublinhar a circunstância decisiva do objeto do recurso de revista e a esfera de atuação do Tribunal de recurso serem delimitados pelas conclusões da alegação do Recorrente.
Como defende Rui Pinto, in, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2015, página 178 “em qualquer caso, o objeto da conformidade será apurado no interior do objeto do recurso, ou seja, a verificação da conformidade restringir-se-á, antes de mais, às decisões ou segmentos decisórios dos quais a parte interpõe concretamente recurso de revista”.
As conclusões apresentadas delimitam em definitivo o objeto do respetivo recurso, sendo que no caso trazido a Juízo, distinguimos, com utilidade, das conclusões recursivas:
“A) Surgem as presentes alegações, no âmbito do recurso de revista excepcional, e sem rigorosa e prévia dupla conforme, interposto do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, o qual manteve integralmente a sentença de primeira instância e confirmou a absolvição das recorridas de todos os pedidos deduzidos pelas recorrentes.
B) Como se pode ver da petição da presente acção, e, aliás sumariada no Acórdão proferido, constituem os pedidos da presente acção:
a) o reconhecimento do direito de propriedade das recorrentes sobre o imóvel sito no largo ..., ... em ...;
b) a correspondente desocupação pelas recorridas do referido imóvel entregando-o livre e devoluto às recorrentes;
c) a pagar a título de indemnização a quantia de €2.000,00 euros por mês que corresponde sensivelmente ao valor locativo dado como provado no ponto 20 dos factos provados;
d) e como pedido subsidiário, ser declarado resolvido o contrato com a condenação a despejo imediato por concretização de obras não autorizadas no locado e que também poriam em risco a natureza estrutural do prédio.
C) Verifica-se assim dos mesmos pedidos que, em termos dos diversos pedidos deduzidos, aquele que consta da alínea a) tem a ver com a titularidade registral do imóvel e o pedido sobre a alínea c) da indemnização requerida, respeita não só ao facto das instâncias terem atribuído o arrendamento a quem nunca o requereu, como também a tal pretenso transmissário ser obrigado a indemnizar os danos derivados da omissão de não ter requerido novo arrendamento e da obrigação que tal transmissão o vinculava, sendo só a questão da desocupação, seja por invalidade da transmissão, seja por fundamento da resolução contratual que eram decorrentes dos pedidos efetuados nas anteriores alíneas.
D) Só a questão da desocupação, seja por invalidade da transmissão, seja por fundamento da resolução contratual, é que era decorrente dos pedidos efectuados nas anteriores alíneas.
E) Verificando-se que na parte decisória do Acórdão, o mesmo julga a presente ação totalmente improcedente por não provada, absolvendo as recorridas de todos os pedidos, constata-se que o Acórdão dispõe claramente que as recorrentes são titulares do direito de propriedade do prédio identificado nestes autos e neles reivindicado, explicitando a ressalva do reconhecimento do direito de propriedade das recorrentes sobre o imóvel identificado nos autos.
F) Porém, entendeu também que esta ressalva não prejudicava em nada a sentença de 1ª instância, o que é totalmente incoerente pois, tendo a sentença recorrida dado como procedente um dos pedidos da ação, não podia, na parte dispositiva vir julgar a ação totalmente improcedente, tanto mais que estabelecia a sua natureza como ação de reivindicação, o que era incompatível com a não pronúncia sobre o direito de propriedade.
G) Por outro lado, e sobre a indemnização pedida determinando a sentença recorrida que o pedido de indemnização tem de improceder, constata-se do ponto 7 dos factos provados que a arrendatária transmissária DD falecera a ... de Março de 2011, e independentemente de, segundo as recorrentes não haver direito à transmissão do arrendamento o certo é que a mesma, a existir, implicava o estabelecimento de uma nova renda, em função do valor tributário da fração de €73.320,00.
H) Dando a sentença como provado o direito de propriedade das recorrentes, e sendo este um dos pedidos, não poderia decidir julgando totalmente improcedente a presente ação, como não o poderia fazer mesmo no caso de manutenção do arrendamento, tendo este sido atribuído na sentença recorrida a quem nunca o requereu, o caso da segunda recorrida, e não estando esta isenta de atualização da renda ao julgar improcedente o pedido de indemnização.
