Sumário
I – Os contratos (e a transação é um contrato – cfr. art. 1248.º do C. Civil), assim como as sentenças (esta ex vi art. 298.º do C. Civil), são interpretáveis.
II – Lavrada uma transação judicial, têm um mínimo de correspondência no texto da transação quer a “tese interpretativa” da transação ser total quer a “tese interpretativa” da transação ser parcial: quanto à “tese” total, por não ser dito que a mesma é parcial; quanto à tese “parcial”, por as cláusulas da transação não incluírem todo o objeto do processo.
III – Tendo uma das partes, ato contínua à homologação duma tal transação, requerido que mantêm interesse no conhecimento dum recurso” pendente (em que se discute matéria não incluída explicitamente na transação), sem que a parte contrária haja diga/oposto o que quer que fosse, sobressai a ideia interpretativa da transação ser parcial, de as partes haverem feito transação apenas em relação a parte do objeto do processo.
Decisão Texto Integral
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I - Relatório
AA, BB e CC propuseram procedimento cautelar não especificado contra DD e EE, todos com os sinais dos autos.
Alegaram, em síntese, que os requeridos pretendem desativar os ramais de ligação a fossa séptica e respetiva caixa que serve os prédios dos requerentes, o que coloca em causa as condições de habitabilidade e salubridade das suas habitações e é suscetível de provocar inundações, danificando os seus pertences.
Terminaram pedindo que, sem audição dos requeridos e com inversão do contencioso, sejam os requeridos condenados:
“(…)
1 - a abster-se de praticar qualquer ato que impeça ou limite o uso do ramal de ligação à fossa séptica e respetiva caixa que se localiza em prédio misto que identificam, composto por parte rústica e urbana, sito na Rua da..., em ...; e que
2 - a obra que os requeridos estão a levar a cabo seja embargada, notificando-se estes para a não continuar e para que procedam à reposição do prédio no estado que existia anteriormente. (…)”
O Tribunal de 1.ª Instância determinou a audição prévia dos requeridos.
Entretanto, alegando que os requeridos deram continuidade à obra, terão procedido os requerentes, em 06-04-2023, perante duas testemunhas, ao embargo extrajudicial da obra, requerendo a sua ratificação judicial nos presentes autos e que se operasse a convolação do pedido inicialmente formulado.
Nesta sequência, foi proferido, em 16-5-2023, despacho em que, afinal, foram tomadas as seguintes decisões:
“ Do embargo extrajudicial (…)
Face ao exposto, porque o embargo de obra nova já foi realizado extrajudicialmente pelos Autores declaro extinta a instância por inutilidade superveniente da lide quanto ao 2º pedido formulado pelos Requerentes: “que a obra suprarreferida nos pontos 23 a 42 seja embargada, notificando-se os ora requeridos para a não continuar e, para que procedam à reposição do prédio ao estado que existia anteriormente”.
(…)
Do pedido de ratificação do embargo extrajudicial: (…)
Por inadmissibilidade legal, não admito o pedido de ratificação de embargo extrajudicial conforme requerido pelos Requerentes.
(…)
Os autos prosseguem para apreciação do primeiro pedido formulado pelos Requerentes.
Assim, notifique as partes para, no prazo de 5 dias, dizerem que meios de prova mantêm face ao prosseguimento do procedimento cautelar apenas quanto ao primeiro pedido. (…)”
Inconformados com tal decisão, dela vieram os requerentes interpor recurso de apelação.
Antes de tal recurso ser admitido e tendo o processo prosseguido os seus termos (para apreciação do primeiro dos pedidos formulados pelos requerentes), foi designado dia (06/10/2023) para audiência e esta iniciada foi feito constar da respetiva ata o seguinte:
“(…) pelos ilustres mandatários aqui presentes foi pedida a palavra e, no seu uso, declararam pretender pôr termo à presente providência cautelar, mediante acordo celebrado nos seguintes termos e com as seguintes cláusulas:
Primeira:
Requerentes e Requeridos acordam em manter o uso do ramal de ligação à fossa séptica e respetiva caixa que se localiza no prédio composto por parte rústica e urbana, sito na Rua da ... em ..., descrito na CRP ... sob o nº ..13 e inscrito na matriz sob o nº .27 rústico e ..32 urbano, até ao dia 30/04/2024.
