Sumário
I - A norma transitória do art. 26.º do NRAU, na redacção da Lei n.º 31/2012, de 14-08, não foi revogada pela Lei n.º 13/2019, de 12-02.
II - A renovação automática dos contratos de arrendamento urbano celebrados no âmbito de vigência do RAU, aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15-10, não é aplicável o art. 1096.º do CC, na redação da Lei n.º 13/2019, mas sim o n.º 3 do art. 26.º do NRAU.
Decisão Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
AA, residente na Rua ..., n.º 1209, ..., em ... instaurou acção comum contra BB, residente na Rua dos ..., n.º 136, r/c, ..., ..., em ..., formulando os seguintes pedidos:
a) Declarar-se a Autora como dona e legítima proprietária do imóvel melhor identificado no artigo 1º articulado inicial;
b) Condenar-se a Ré a reconhecer tal direito;
c) Ser a Ré condenada a reconhecer a cessação do contrato de arrendamento por ter operado a oposição à renovação;
d) Condenar-se a Ré a restituir à Autora o referido imóvel, devoluto e desocupado de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições;
e) Condenar-se a Ré no pagamento à Autora da quantia mensal de € 200,00, desde Abril de 2021 até efectiva entrega do rés-do-chão do imóvel em causa, a liquidar em sede de execução de sentença;
f) Condenar-se a Ré no pagamento de uma indemnização a título de eventuais danos causados pela utilização indevida e deterioração do mencionado imóvel, em quantia a determinar em execução de sentença;
Para tanto, no essencial, alegou ter sido celebrado um contrato de arrendamento para habitação de duração limitada entre a mãe da Autora e a Ré, no dia 3 de Abril de 2006, que teve por objecto um prédio que agora pertence à Autora. O contrato foi celebrado pelo prazo de um ano, sendo automaticamente prorrogável por sucessivos e iguais períodos de um ano.
Por carta registada com aviso de recepção datada de 22 de Outubro de 2020, contendo como assunto “oposição à renovação do contrato de arrendamento”, a Autora endereçou uma missiva à Ré a comunicar que o contrato de arrendamento cessaria no dia 1 de Abril de 2021.
A Ré recebeu a missiva no dia 26 de Outubro de 2020, mas não procedeu à entrega do imóvel. A Autora endereçou nova carta à Ré, no dia 9 de Agosto de 2021, solicitando a entrega do imóvel no prazo de 10 dias. A Ré tem permanecido no imóvel contra a vontade da Autora, apesar do contrato se ter extinguido no dia 1 de Agosto de 2021, por via da oposição à renovação.
A Ré contestou, excepcionando erro na forma de processo, defendendo a improcedência da acção.
Findos os articulados, a instância foi julgada válida e por a Senhora Juiz ter considerado que os autos continham os elementos necessários para a decisão proferiu sentença que julgou a acção procedente nos seguintes termos:
- a) Declara-se a Autora dona e legítima proprietária do imóvel identificado em 1- dos factos provados;
- b) Condena-se a Ré a reconhecer tal direito;
- c) Condena-se a Ré a reconhecer a cessação do contrato de arrendamento por ter operado a oposição à renovação;
- d) Condena-se a Ré a restituir à Autora o referido imóvel, devoluto e desocupado de pessoas e bens;
- e) Condena-se a Ré no pagamento à Autora da quantia mensal de € 150,00 (cento e cinquenta euros), desde Abril de 2021 e até a efectiva entrega do rés-do-chão do imóvel em causa, a liquidar em sede de execução de sentença;
- absolve-se a Ré do demais peticionado.
Inconformada com a sentença, dela apelou a Ré.
A Relação de Guimarães concedeu parcial procedência ao recurso, tendo decidido:
“Alterar o saneador-sentença recorrido no sentido de absolver a Ré também dos pedidos da sua condenação a reconhecer a cessação do contrato de arrendamento por ter operado a oposição à renovação, a restituir à Autora o imóvel, devoluto e desocupado de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições e a pagar à Autora a quantia mensal de €200,00, desde abril de 2021 até efetiva entrega do rés-do-chão do imóvel, a liquidar em sede de execução de sentença, mantendo, no mais a decisão recorrida.”