I) Ambas estas matérias determinam a nulidade da sentença de acordo com o art. 615 nº 1, alínea c) do CPC, especialmente pelas consequências que têm ao nível dos restantes pedidos da ação, não podendo as recorrentes deixar também de salientar a profunda contradição que existe na sentença entre a matéria provada e o decidido quando, no ponto 16 dos factos provados é definido que desde pelo menos 2003 até ao presente a recorrida CC residia no arrendado com sua mãe e no ponto 17 ter sido provado que tem uma incapacidade permanente global de 70% desde 1993.
J) É que, e como se encontra provado no já referido ponto 7 da matéria de prova, a D. DD faleceu a ... de Março de 2011 com 74 anos de idade o que significa que, segundo a matéria provada na sentença, a segunda Recorrente cuidou sozinha, desde 2003 até 2011 de sua mãe com provecta idade, não existindo por isso qualquer razão ou limitação para que a segunda recorrente executasse as tarefas do dia a dia.
K) Quando o Acórdão recorrido mantém como provado que a segunda recorrida tinha incapacidade, fá-lo com base em prova documental que infirma tal incapacidade para efeitos de transmissão de arrendamento uma vez que à data do primeiro relatório de 14.01.1999, a segunda recorrida não vivia com a falecida D. DD, mas por si só e todos os outros atestados seguintes de fls 56 vso, 16 vso, e 59, são atestados posteriores ao falecimento de D. DD.
L) Quanto às contradições da matéria de facto fixada na acção, e às nulidades decorrentes entre a matéria de facto, as respectivas conclusões e a parte decisória, esta situação é realçada pela análise dos restantes documentos e depoimentos prestados, que ainda reforçam a procedência dos pedidos deduzidos e as incongruências sobre a matéria de facto fixada, o que determinou a contradição do decidido pelo douto Acórdão recorrido.
M) Se na mesma decisão se encontra provado o registo do imóvel a favor das recorrentes, que determinou o seu reconhecimento como proprietárias e que é fundamento de nulidade de sentença por ter sido julgada a ação totalmente procedente, já dos pontos nºs 2 e 3 dos factos provados se constata inequivocamente que, sobre o arrendado, só existia o arrendamento que tinha como arrendatário EE, e que consta a fls. 324 do presente processo e no qual, já como transmissária sucedeu a D. DD.
N) Sob o ponto nº 5, também deste deveria constar o que resulta do depoimento de parte da co-recorrente FF no sentido de que só a partir de 2005, e por força do seu casamento, mudou a sua morada para a Rua ... em ..., o que determinava a correção da carta enviada e também deveria constar que em facto provado autónomo, todos os aumentos de rendas a partir de 2007, tinham sido comunicadas à falecida inquilina DD a partir da morada da Rua ... em ..., referência essa que era extensiva a integrar um novo facto provado, e que justificava também o que constava no ponto 6 dos factos provados.
O) Por outro lado, há igualmente erro na mera reprodução da carta colocada no ponto 8 dos factos provados, porquanto desse facto também deveria constar que a primeira Ré, aqui primeira recorrida terá enviado essa carta a título exclusivamente pessoal, só tendo reclamado, e de novo em seu nome pessoal, o arrendamento para sua irmã a 4 de Março de 2013, quase 2 anos após o falecimento de D. DD, e quando, como já se salientou a segunda recorrente é pessoa capaz, não interdita, não inabilitada ou sujeita a processo de acompanhamento de maior, e então já sujeita à Lei 31/2012, de 14/08.
P) Igualmente em função de factos provados com base documental o facto provado sob o número 9 é manifestamente insuficiente, porquanto é tão só dito que a 19 de janeiro de 2012, as recorrentes comunicaram a atualização de renda à inquilina D. DD, sem saber que o faziam em relação a alguém que já falecera 10 meses antes conforme consta do ponto 7 dos factos provados, para além do que, no ponto 15 dos factos provados, é dito que o valor das rendas tem vindo a ser depositado na conta das recorrentes e sendo assim a carta constante do ponto 9 dos factos provados foi recebida pelas recorridas, porquanto de outra forma, nunca teriam estas procedido à atualização de rendas estabelecida na mesma carta.