Segunda
Os Requerentes obrigam-se a comunicar aos Requeridos, no prazo máximo de 3 dias úteis, assim que for concretizada a ligação de ambos os Requerentes à rede de saneamento público.
Terceira
Após a data referida na cláusula primeira, e sem prejuízo do acordado na cláusula segunda, os Requeridos podem efetuar sem qualquer comunicação futura a desativação da ligação à fossa séptica mantendo-a em funcionamento até essa data.
Quarta
Custas em partes iguais prescindindo de custas de parte.
Após, pelo M. Juiz foi proferida a seguinte:
Sentença
Por ser válida e regular, quer pelo seu objeto, quer pela qualidade das pessoas intervenientes, homologo por sentença a transação que antecede e, em consequência, condeno e absolvo as partes nos precisos termos em que nela se obrigaram (arts. 283.º/2, 284.º e 289.º/1 a contrario e 290.º, todos do CPC).
Custas conforme o acordado (art. 537.º/2 do CPC).
Fixo à ação o valor de 30.000,01 (arts. 305.º e 306.º do CPC).
Da sentença acabada de proferir foram notificados os aqui presentes, do que disseram ficar cientes.
De seguida, pelas ilustres mandatárias dos requerentes foi pedida a palavra e, no seu uso, declararam que mantêm interesse no conhecimento do recurso que interpuseram nos autos, após o que o M.º Juiz proferiu despacho no qual ordena que se abra conclusão nos autos a fi de se pronunciar quanto à questão suscitada.
Após o que, em 10/10/2023, foi proferido despacho a admitir a apelação que havia sido interposta da decisão proferida em 16/05/2023, tendo a Relação do Porto, por Acórdão da Conferência de 19/02/2024 (que manteve a decisão sumária do relator), julgado procedente tal apelação, revogando a decisão proferida e ordenando que o procedimento prosseguisse “para apreciação dos pressupostos da ratificação do embargo extrajudicial de obra nova.”
Agora inconformados os requeridos, interpõem o presente recurso de revista – o qual, estando-se num procedimento cautelar, foi admitido por ter sido interposto com fundamento em ofensa de caso julgado – visando a revogação do Acórdão da Relação e a sua substituição por decisão que revogue o Acórdão recorrido e o substitua por outro que “(…) declare não ser possível conhecer do objeto do recurso de apelação dos aqui Recorridos, em virtude do caso julgado, com a consequente absolvição da instância.”
Terminaram a sua alegação com as seguintes conclusões:
“ (…)
I - Os Recorrentes consideram que o Acórdão proferido, no presente procedimento cautelar, ofende o caso julgado, porque, devido a Sentença já transitada em julgado (artigo 628º CPC), não podia o Tribunal da Relação do Porto conhecer do objeto do recurso de apelação por estar extinto o poder jurisdicional quanto ao mesmo; assim como, nulidades, pela omissão de pronúncia e a falta de fundamentação de Direito.
II - Quanto à nulidade de omissão de pronúncia, os Recorrentes invocaram a excepção de trânsito em julgado, e, em consequência, não ser possível o conhecimento do objecto do recurso, porém o Tribunal da Relação do Porto, no seu Acórdão, não se pronuncia sobre a questão em análise.
Existe assim, salvo melhor entendimento, omissão de pronúncia, a qual expressamente se invoca, que é causa de nulidade do Acórdão, nos termos do disposto na alínea d), do n.º 1, do artigo 615º ex vi do n.º 1, do artigo 666º, ambos do CPC.
III - Os Recorrentes, no requerimento em que requerem que sobre Despacho recaia um Acórdão, invocaram nulidade da, então, Decisão Sumária por não fundamentar, de Direito, a respectiva decisão de conhecer de mérito de um recurso de um procedimento cautelar já extinto por trânsito em julgado da Sentença.