É a vez da Autora recorrer de revista, visando a revogação do acórdão para ficar a subsistir a sentença, decidindo-se que o artigo 1096.º do Código Civil, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 13/2019, de 12 de Fevereiro, não se aplica ao contrato dos autos em virtude de estarmos perante um contrato de arrendamento habitacional celebrado ao abrigo do RAU, sendo antes aplicável o n.º 3, do artigo 26.º, do NRAU, por ser uma norma de direito transitório material, afastando quer o antigo, quer o novo regime.
A Recorrente conclui como segue as suas alegações:
1ª. A Recorrente não concorda com a decisão emanada, uma vez que, o Acórdão agora proferido pela Relação afronta não só o decidido pela primeira instância, como também, o que tinha sido decidido pela mesma Relação, em momento anterior, designadamente no âmbito do processo n.º 1426/19.1... que, tendo como partes Recorrente e Recorrida, e tendo como objecto o mesmo destes autos, apreciou e discutiu a validade do contrato de arrendamento e o prazo pelo qual se deveria reger para efeito de contabilização para a oposição à renovação.
2ª. De notar igualmente que, no âmbito daqueloutra acção – que deu entrada após o início da vigência da Lei n.º 13/2019 – a lei citada não foi aplicada, mesmo estando já vigente.
3ª. Nestes termos, a decisão agora proferida, torna-se amplamente contraditória, não aplicando o direito ao caso em concreto, designadamente o regime imperativo decorrente do artigo 26.º, n.º 3 do NRAU que constitui precisamente uma norma transitória de direito material, que como se demonstrará, não pode ser afastada pela aplicação da Lei n.º 13/2019, tornando inevitável a interposição de recurso de revista para este Supremo, a fim de decidir desta questão de direito.
4ª. Torna-se assim admissível a revista, ao abrigo do disposto no artigo 671.º, n.º 1 do CPC, porquanto o Tribunal da Relação decidiu do mérito da causa ao revogar o saneador-sentença nos pontos c), d) e e), encontrando-se igualmente preenchidos os restantes requisitos de recorribilidade, mormente no que concerne ao valor do processo e à sucumbência, solicitando, por esta via, aos Colendos Srs. Juízes Conselheiros a revista de decisão recorrida nos termos peticionados.
5º. Aqui chegados, e relativamente à matéria de facto, não pode a Recorrente deixar dechamar àatenção que, em momento algum, os factos foram colocadosem causa pelo Tribunal da Relação, sendo apenas na apreciação da norma de direito que interpretou diferentemente, ignorando a norma prevista no artigo 26.º, n.º 3 do NRAU.
6ª. Assim, e como resulta dos factos provados, o contrato em causa foi celebrado em 03.04.2006, para habitação, por períodos prorrogáveis de um ano, e início em 01.04.2006, constando ainda que, vigorando o RAU à data da sua celebração, aquando da alteração legislativa ocorrida pelo efeito da Lei n.º 6/2006, o contrato em causa transitou para o regime previsto para o NRAU.
7ª. E tal factualidade dada como provada adquire sopesada importância porque é nesta transição que reside a questão de direito, designadamente o regime de transição previsto no artigo 59.º, n.º 1 do NRAU e a norma prevista pelo artigo 26.º, n.º 1 do mesmo diploma que dispõe que os contratos para fins habitacionais celebrados na vigência do RAU – como é o caso dos autos – passam a estar submetidos ao NRAU, alterando, por esta via, o prazo de duração destes mesmos contratos e a inaplicabilidade que deverá ser conferida à redacção do actual artigo 1096.º do CC.
8ª. Tal como o Tribunal da Relação de Guimarães na decisão proferida no âmbito do processo n.º 1426/19.1... bem sublinhou, com a introdução do NRAU e as suas sucessivas alterações, designadamente a alteração introduzida pela Lei n.º 31/2012, o contrato dos autos passou a renovar-se, por períodos de 2 (dois) anos: 01.04.2015, 01.04.2017, 01.04.2019 e renovar-se-ia em 01.04.2021, tendo nesta medida, a Recorrente actuado com o lá decidido, e transitado em julgado.