Q) O que aconteceu também com a carta de 30 de novembro de 2012 estabelecida no ponto 10 dos factos provados, sendo que na carta de 4 de janeiro de 2013, ponto 11 dos factos provados, continuava a primeira recorrida a pretender o arrendamento para seu nome exclusivo, o que lhe foi negado nessa parte, desde logo, pela sentença de 1ª instância e como tal, também com base na mesma prova documental não deveria ter sido dado como não provado que a assinatura da carta referida no ponto 9 dos factos provados não fora falsificada pelas recorridas que cumpriram o valor da renda nela estipulada.
R) É que, como já se alegou, o primeiro relatório de incapacidade da segunda recorrida é datado de 14.01.1999 e a mesma recorrida, segundo o que está definido no ponto 16 dos factos provados estaria, desde 2003 no arrendado, residindo e cuidando sua falecida mãe D. DD, o que significa que a segunda recorrida esteve integralmente sozinha 8 anos a cuidar da sua mãe e a trazê-la em cadeira de rodas à Rua, conforme foi confirmado por prova testemunhal, sem precisar de ninguém que a auxiliasse a cuidar da mãe e muito menos dela própria.
S) De todo este quadro resulta que, o que se constata desta ação é uma vil tentativa de a primeira recorrida e sua família, tentar servir-se da segunda recorrida para tentar obter para aquela o arrendamento que desde sempre para si reivindicou, o que constitui uma utilização abusiva da lei e da respetiva fraude à lei, em detrimento do legítimo direito das recorrentes à propriedade e ao seu direito de habitação – artigo 62º e 65º da Constituição da República Portuguesa.
T) Nos relatórios periciais, apresentados pelo Sr. Perito nestes autos, foi definido que o edifício não foi alvo de alterações estruturais pelas recorridas, para além das obras realizadas em novembro de 2014, das quais as recorridas não deram qualquer conhecimento às aqui recorrentes, quando no relatório de fls 183 vso, até junto pelas recorridas, é claramente definido nas suas conclusões que as patologias identificadas nas paredes, tetos e lareira, ou seja na estrutura da habitação, têm a ver com uma deformação da estrutura do pavimento de madeira que terão origem em alterações realizadas no piso inferior com a existência de obras sem o conhecimento dos proprietários.
U) Dos autos resulta que existiu intervenção de estuque sem conhecimento às autoras e intervenções que implicaram uma alteração da estrutura do prédio e puseram em causa a segurança do mesmo, pelo que, se de nenhumas obras, quer estruturais, quer de estuque, foi dado conhecimento às recorrentes e tendo-se provado a existência de obras estruturais no imóvel, o ponto 19 dos factos provados deveria ter sido alterado para englobar o facto não provado quanto às obras.
V) Quer face à matéria provada, quer face à matéria que deveria, em função dos depoimentos e dos documentos ser provada, verifica-se que, com a morte de D. DD ocorrida a ... de Março de 2011, deveria ter tido lugar a caducidade do arrendamento, com a correspondente desocupação de quem se mantinha no arrendado após o termo do respetivo contrato.
W) E igualmente aqui se põe a questão da indemnização pedida, porquanto, tendo caducado o direito ao arrendamento, são as recorridas responsáveis solidariamente pelos prejuízos causados às recorrentes pela sua manutenção no locado.
X) Na data do falecimento do primitivo inquilino a ... de junho de 1997 estava em vigor o primeiro regime de arrendamento urbano (RAU) aprovado pelo Decreto Lei nº 321-B/90 de 15 de Outubro que, no seu art. 85º, estabelecia que o arrendamento para habitação não caducava por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tivesse sido cedida a sua posição contratual se lhe sobreviver cônjuge, sendo com base nessa disposição que a D. DD sucedeu no arrendamento ao óbito de seu marido.