O Acórdão que sucedeu a decisão sumária, mantém a não fundamentação de Direito acima referida, tanto mais que, à cautela, procede à sua sanação. Contudo, com o devido respeito, a violação do caso julgado é insanável, padecendo o Acórdão da nulidade de falta de fundamentação de Direito acima identificada.
Assim, nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 154º, da alínea b), do n.º 1, do artigo 615º ex vi do n.º 1, do artigo 666º, ambos do CPC, é nulo o Acórdão que não especifique os fundamentos de Direito em que fundamenta a sua decisão.
IV - Nestes termos, os Recorrentes requerem que V. Excelências julguem procedentes as nulidades atrás invocadas, com as necessárias consequências legais, nos termos do disposto na alínea b( e d), do n.º 1, do artigo 615º e do n.º 2, do artigo 684º, atenta a alínea c), do n.º 1, do artigo 674º, todos do CPC.
V - Os Recorridos por não se conformarem, apelaram do Despacho proferido nos autos, de 16 de Maio de 2023, proferido pelo Juízo Local Cível de ... – Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, por recurso de apelação, no Tribunal da Relação do Porto, a 6 de Junho de 2023, o qual possuía efeito suspensivo, e subia de imediato nos próprios autos.
VI Sucede que, ulteriormente, na data de 6 de Outubro de 2023, no presente procedimento cautelar, pelo Juízo Local Cível de ... – Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto houve Sentença devidamente homologada quanto a transação alcançada pelas partes.
A transacção, conforme Sentença, consistiu em três pontos:
(1) declararam pôr termo à presente providência cautelar; (2) os termos e as cláusulas de acordo conseguido e voluntariamente aceite pelas partes e; (3) fixar valor da causa e o acordo quanto ao regime de custas e procuradoria.
VII - Ou seja, sem qualquer ambiguidade, dúvida interpretativa, ressalva de qualquer tipo ou espécie, consignação de qualquer reserva ou âmbito parcial, ficou consignado em ata, e sujeito à homologação por Sentença, que as partes declaram pôr termo à presente providência cautelar.
Ora, com o devido respeito, a presente providência cautelar, não é o pedido X ou o pedido Y, mas todo o processado no âmbito dos autos sob o n.º 1752/23.5T8MTS, no Tribunal onde corre os seus termos, ou nos Tribunais superiores onde correm os recursos.
VIII Decorrido o tempo de eventual rectificação, reclamação, arguição de nulidades, ou recurso, os ora Recorridos (e os aqui Recorrentes) nada requereram, pelo que a Sentença, de 6 de Outubro de 2023, transitou em julgado, nos termos do artigo 628º, do CPC, ao já não passível recurso ou reclamação da decisão (Sentença).
Nem o objecto ou âmbito do recurso de apelação, interposto pelos aqui Recorridos, tinha por objecto a análise da Sentença, de 6 de Outubro de 2023, estando, por isso, fora do âmbito ou do objecto do recurso em apreciação pelo Tribunal a quo.
IX - Dessa forma, ao conhecer do recurso, o Acórdão, proferido pelo Tribunal a quo, violou expressamente o princípio geral de extinção do poder jurisdicional, por violação do caso julgado, que se traduz, conforme a Jurisprudência do Tribunal da Relação de Coimbra, proferida em Acórdão, de 20 de Outubro de 2015, atrás identificado, em: “O trânsito em julgado, conforme decorre claramente do art.º 628.º do CPC, ocorre quando uma decisão é já insusceptível de impugnação por meio de reclamação ou através de recurso ordinário. Verificada tal insusceptibilidade, forma-se caso julgado, que se traduz, portanto, na impossibilidade da decisão proferida ser substituída ou modificada por qualquer tribunal, incluindo aquele que a proferiu.”.