9ª. E não se pode referir que, em virtude da alteração legislativa ocorrida pela Lei n.º 13/2019, o regime foi alterado: isto, porque como se adiantou, em virtude do artigo 26.º, n.º 3 do NRAU constituir uma norma transitória de direito material, a alteração legislativa em causa, e bem assim o artigo 1096.º do CC, não tem aplicação a estes autos.
10ª. No entanto, o Tribunal da Relação de Guimarães, na acção que cuidamos, assim não entendeu, ignorando por completo a norma transitória em causa, o que não se poderáconcordar,devendo assim o Acórdão ser revogado e substituído por aquele que decida da melhor aplicação de direito e prescreva que, a norma transitória de direito material prevista pelo artigo 26, n.º 3 do NRAU afasta – e não é por qualquer modo revogada – a aplicabilidade do artigo 1096.º do CC, no entendimento conferido pela redacção da Lei n.º 13/2019,
11ª. Condenando por essa via a Ré, ora Recorrida na petitório formulado em sede de Petição Inicial e decidido em sede de saneador-sentença, fazendo-se assim uma inteira e sã justiça.
Contra alegou a Recorrida, pugnando pela improcedência da revista, concluindo nos seguintes termos:
“O acórdão recorrido, atenta a matéria dada como provada, fez uma correta subsunção dos factos ao direito, percorrendo corretamente os trilhos do direito e, tendo considerado o prazo imperativo da renovação pelo período de três anos, repercutiu-o, e bem, ao contrato de arrendamento em causa nos autos, com a consequente inoperância da comunicação efetuada pela recorrente à recorrida, datada de 22/10/2020, de que não pretendia a renovação do contrato de arrendamento, e este cessaria a 19 de abril de 2021.
Pelo que, decidiu muito justamente, não merecendo qualquer censura.”
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Fundamentação.
Vem provada a seguinte matéria de facto:
1. A Autora é dona e legítima possuidora do prédio urbano, composto de rés-do-chão, destinado a habitação, sito no Lugar de ..., da União das Freguesias de ... e ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 816.º (o qual proveio do artigo 416.º-urbano, da extinta freguesia de ..., concelho de ...) e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 1094/... – fls. 12 e 13 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
2. Tal prédio adveio à posse e propriedade da Autora através de procedimento simplificado de habilitação de herdeiros n.º 6812/2012, exarada em 21 de junho de 2012 na Conservatória do Registo Predial de ... – fls. 14 e 15 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
3.Por contrato de arrendamento para habitação de duração limitada, celebrado em 3 de abril de 2006, com início no dia 1 de abril de 2006 e termo no dia 1 de abril de 2007, automaticamente prorrogável por sucessivos e iguais período de um ano, a ainda mãe da Autora deu de arrendamento à Ré, que lhe tomou, o rés-do-chão do referido prédio, nos termos constantes do documento junto a fls. 15v e 16 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
4. Mediante o pagamento da renda anual de € 1.800,00 (mil e oitocentos euros), paga em duodécimos de € 150,00 (cento e cinquenta euros);
5. Correu os seus termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de ..., Juízo Local Cível J2, sob o nº 1426/19.1..., uma ação comum instaurada por AA e marido CC contra BB, nos termos constantes de fls. 99v e seguintes e 17v e seguintes dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
6. A Autora endereçou uma missiva à Ré a comunicar que o contrato de arrendamento cessaria no dia 1 de abril de 2021, nos termos constantes do documento nº 6 junto com a petição inicial e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
7. Data em que o imóvel deveria ser entregue livre de pessoas e bens e no estado de conservação e limpeza que se encontrava à data da celebração do contrato e se faria a entrega das chaves;
8. (…)AAutora endereçou uma carta registada à Ré, datada de 9 de agosto de 2021, contendo como assunto “Oposição à renovação de contrato de arrendamento – Entrega do imóvel dado em locação - Prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 816.º e descrito na Conservatória na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 1094”, nos termos constantes do documento n.º 8 junto com a petição inicial e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
9. Mais foi solicitado à Ré que procedesse à entrega do imóvel livre de pessoas e bens no prazo máximo de dez dias a contar da receção da carta que lhe havia sido remetida;
10. A Ré tem permanecido no rés-do-chão daquele imóvel.
Fundamentação de direito.