Y) Acontece que, quando a transmissária DD faleceu a ... de Março de 2011, já estava em vigor o Novo Regime do Arrendamento Urbano, instituído pela Lei nº 6/2006 de 27 de Fevereiro, o que implica que fazendo uma interpretação comparativa entre o regime do RAU e o regime do NRAU, constata-se que ao ser introduzida a figura do primitivo arrendatário, o legislador pretendeu que não houvesse mais do que uma transmissão, o que consagrou na Lei 31/2012, de 14/08, sendo por essa razão que as instâncias não reconheceram o direito ao novo arrendamento à primeira recorrente, que o requereu tendo, ao invés vindo a reconhecer tal arrendamento à segunda recorrente, que nunca o requereu, nem estava incapacitada para o fazer, conforme resulta da prova testemunhal já sublinhada para alteração da matéria de facto.
Z) Mas mesmo em relação à segunda recorrente, que, volta a sublinhar-se, nada requereu, o Acórdão recorrido ultrapassa a questão da segunda transmissão, aplicando o nº 4 do art. 57º do NRAU de forma, com todo o devido respeito, desacertada.
AA) Com efeito, a hipótese de segunda transmissão a favor de filho ou enteado, maior de idade, que convivesse há mais de um ano, e portador de deficiência ou de grau comprovado de incapacidade superior a 60%, é referido, em relação ao primitivo arrendatário, na alínea e) do número 1 do artigo 57º do NRAU, pelo que a segunda transmissão só ocorreria op legis de o portador da incapacidade já residisse com o primitivo arrendatário, há mais de um ano.
BB) Como o primitivo arrendatário faleceu a ... de junho de 1997 e se encontra provado, no ponto 16 dos factos provados, quer a segunda recorrente só residiu no imóvel desde 2003, constata-se que aquela, a quem foi conferido o direito a novo arrendamento, nunca viveu com o primitivo arrendatário e não se verificou a condição em que a portadora da eventual incapacidade poderia ter direito à transmissão do arrendamento do primitivo arrendatário.
CC) Nenhuma das hipóteses contempladas do número 4 do artigo 57º do NRAU é susceptível de permitir esta segunda transmissão de arrendamento, pelo que, não sendo atribuído o arrendamento a quem o requereu e não estando a segunda recorrente em condições de ver atribuído a seu favor o arrendamento, cuja transmissão, aliás, nunca requereu, caducou inexoravelmente o arrendamento existente sobre o Largo ..., ..., em ....
DD) Quanto à indemnização pedida tendo caducado o direito ao arrendamento, são as recorridas responsáveis solidariamente pelos prejuízos causados às recorrentes com a sua manutenção no ex locado, tudo nos termos do artº 1107º do Cod. Civil, uma vez que nunca foi comunicado em prazo às recorrentes o falecimento da transmissária D. DD, sendo certo que a única comunicação constante dos autos, foi a concretizada pela primeira recorrida a quem não foi atribuído o arrendamento, como também essa falta de comunicação determina a constituição de um direito indemnizatório das recorrentes por todos os danos derivados da omissão.
EE) Acresce que, e como está provado, o pedido deduzido pela primeira recorrida de transmissão do arrendamento em benefício da segunda recorrida data de 04/03/2013, ou seja, quando já se encontrava em vigor a Lei 31/2012 de 14/08, tendo sido o direito a novo arrendamento exercido quando a Lei já o excluíra, não podendo por isso o Acórdão recorrido dizer que a referida Lei não aplicação ao caso concreto.
FF) Mas mesmo que houvesse transmissão do arrendamento, nunca a renda era susceptível de se manter no mesmo montante, pelo que os prejuízos sofridos seriam sempre a diferença entre a renda depositada e a renda devida, salientando-se que a segunda recorrida não está nem nunca esteve interdita, inabilitada ou com qualquer processo de acompanhamento de maior que diminuísse a sua capacidade jurídica, pelo que, quanto à indemnização manteve o Acórdão recorrido a violação dos artºs 483º e 1107º do CC, bem como o artº 57º do NRAU e ainda da ratio da Lei 31/2012 de 14/08.
GG) Relativamente à questão das obras não comunicadas e não autorizadas e que a sentença recorrida refere no ponto 19 dos factos provados, vieram as instâncias fundamentar-se no artº 1083º do CC quando refere que só são fundamento de resolução do contrato de arrendamento as obras não necessárias realizadas pelo inquilino sem comunicação ou sem autorização, quando o relatório pericial, não é, desde logo, unívoco em determinar se tais obras eram necessárias e muito menos urgentes, ou se careciam de autorização das recorrentes.