X - Face ao exposto, no nosso entendimento, o Acórdão proferido pelo Tribunal a quo, ofende inequivocamente o caso julgado, decidindo sobre objecto sobre o qual já não tem poder jurisdicional, violando assim o disposto no n.º 2, do artigo 580º, n.º 1, do artigo 619º, artigo 628º, fundamentando o presente recurso nos termos do disposto nas alíneas a) e b), do artigo 674º, do mesmo diploma legal; pelo que deverá o Acórdão ser revogado e substituído por outro que, em virtude do respeito pelo caso julgado, declare não ser possível conhecer do objecto do recurso de apelação dos aqui Recorridos, com as demais consequências legais. (…)”
Os requerentes responderam, sustentando, em síntese, que o Acórdão recorrido não incorre em ofensa de caso julgado, pelo que deve ser mantido nos seus precisos termos.
Terminaram a sua alegação com as seguintes conclusões:
1. Os recorrentes alegam, em suma, que o Acórdão do qual recorrem para este Tribunal ofende o caso julgado porque, “por Sentença já transitada em julgado (artigo 628.º CPC) não podia o Tribunal da Relação do Porto conhecer do objeto do recurso de apelação por estar extinto o poder jurisdicional quanto ao mesmo”, porém, não assiste qualquer razão aos apelantes.
Da alegada nulidade de omissão de pronúncia,
2. O Douto Acórdão proferido pelo Tribunal a quo inicia a sua análise exactamente por este ponto, conforme passamos aqui a transcrever: “(…) o que é facto é que não contempla o segundo dos efeitos visados no procedimento e que não houve desistência do recurso anteriormente formulado. Pelo contrário, ficou ressalvado em ata o interesse dos requerentes na manutenção do recurso, inexistindo decisão transitada em julgado a salvaguardar. Eis por que se conheceu dos termos do recurso.”
3. Pelo aqui transcrito, verifica-se que, contrariamente ao alegado pelos apelantes, o Tribunal a quo analisou a nulidade invocada por estes e referiu expressamente que não existe caso julgado quanto à questão em análise nos presentes autos.
4. Nesse sentido, não existe qualquer nulidade de omissão de pronúncia no Acórdão então proferido pelo Tribunal a quo, devendo, por isso, improceder a pretensão dos recorrentes, o que desde já se requer para os devidos e legais efeitos.
Da inadmissibilidade legal da apresentação do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça,
5. Os recorrentes vêm recorrer do Douto Acórdão proferido por pelo Tribunal a quo, ao abrigo do n.º 1 do art. 675.º e do n.º 1 do art. 676.º, ambos do CPC.
6. Nos termos do n.º 2doart. 370.º do CPC, não cabe, em regra, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão proferido pelo Tribunal da Relação no âmbito dos procedimentos cautelares, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, ou seja, de qualquer uma das situações elencadas nas alíneas a) a d) do n.º 2 do art. 629.º do CPC.
7. Ora, conforme suprarreferido, não existe qualquer ofensa ao caso julgado, pois, tal pretensão já foi apreciada pelo Tribunal a quo que referiu expressamente que não existe qualquer caso julgado a salvaguardar e, não existindo qualquer caso julgado para ser ofendido, salvo o devido respeito, não existe qualquer fundamento legal para ser admitido o presente recurso, pelo que o mesmo deve ser rejeitado, o que desde já se requer para os devidos e legais efeitos.
Sem prescindir,
Da alegada nulidade decidida pelo Tribunal a quo – não fundamentação de Direito,
8. Os apelantes alegam, em resumo que, o Tribunal a quo procedeu “ao saneamento da nulidade por no seu entendimento: “(…) explicitada que foi a posição dos requerentes, consignou-se que estes mantinham interesse no conhecimento da questão sob recurso (…)”” e que, “pela gravidade do decidido” não podem os apelantes concordar pelo que, o Acórdão proferido pelo Tribunal a quo, é nulo pois não “especifica os fundamentos de Direito em que fundamenta a sua decisão”.
9. Os apelantes arguiram a nulidade, como estão agora a arguir, a nulidade da Decisão Singular proferida pelo Tribunal a quo, por falta de fundamentação de direito.