A questão decidenda resume-se em saber se a oposição da Autora à renovação do contrato de arrendamento referido nos autos foi válida e eficaz.
Trata-se de um contrato de arrendamento urbano celebrado em 03 de Abril de 2006, por conseguinte no domínio do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo DL nº 321-B/90 de 15 de Outubro. É este um ponto que não suscita controvérsia.
Por carta de 22 de Outubro de 2020, a Autora/recorrente comunicou à Recorrida que se opunha à renovação do contrato de arrendamento e que o mesmo cessaria no dia 01 de Abril de 2021, solicitando-lhe a entrega do imóvel livre de pessoas e bens no prazo de 10 dias.
Como tal não ocorreu, a Autora interpôs a presente acção.
A acção procedeu na 1ª instância, mas soçobrou na Relação.
Na base da divergência de entendimento das instâncias está a questão de saber se ao caso é aplicável a norma transitória do art. 26º do NRAU, que prescreve que os arrendamentos habitacionais de duração limitada celebrados na vigência do RAU se renovam automaticamente de dois em dois anos, ou se se aplica a disposição do art. 1096º do CCivil, na redação dada pela Lei nº 13/2019 de 12.02, que prescreve que o contrato de arrendamento urbano com prazo certo se renova de três em três anos.
A sentença considerou aplicável a disposição do art.26º, nº3, do NRAU, na redacção da Lei nº31/2012 de 14.08, como decidido na acção anterior (P. nº1426/19.1..., referido supra em 5), ou seja: 01.4.2015, 01.04.2017, 01.04.2019, e sucederia em 01.04.2021, tendo decidido:
“…conclui-se que Autora, na qualidade de senhoria, impediu a renovação do contrato de arrendamento aqui em causa, mediante a comunicação escrita que enviou à Ré no dia 22 de Outubro de 2020 – cfr. artigo 1097º, nº 1, alínea b), do Código Civil.
Na sequência da comunicação efectuada e recebida pela Ré (comunicação de oposição à renovação do contrato), o contrato de arrendamento extinguiu-se no dia 1 de Abril de 2021.”
Diversamente, entendeu o acórdão recorrido que ao caso é aplicável a actual redacção do art. 1096º, nº1 do CCivil, segundo o qual o contrato de arrendamento celebrado por prazo certo, “renova-se automaticamente no seu termo e por períodos sucessivos de igual duração, ou de três anos se esta for inferior (…).
Daí que o contrato não se renovou em 01.04.2021, mas sim em 01.04.2022, pelo que a comunicação da Autora à Ré de 22.10.2020 foi ineficaz, sem virtualidade de impedir a renovação do contrato em 01.04.2022.
Entendimento que a Relação justificou nos termos seguintes:
“ (…), em 1 de abril de 2019, data da renovação do contrato, encontrava-se já em vigor a Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro (entrada em vigor no dia seguinte) que veio estabelecer “medidas destinadas a corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, a reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano e a proteger arrendatários em situação de especial fragilidade” (cfr. artigo 1º) e veio dar nova redação ao artigo 1096º do Código Civil que passou a estabelecer que:
“1 - Salvo estipulação em contrário, o contrato celebrado com prazo certo renova-se automaticamente no seu termo e por períodos sucessivos de igual duração ou de três anos se esta for inferior, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
2 - Salvo estipulação em contrário, não há lugar a renovação automática nos contratos previstos n.º 3 do artigo anterior.
3 - Qualquer das partes pode opor-se à renovação, nos termos dos artigos seguintes”.
Importa, então, apurar se em 1 de abril de 2019 o contrato de arrendamento se renovou ou não pelo período de três anos conforme pretensão formulada pela Recorrente, e não pelo período de dois anos conforme pugnado pela Autora e decidido pelo tribunal a quo, tendo por base a redação do artigo 1096º introduzida pela já referida Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto.