HH) Verifica-se assim que o Acórdão recorrido, a não valorizar as obras feitas sem autorização e muitas delas aparentemente inovatórias, manteve a violação dos artºs 396º, 1074º e 1083º do Cod. Civil e do artº 483º do CPC.
II) Face ao exposto, o Acórdão recorrido manteve:
a) em função das invocadas nulidades decorrentes das contradições entre a matéria provada sobre o reconhecimento da propriedade das recorrentes e a decisão, bem como relativamente à questão das custas, a nulidade da sentença de 1ª instância nos termos do art. 615º nº 1 c) do CPC;
b) ao reconhecer o direito à segunda transmissão da segunda recorrida, que nunca o requereu nem estava incapacitada para o fazer, violou o art. 85º do Decreto Lei nº 321-B/90 de 15 de outubro e o art. 57º nº 1 alineas a) b) c) e e) e nº 4 da Lei nº 6/2006 de 27 de Fevereiro, bem como a ratio da Lei 31/2012, em vigor à data do pedido de transmissão do arrendamento;
c) ao não condenar as recorridas a qualquer indemnização, a violação também dos arts. 483º, 1083º e 1107º do CC;
d) ao condenar as recorrentes no pagamento de todas as custas do processo a violação do art. 528º do CPC.
Nestes termos e nos demais de direito, deve o presente recurso de revista excepcional e sem a prévia e rigorosa existência de dupla conforme, ser admitido e em consequência julgado procedente e provado e, por via dele:
a) ser declarado o acórdão recorrido nulo por clara contradição entre os seus fundamentos e a decisão;
b) em qualquer caso, ser o Acórdão recorrido revogado, in totum, sendo substituído por douto acórdão que julgue inexistente o direito da segunda recorrente à segunda transmissão do arrendamento para quem nunca viveu com o primitivo arrendatário e que nunca o requereu nem estava incapacitada para o fazer, nem tão pouco era titular do direito quando o requereu, bem como condene as recorridas em indemnização a regularizar às recorrentes com custas em conformidade, com o que se fará a costumada JUSTIÇA.”
Daqui decorre que as Recorrentes/Autoras/AA e outra fazem incidir o thema decidendum sobre a decisão de facto, a par da invocação de nulidades do acórdão recorrido.
Neste conspecto, importa reconhecer, desde já, que a invocada e reconhecida divergência da decisão de facto que resulta do conhecimento da impugnação da decisão de facto pela Relação, em nada releva, enquanto apenas em si considerada, para o reconhecimento da conformidade das decisões.
Os elementos de aferição da conformidade ou desconformidade das decisões das Instâncias têm de se conter na matéria de direito, donde, nenhuma divergência das Instâncias sobre o julgamento da matéria de facto é passível de implicar, por si só, a desconformidade entre aquelas decisões que importem a admissibilidade da revista, em termos gerais, sublinhando-se que a apreciação do obstáculo recursório respeitante à figura da dupla conforme terá sempre e necessariamente de se deter nos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto Tribunal de revista, acentuando-se que qualquer alteração da decisão de facto pela Relação, apenas será relevante para aquele efeito quando implique uma modificação, também essencial, da motivação jurídica, sendo, portanto, esta que servirá de elemento aferidor da conformidade ou desconformidade das decisões.