10. Face a esta arguição, o Tribunal a quo referiu o seguinte: “A arguição de nulidade pressupõe que o tribunal deveria ter justificado os motivos pelos quais conheceria dos termos do recurso existindo sentença com trânsito em julgado. Ora conhecer dos termos do recurso é precisamente aquilo que é pedido ao tribunal para o qual se recorre. Por outro lado, anteriormente não fora suscitada exceção de caso julgado. É certo que se trata de exceção dilatória de conhecimento oficioso (arts. 577.º/i e 578.º do C.P.C.). Mas não se entrevendo que os respetivos pressupostos estivessem reunidos, como não estão, não haveria como nem porquê debruçar-se o tribunal sobre a mesma. Salvaguardando-se, porém, que a questão tenha sido explicitada de forma deficiente, passa-se a suprir a nulidade.”
11. E, após isto, o Tribunal a quo, apresentou as razões de facto e de direito pelas quais estava a conhecer do recurso interposto pelos aqui apelados, isto é, o Tribunal a quo supriu a alegada nulidade da Decisão Singular proferida anteriormente e fundamentou os motivos que o levou a analisar o recurso interposto pelos aqui apelados.
Do caso julgado,
14. Em suma, alegam os apelantes que, a 6 de outubro de 2023, as partes fizeram uma transação, vertida em ata, que colocou termo aos presentes autos, transação esta homologada por Sentença pelo Tribunal de 1ª instância e, nesse sentido, tendo esta Sentença transitado em julgado, o Tribunal a quo deveria abster-se de conhecer deste recurso e que, ao decidir pela “inexistência de trânsito em julgado” e ao conhecer do mesmo, o Tribunal a quo violou o princípio geral de extinção do poder jurisdicional.
15. Os aqui apelados avançaram com um procedimento cautelar não especificado onde formularam dois pedidos diferentes, a saber: - Que os requeridos fossem condenados a abster-se de praticar qualquer ato que impeça ou limite o uso do ramal de ligação à fossa séptica e respetiva caixa que se localiza no prédio misto, composto por parte rústica e urbana, sito na Rua da ..., em ...; e - Que a obra que os requeridos estão a levar a cabo seja embargada, notificando-se os recorridos para a não continuar e, para que procedam à reposição do prédio no estado que existia anteriormente.
16. E, para sustentar tais pedidos, os aqui apelados alegaram, separadamente, quais os motivos pelos quais deveriam os recorridos ser condenados nos precisos termos então peticionados.
17. Certo é que, se quanto ao primeiro pedido, nomeadamente quanto à fossa séptica, as partes conseguiram chegar a um entendimento, que ficou vertido em ata no passado dia 6/10/2023, a verdade é que, quanto ao segundo pedido, de embargo de obra por ofensa dos direitos dos recorrentes, as partes não chegaram a qualquer entendimento.
18. Ou seja, quanto à obra em causa nada foi transacionado pelas partes e, mais, ficou logo em ata que os recorrentes mantinham interesse no recurso então apresentado, pelo que, nesse seguimento, foi proferido Despacho pelo Tribunal da 1ª instância a remeter o processo ao Tribunal a quo.
19. O Ilustre Mandatário dos apelantes estava presente na diligência e nada referiu quanto a isto, uma vez que bem sabia que as partes não tinham chegado a qualquer entendimento quanto à obra, pelo que, neste momento, não se consegue compreender o problema agora criado pelos apelantes, pois é do perfeito conhecimento destes e do seu Ilustre Mandatário que nada foi acordado quanto à obra, muito pelo contrário, os apelados mantém interesse em que a mesma seja embargada nos exatos termos peticionados.
20. Ademais, se os apelantes queriam salvaguardar qualquer posição diferente quanto ao pedido de embargo de obra, deveriam ter-se manifestado aquando da transação efetuada, tal como os apelados o fizeram.
21. Nesse sentido, não havendo qualquer decisão sobre o pedido ou qualquer transação sobre este pedido ou mesmo desistência dos pedidos, naturalmente, não existe qualquer trânsito em julgado, como bem analisou o Tribunal a quo.
22. Pelo que, com o devido respeito, não há qualquer decisão a salvaguardar, não há qualquer caso julgado.
23. Se os apelantes continuaram a obra, apesar do embargo feito pelos apelados, terão de assumir as devidas consequências.