E importa começar por referir que tal questão não foi, como não tinha de ser, apreciada pelo Acórdão da Relação de Guimarães proferido em 21/05/2020, no processo n.º 1426/19.1...
Neste processo estava em causa a notificação judicial avulsa da aqui Ré, de 22 de fevereiro de 2016, efetuada pela aqui Autora comunicando a denúncia do contrato de arrendamento em causa com efeitos a partir de 1 de março de 2018.
Como já vimos, a renovação do contrato ocorreu apenas em abril de 2019, e não em 2018, pela aplicação da Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, que determinou que o contrato de arrendamento passasse a renovar-se por períodos de dois anos, o que esteve subjacente acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, que apenas teve por objeto a questão da pretendida cessação do contrato com efeitos em 2018, quando a renovação do mesmo apenas ocorria em 2019, pela aplicação da referida Lei n.º 31/2012; não curou aquele acórdão de qualquer eventual renovação após 2019 e nem da aplicação da Lei n.º 13/2019 e, por força desta, do prazo de renovação após aquela data.
Questão distinta, e que importa apreciar nos presentes autos, é qual o período de tempo pelo qual se renovou o contrato em abril de 2019: se pelo período de dois anos nos termos decididos pelo tribunal a quo ou se pelo período de três anos previsto na Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, entretanto entrada em vigor antes de abril de 2019, conforme defende a Recorrente, ou ainda se pelo período de um ano nos termos convencionados pelas partes no contrato de arrendamento.
Regressemos então à questão já colocada: ao caso dos autos aplica-se a redação dada ao artigo 1096º do Código Civil pela Lei n.º 13/2019?
Importa salientar que a Lei n.º 13/2019 não contém qualquer norma de direito transitório para aplicação da nova redação do referido artigo 1096º aos contratos em curso, pelo que a questão terá de ser solucionada com recurso ao princípio geral de aplicação das leis no tempo previsto no artigo 12º do Código Civil.
Prevê este preceito que a lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroativa, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular (n.º 1) e que quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser diretamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor (n.º 2).
(…)
Assim, “dispondo a nova redação do art. 1096º, do CC, introduzida pela Lei 13/2019, de 12.2, sobre o conteúdo da relação jurídica de arrendamento, e abstraindo a mesma do facto que lhe deu origem, é de concluir que a situação se enquadra na 2ª parte do art. 12º do CC, sendo a nova redação aplicável às relações já constituídas e que subsistam à data da sua entrada em vigor” (Acórdão da Relação de Guimarães de 08/04/2021, Processo n.º 795/20.5T8VNF.G1, relatora Desembargadora Rosália Cunha, disponível em www.dgsi.pt; é também neste sentido o entendimento de Maria Olinda Garcia, “Alterações em matéria de Arrendamento Urbano introduzidas pela Lei n.º 12/2019 e pela Lei n.º 13/2019, Revista Julgar Online, março 2019, considerando que “no que respeita à aplicação da lei no tempo, tais alterações aplicam-se não só aos contratos futuros, mas também aos contratos em curso, como decorre da regra geral do artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil”).
Do exposto decorre que ao contrato de arrendamento em discussão nos presentes autos é aplicável a redação do artigo 1096º introduzida pela Lei 13/2019, a qual se encontrava em vigor aquando da renovação do contrato ocorrida em 1 de abril de 2019.
Podemos, por isso, concluir desde já, salvo melhor opinião, que em 1 de abril de 2019 o contrato não se renovou por dois anos, ao contrário do decidido pelo tribunal a quo.
A questão que aqui se pode colocar, tendo-se renovado o contrato em 01 de abril de 2019 é se o mesmo se renovou pelo prazo de um ano nos termos contratualmente fixados pelas partes ou pelo prazo de três anos.
(…)
Também nós entendemos, não obstante o respeito que nos merece o entendimento contrário, ter sido intenção do legislador em 2019, estabelecer um prazo mínimo de renovação, nos casos em que as partes não tenham convencionado a exclusão da renovação.