A este propósito, Abrantes Geraldes, in, Recursos no novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 (5.ª edição), páginas 364 e 365 sustenta que “[a] expressão “fundamentação essencialmente diferente” pode, porventura, confrontar-nos com o relevo a atribuir a uma eventual modificação da decisão da “matéria de facto” empreendida pela Relação, ao abrigo do art. 662.º. (…) todavia, tal evento não apresenta verdadeira autonomia, na medida em que uma modificação essencial da matéria de facto provada apenas será relevante para aquele efeito na medida em que também implique uma modificação essencial da motivação jurídica, sendo, portanto, esta que servirá de elemento aferidor da diversidade ou da conformidade das decisões centrada na respectiva motivação”, e, no mesmo sentido, Francisco M. Lucas Ferreira de Almeida, in, Direito Processual Civil, Volume II, Almedina, página 498 defende que “conhecendo (em regra) o Supremo Tribunal de Justiça apenas de “matéria de direito os “elementos de aferição” das aludidas “conformidade” ou “desconformidade” das decisões das instâncias (os chamados elementos “identificadores” ou “diferenciadores”) têm de circunscrever-se à “matéria de direito” (questões jurídicas); daí que nenhuma divergência das instâncias sobre o julgamento da “matéria de facto” seja susceptível de implicar, “a se”, a “desconformidade” entre as decisões das instâncias geradora da “admissibilidade da revista”. Tal “desconformidade” terá, pois, sempre de reportar-se a matérias integradas na “competência decisória” (ou seja, nos “poderes de cognição”) do Supremo Tribunal de Justiça.”
Na Jurisprudência, assumindo idêntica orientação, veja-se, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de junho de 2017 e de 9 de julho de 2015, in, www.dgsi.pt e Sumários, 2015, página 428, respetivamente.
No primeiro daqueles arestos consta “[n]ão releva, para este efeito, a alteração factual operada pela Relação, pois que conhecendo, em regra, o STJ de matéria de direito (arts. 46.º da Lei n.º 62/2013, de 26-08, e 682.º, n.ºs 1 a 3, do CPC), “os elementos de aferição das aludidas “conformidade” ou “desconformidade” das decisões das instâncias (os chamados elementos identificadores ou diferenciadores) têm de circunscrever-se à matéria de direito (questões jurídicas); daí que nenhuma divergência das instâncias sobre o julgamento da matéria de facto seja susceptível de implicar, a se, a “desconformidade” entre as decisões das instâncias geradora da admissibilidade da revista. Tal “desconformidade” terá sempre de reportar-se a matérias integradas na competência decisória (ou seja, nos poderes de cognição) do STJ”, e no segundo dos consignados acórdãos pode ler-se “[s]e a Relação alterar a matéria de facto provada e não provada sem que essa alteração implique uma modificação essencial da motivação jurídica contida na decisão proferida na 1.ª instância, não se verifica a “fundamentação essencialmente diferente” que justifica a admissibilidade do recurso de revista.”
Semelhantemente, consignou-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de abril de 2019, in, www.dgsi.pt. que para efeitos de aferição da conformidade ou da desconformidade decisória, não pode, compreensivelmente, atribuir-se significado a alterações meramente secundárias ou marginais, sem reflexo na decisão final, sob pena de, no caso contrário, o disposto no artigo 671.º, n.º 3, do CPC ficar destituído da sua função substancial (que é a de efectuar a selecção dos casos em que é justificado o acesso ao terceiro grau de jurisdição) e no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Novembro de 2019, in, www.dgsi.pt. consta sumariado “Para efeitos de aferição da conformidade ou da desconformidade decisória, não pode ser atribuído significado a alterações irrelevantes e sem reflexo na decisão final, sob pena de, no caso contrário, o disposto no artigo 671.º, n.º 3, do CPC ficar destituído da sua função substancial (que é a de efectuar a selecção dos casos em que é justificado o acesso ao terceiro grau de jurisdição).”
Deste modo, concluímos que não é a mera alteração do julgamento fáctico operada pela Relação que conduz a que entre a fundamentação do seu veredicto final e a da sentença apelada, haja, sem mais e imperativamente, por excluída uma situação de dupla conforme envolvendo ambas essas decisões.
Assim, revertendo ao caso sub iudice, uma vez que a ponderação do substrato fáctico não implicou uma modificação da qualificação ou enquadramento jurídico efetuados pela 1.ª Instância, que o mesmo é dizer, do julgamento de direito por esta emitido, não temos como deixar de concluir, também neste particular, pela não exclusão da conformidade entre as decisões, confirmando-se o bloqueio recursório do art.º 671º n.º 3 do Código de Processo Civil.