24. Certo é que, neste momento e aqui chegados, cremos que não existem quaisquer dúvidas que não existe caso julgado a ser salvaguardado pelos presentes autos, pelo que apenas pode improceder o recurso apresentado pelos apelantes.
Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.
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II-Fundamentação
II – A – Os elementos factuais relevantes são os que constam do relatório que antecede, havendo apenas que acrescentar que da sentença homologatória transcrita não foi interposto qualquer pedido de retificação ou reforma, arguidas nulidades ou interposto recurso.
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II B – de Direito
Como resulta do relatório, a questão – a invocada ofensa de caso de julgado – decorre e traduz-se no seguinte:
Havia sido interposto (pelos requerentes) recurso de apelação da decisão de 16-05-2023, que havia decidido um dos pedidos (que havia declarado extinto, por inutilidade superveniente, o 2.º pedido formulado e que não havia admitido a ratificação do embargo extrajudicial), sucedendo que, após a interposição de tal recurso de apelação e tendo os autos prosseguido (para conhecimento do 1.º pedido), as partes lavraram (na audiência de julgamento) transação, homologada por sentença que entretanto transitou em julgado.
Sustentando os recorridos/recorrentes que o caso julgado formado por tal sentença homologatória e a consequente extinção da instância obstavam a que se conhecesse da apelação, pelo que o Acórdão recorrido, ao conhecer da apelação, ofendeu o caso julgado formado pela sentença homologatória.
Vejamos:
Uma vez proferida uma sentença, “fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa” (art. 613.º/1 do CPC); e esgotados os meios disponíveis para a respetiva impugnação, considera-se a mesma transitada em julgado (cfr. 628.º do CPC), “trânsito em julgado” que significa (cfr. 619.º/1 do CPC) julgamento definitivo (a decisão, sendo de mérito, passa “a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele, nos limites fixados pelos arts. 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos arts. 696.º a 702.º”), circunstância esta geradora da extinção da instância (art. 277.º/a) do CPC).
O que vimos de dizer é bastante elementar e não é, evidentemente, nos efeitos de ordem substantiva e processual que uma sentença produz que reside a divergência entre as partes.
A divergência esta na “interpretação” da transação e da subsequente sentença homologatória (constantes da ata de 06/10/2023): sustentam os recorrentes que dizem respeito e abrangem todo o objeto processual e sustentam os recorridos que apenas abrangem/decidem parte do objeto processual.
E a primeira observação que deve ser feita é a de que as partes, seja qual for o desfecho da presente revista, só poderão queixar-se de si mesmas: não é aceitável que uma transação tão simples possa dar lugar a dúvidas e discussão sobre o âmbito do objeto processual que foi transigido.
Fala-se em transação judicial para designar o acordo transacional que é concluído na pendência de uma ação judicial, com vista a pôr-lhe termo; e tanto pode envolver a totalidade do objeto do litígio como ser meramente parcial, hipótese em que o processo prosseguirá para se conhecer da parte restante.
Nesta última hipótese, mandam as boas práticas e as leges artis que se faça constar isso mesmo da transação, ou seja, que se diga que a mesma é parcial e que os autos continuarão para o conhecimento deste ou daquele objeto (devidamente identificado) e dos pedidos “tal e tal”.
Identicamente, não sendo a transação parcial, mandam as boas práticas e as legis artis que a totalidade do objeto do processo seja incluído no clausulado da transação, quanto mais não seja através duma cláusula final em que se diga que “o A. desiste dos restantes pedidos formulados”.
Como nem uma coisa nem outra foi feita, convoca-se o Supremo Tribunal para que se pronuncie sobre o sentido da transação.
É claro que “em cima” de uma tal transação foi proferida uma sentença que a homologou, havendo quem sustente que a função desta sentença não é a de decidir a controvérsia substancial, pelo que a verdadeira fonte da solução do litígio é o ato de vontade das partes (Alberto dos Reis); e quem sustente que à sentença homologatória se deve associar o valor de uma decisão de mérito constitutiva de caso julgado (Teixeira de Sousa e Lebre de Freitas).