Não obstante consagrar esta possibilidade de exclusão da renovação, em prol da liberdade contratual das partes, cremos ter sido intenção do legislador a de, não cessando o contrato no fim do prazo acordado, garantir a maior estabilidade possível dos arrendamentos habitacionais e dos agregados familiares.
Neste sentido, na Exposição de Motivos constante da Proposta de Lei n.º 129/XIII, que esteve na base da Lei n.º 13/2019, (disponível em https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID (…).
(…)
Também no artigo 1º da Lei n.º 13/2019 se enuncia que a mesma vem estabelecer medidas destinadas a corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios e a reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano.
Assim, concluímos que o legislador teve como objetivo a proteção da estabilidade do arrendamento habitacional, limitando os direitos extintivos do locador e limitando a liberdade das partes para modelarem o conteúdo do contrato.
Acompanhamos, por isso, a posição de Maria Olinda Garcia quando refere que nos arrendamentos para habitação tendencialmente duradoura, a liberdade dos contratantes para modelarem o conteúdo do contrato sofreu significativas limitações com as alterações introduzidas pela Lei n.º 13/2019.
Tais limitações evidenciam-se desde logo na exigência de um prazo mínimo de um ano (cfr. artigo 1095º n.º 2), onde está em causa uma norma imperativa que não admite convenção em contrário, pois ainda que as partes convencionem duração inferior, o prazo considera-se automaticamente ampliado para um ano; mas também na própria renovação do contrato pois, ainda que as partes possam convencionar a exclusão da possibilidade de qualquer renovação (a lei refere “salvo estipulação em contrário”) só terão liberdade para convencionar prazo de renovação superior a três anos, impondo o legislador um prazo mínimo de três anos, também imperativo.
E ainda ao estipular no artigo 1097º n.º 3 do Código Civil que a oposição à primeira renovação do contrato, por parte do senhorio, apenas produz efeitos decorridos três anos da celebração do mesmo, mantendo-se o contrato em vigor até essa data (excetuando a necessidade de habitação pelo próprio ou pelos seus descendentes em 1.º grau, caso em que se aplicam, com as devidas adaptações, o disposto no artigo 1102.º e nos n.ºs 1, 5 e 9 do artigo 1103.º - cfr. n.º 4 do artigo 1097º).
Sufragamos, por isso, o entendimento de que, no seu termo, os contratos de arrendamento com prazo para habitação permanente se renovam automaticamente, por períodos sucessivos de igual duração ou, se esta for inferior, de três anos, em conformidade com o estipulado no número 1 do artigo 1096º do Código Civil. O que significa que se o contrato de arrendamento foi celebrado por prazo inferior a três anos, e não foi excluída a renovação, o contrato se irá renovar automaticamente sempre por períodos mínimos sucessivos de três anos, em face do prazo mínimo imperativo previsto na referida disposição legal.
Este regime introduzido pela Lei n.º 13/2019 tem aplicação ao contrato dos autos, não obstante o mesmo ter sido celebrado em data anterior à sua entrada em vigor pois, no que respeita à aplicação da lei no tempo, conforme já vimos, estas alterações aplicam-se não só aos contratos futuros, mas também aos contratos em curso, em conformidade com a regra geral do artigo 12º n.º 2 do Código Civil.
Assim, o prazo mínimo de três anos para a renovação do contrato de arrendamento previsto no número 1 do artigo 1096º do Código Civil, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13/2019, que entrou em vigor em 13 de fevereiro de 2019, aplica-se ao contrato de arrendamento que se renovou em 01 de abril desse ano, pelo que o contrato, decorrido esse prazo de três anos, renovava-se não em 1 de abril de 2021, mas em 1 de abril de 2022.
A comunicação efetuada pela Autora à Ré, datada de 22/10/2020, de que não pretendia a renovação do contrato de arrendamento, e este cessaria a 19 de abril de 2021, não respeita aquele prazo de renovação, não produzindo efeitos contra a Ré, uma vez que, nessa data se encontrava ainda em curso o prazo decorrente da renovação ocorrida em 01 de abril de 2019.”