Uma nota final sobre a arguição de nulidades invocadas no recurso interposto, para deixarmos claro que distinguimos do direito adjetivo civil - alínea c) do n.º 1 do art.º 674º do Código de Processo Civil - que a revista pode ter por fundamento as nulidades previstas nas alíneas b) a e) do art.º 615º do Código de Processo Civil, todavia, aquele preceito adjetivo tem de ser relacionado com a norma consagrada no n.º 4 do citado art.º 615º do Código de Processo Civil que textua que tais nulidades só podem ser arguidas por via recursória quando da decisão reclamada caiba também recurso ordinário, isto é, como fundamento adicional desse mesmo recurso, donde, não sendo admissível recurso ordinário, aquelas nulidades teriam de ser arguidas mediante reclamação perante o Tribunal que proferiu a decisão, conforme estabelecido na 1ª parte do mencionado n.º 4 do art.º 615º e decorre do n.º 6 do art.º 617º, ambos do Código de Processo Civil.
Conforme sustenta Abrantes Geraldes, in, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5.ª Edição, 2018, páginas 404 e 405, em anotação ao art.º 674º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, a respeito da revista poder ter como fundamento as nulidades previstas nos artºs. 615º e 666º, do Código de Processo Civil, importa distinguir consoante a nulidade apontada ao acórdão recorrido ocorra quando não se verifica a dupla conforme (caso em que nada obsta a que o objeto do recurso seja até unicamente preenchido unicamente pela arguição de nulidades) dos casos em que ocorre dupla conforme, daí que, sublinhamos, nesta última situação, o conhecimento das nulidades pelo Supremo Tribunal de Justiça fica dependente da admissibilidade da revista, o que, como vimos, não sucede no presente caso, pelos menos, enquanto revista em termos gerais.
Pelo exposto, reconhecendo que o caso sub iudice encerra uma situação de dupla conforme, impõe-se afirmar que está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça o conhecimento do objeto da revista, em termos gerais, por inadmissibilidade, conforme discreteado.”
A decisão singular encerra um discurso inteligível, importando, outrossim, o reconhecimento e acolhimento do respetivo enquadramento jurídico, ao declarar a não admissibilidade da revista, em termos gerais, sendo despiciendo qualquer reforço argumentativo para sustentar a solução alcançada, devendo manter-se, por isso, a decisão singular, ora reclamada.
Anota-se, finalmente, que este Tribunal ad quem apenas e só se pronunciou sobre a reclamação apesentada pelas Autoras/AA e outra, conforme impetrado no requerimento apresentado: “(…) notificadas sucessivamente do douto despacho do Exmo Sr. Desembargador Relator, com a referência ...71, datado de 26.04.2022 e do douto acórdão, com a referência ...45, datado de 10.05.2022 os quais, sobre o requerimento com a referência ...71, datado de 21.03.2022, não admitiram recurso de revista ordinário interposto para esse Venerando Tribunal do douto acórdão datado de 08.02.2022, o qual por seu turno manteve em grande parte a decisão recorrida, vêm ao abrigo do art. 643º do CPC, deduzir competente reclamação quanto a tal não admissão parcial”, e, como bem dizem as Autoras/AA e outra, “Por isso a presente reclamação só tem por objeto impugnar a não admissão de revista ordinária e em consequência impugnar também não serem as nulidades arguidas admitidas para serem julgadas pela via de recurso”, o que, necessariamente, não invalida que, uma vez mantido o despacho reclamado, como foi, sejam os autos remetidos pela Relação para distribuição no Supremo Tribunal de Justiça, em razão da invocada interposta revista excecional, de que, sublinhamos, não pode, nesta fase processual, curar este Tribunal ad quem, adstrito que está, apenas e só à apreciação da reclamação apresentada (art.º 643º do Código de Processo Civil).
III - DECISÃO
Decidindo, em Conferência, os Juízes que constituem este Tribunal:
1. Acordam em julgar improcedente o reclamado pedido de revogação da decisão singular, que não admitiu o recurso, mantendo-a na íntegra.
2. Custas pelas Reclamantes/Autoras/AA e outra.
Notifique.
Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 29 de setembro de 2022
Oliveira Abreu (Relator)
Nuno Pinto Oliveira
Ferreira Lopes