Contra este entendimento, a Recorrente esgrime, no essencial, com as seguintes razões: i) o acórdão recorrido desrespeitou a decisão final proferida no P. 1426/19.1..., com as mesmas partes e em que foi decidido que ao caso é aplicável o art. 26º/3 do NRAU, e ii) que esta norma transitória afasta a aplicabilidade do art. 1096º do CCivil.
Afigura-se-nos que lhe assiste razão, e que a decisão correcta é a da sentença.
Já vimos que o contrato de arrendamento em causa foi celebrado no domínio do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90 de 15.10.
O RAU foi revogado pela Lei nº 6/2006 de 27.02 que aprovou um novo regime do arrendamento urbano (NRAU).
Nos termos do art. 59º, nº1 da Lei 6/2006, o novo regime aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias.
As normas transitórias constam dos arts. 26º e 28º, interessando-nos o art. 26º que, na redacção dada pela Lei nº 31/2012 de 14.08, dispõe:
1.Os contratos de arrendamento para fins habitacionais celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU) aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90 de 15 de Outubro, (…) passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificidades dos números seguintes.
2 –( …).
3. Quando não sejam denunciados por qualquer das partes, os contratos de duração limitada renovam-se automaticamente no fim do prazo pelo qual foram celebrados, pelo período de dois anos (…).
No Código Civil, a renovação automática do contrato de arrendamento está prevista no art. 1096º, que na redacção anterior à Lei nº 13/2019 de 12.02, dispunha:
1. Salvo estipulação em contrário, o contrato celebrado com prazo certo renova-se automaticamente no seu termo e por períodos sucessivos de igual duração, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
2. Salvo estipulação em contrário, não há lugar à renovação automática nos contratos celebrados por prazo não superior a 30 dias.
3. Qualquer das partes pode opor-se à renovação, nos termos dos artigos seguintes.
O número 1 desta disposição, na redacção dada pelo Lei nº 13/2019 (em vigor a partir de 13.02.2019), passou a dispor:
1. Salvo estipulação em contrário, o contrato celebrado com prazo certo renova-se automaticamente no seu termo e por períodos sucessivos de igual duração, ou de três anos se esta for inferior, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
2. (…)
3. (…).
Em nosso entender o art. 1096º do CCivil não se aplica ao contrato de arrendamento em causa nos autos a cuja renovação se aplica antes o nº 3 do art. 26º do NRAU.
O art. 26º do NRAU é uma norma de direito transitório material.
Há direito transitório material quando o legislador estabelece uma regulamentação própria, não coincidente nem com a lei antiga nem com a lei nova, para certas situações que se encontram na fronteira entre as duas leis (cf. João Batista Machado, Introdução ao direito e ao discurso legitimador, Almedina, 1980, pag. 231).
O direito transitório do art. 26º não foi revogado pela Lei nº 13/2019, ao invés do que sucedeu com os nºs 3, 4 e 5 do art. 28º do NRAU, também norma transitória, expressamente revogado pelo art. 12º da Lei nº 13/2019, de 12.02.
A Senhora Conselheira Maria Olinda Garcia no estudo citado na decisão recorrida, Revista Julgar Online, Março de 2019, não parece afastar-se deste entendimento quando escreve:
“As alterações à Lei nº6/2006 registam-se em dois tipos de matérias. Por um lado, em matéria de natureza processual (…). Por outro lado, respeitando apenas a arrendamentos antigos ou de regime transitório, ou seja, celebrados antes da entrada em vigor da Lei 6/2006 (artigos 35, 36, 57), e revogação dos números 3 a 5 do art. 28º e as disposições transitórias do art. 14º, nºs 3 a 5 da Lei nº13/2019.”
No mesmo texto, a ilustre Magistrada escreve que “o art. 26º da Lei nº 6/2006 aplica-se a arrendamentos habitacionais celebrados na vigência do RAU e a arrendamentos não habitacionais celebrados depois da Lei nº 257/95.”
Pelo que, e salvo o devido respeito, não nos parece possível retirar do comentário da Senhora Conselheira Maria Olinda Garcia, apoio para a tese defendida no acórdão.
Apoio que também não se pode retirar do Acórdão da Relação de Guimarães de Guimarães de 08.04.2021, P. 795/20, www.dgsi.pt., citado na decisão recorrida, pois que incidindo sobre um contrato de arrendamento celebrado em 09.07.2014 nele não se colocou a questão da aplicação da norma transitória do art. 26º, nº3.
Nestas águas, se bem ajuizamos, navegou o Acórdão da Relação de Guimarães de 21.05.2020, proferido no processo anterior, referido supra em 5 da matéria de facto:
“(…), tratando-se de relação contratual transitada do RAU, necessariamente continuou a ser-lhe aplicável a norma transitória (não temporária) do artº 26º, nº 3 do NRAU.
Com efeito, muito embora, concomitantemente com o novo regime do arrendamento urbano também o Código Civil tenha sido alterado e às respectivas soluções legislativas adaptado e, para contratos celebrados já ao abrigo deste, disponha o artº 1096º, nº 1, que o contrato se renova automaticamente por períodos de igual à estipulada (no caso, um ano), a verdade é que a norma do artº 26º, nº 3, configura direito transitório material e, portanto, estabelece aí, para o contrato transitado, o regime próprio aplicável, afastando quer o antigo quer o novo regime (J. Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, Gulbenkian, 2ª edição, página 423).
Corroborando-se, pois, que aplicável ao caso é o NRAU, não se concorda, todavia, que a renovação, especialmente a partir de 2013, tenha sido anual, antes se entendendo que passou a ser bianual.”
É este o entendimento do Senhor Conselheiro Pinto Furtado, Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano, 2019, Almedina, pag. 71:
“(…) constituindo o nº3 do art. do 26º do NRAU uma disposição específica dirigida aos arrendamentos anteriores, deverá ele continuar a aplicar-se, indiferente ao que as novas leis prevejam para os contratos futuros: generis per especiem derrogatur.
Deste modo e em resumo, os contratos de arrendamento para habitação, celebrados com duração limitada após o RAU, mas antes do NRAU, que desde então vinham a ser periodicidade até 13 de Dezembro de 2012, data em que passaram a ter prorrogações supletivas de dois em dois anos - se outro período, superior, não tiver sido previsto pelas partes – e assim se vão mantendo.”
No mesmo sentido se pronuncia Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 11ª edição, pag. 191:
“Mais importante, é, porém, a excepção relativa aos arrendamentos celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo DL nº 321-B/90 de 15 de Outubro, e aos contratos não habitacionais celebrados depois do DL nº 257/95 de 30 de Setembro, aos quais se continua a aplicar um regime especial no que respeita à transmissão por morte, duração, renovação e denúncia (art. 26º do NRAU). Temos aqui uma norma de direito transitório material, que mantém um regime próximo do que anteriormente vigorava em sede de RAU, relativamente ao regime da cessação destes arrendamentos, e isto quer se trate de contratos de duração limitada (art. 26º, nº3 do NRAU) (…).”
Afigura-se-nos ser esta a melhor interpretação da lei, pelo que entendemos conceder a revista e repristinar a decisão da 1ª instância.
Das precedentes considerações pode extrair-se de relevante:
I - A norma transitória do art. 26º do NRAU, na redacção da Lei nº 31/2012 de 14.08, não foi revogada pela Lei nº 13/2019 de 12.02;
II - À renovação automática dos contratos de arrendamento urbano celebrados no âmbito de vigência do RAU, aprovado pelo DL nº 321-B/90 de 15.10, não é aplicável o art. 1096º do Código Civil, na redação da Lei nº 13/2019, mas sim o nº 3 do art. 26º do NRAU.
Decisão.
Pelo exposto, concede-se a revista, em consequência do que se revoga o acórdão recorrido para ficar a subsistir a sentença da 1ª instância.
Custas pela Recorrida.
Lisboa, 14 de Setembro de 2023
Relator: Cons. Ferreira Lopes
1º Adjunto: Conselheiro Lino Ribeiro
2º Adjunto: Conselheiro Manuel Capelo