Seja qual for o melhor entendimento, o certo é que a sentença homologatória chama a si a solução de mérito para que aponta a transação, acabando por dar, ela própria (a sentença homologatória), mas sempre em concordância com a vontade das partes, a solução do litígio, pelo que – é onde se pretende chegar – é na vontade que as partes exprimiram na transação que tem de ser encontrado o desfecho da presente revista.
Os contratos (e a transação é um contrato – cfr. art. 1248.º do C. Civil), assim como as sentenças (esta ex vi art. 298.º do C. Civil), são interpretáveis, sendo que aqui, na tarefa interpretativa, desconhecendo-se a vontade real dos declarantes, a solução terá que ser extraída da aplicação do art. 238.º/1 do C. Civil, segundo o qual, “nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso”.
Como resulta das observações acima feitas, têm um mínimo de correspondência no texto da transação quer a “tese interpretativa” da transação total quer a “tese interpretativa” da transação parcial: quanto à “tese” total, por não ser dito que a mesma é parcial; quanto à tese “parcial”, por as cláusulas não incluírem todo o objeto do processo.
Assim, acaba por vencer a nossa hesitação interpretativa a menção constante do final da ata, segundo a qual, ato contínua à homologação da transação, pelas “mandatárias dos requerentes foi pedida a palavra e, no seu uso, declararam que mantêm interesse no conhecimento do recurso” (em que veio a ser proferido o Acórdão ora recorrido).
Não é que tal declaração tenha relevo processual: o art. 644.º/4 do CPC (assim como, antes, o art. 735.º/2 do CPC de 1961) alude a uma situação de manifestação de interesse (que tem que ser objetivo), tendo em vista ser admitida a impugnação de decisões intercalares de que não foi possível recorrer anteriormente, mas, como é evidente (esquecendo que o art. 644.º/4 está gizado para as decisões intercalares), sendo a transação parcial, não era necessária tal manifestação de interesse e, sendo a transação total, não era a manifestação de interesse que fazia com que o recurso fosse admissível.
Agora, tendo sido feita tal declaração, ato contínua à homologação da transação, sem que a parte contrária haja diga/oposto o que quer que fosse – designadamente, sem que haja manifestado a sua perplexidade por, caso a transação fosse total, os requerentes continuarem a pretender que fosse conhecido um objeto que haviam acabado de incluir na transação – sobressai a ideia interpretativa da transação parcial, de as partes haverem feito transação apenas e só em relação ao 1.º pedido.
Por conseguinte, o Acórdão recorrido ao pronunciar-se e conhecer da apelação que havia sido interposta da decisão de 16/05/2013 (que não havia tomado qualquer decisão sobre o 1.º pedido) não ofendeu qualquer caso julgado formado pela sentença homologatória de transação, que, tudo visto e ponderado, apenas se pronunciou e fez, com o seu trânsito, caso julgado em relação ao 1.º pedido.
É quanto basta para julgar improcedente a revista.
Não se verificando as nulidades invocadas.
Segundo a alínea b) do art. 615.º/1, constitui causa de nulidade da sentença/acórdão a falta de fundamentação, porém, quando se fala, a tal propósito, em “falta de fundamentação”, está-se a aludir à falta absoluta e não às situações em que a fundamentação é deficiente, incompleta ou não convincente. Segundo a referida alínea d) do 615.º/1, constitui causa de nulidade da sentença/acórdão o juiz deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, porém, quando se fala, a tal propósito, em “omissão de conhecimento” ou de “conhecimento indevido”, está-se a aludir e remeter para as questões a resolver a que alude o art. 608.º do CPC.
Bastando, para se perceber que tais nulidades não se verificam, atentar que consta do Acórdão recorrido (e o Acórdão recorrido é o Acórdão da Conferência e não a Decisão Sumária), o seguinte:
“A arguição de nulidade pressupõe que o tribunal deveria ter justificado os motivos pelos quais conheceria dos termos do recurso existindo sentença com trânsito em julgado. (…) Por outro lado, anteriormente não fora suscitada exceção de caso julgado. É certo que se trata de exceção dilatória de conhecimento oficioso (arts. 577.º/i e 578.º do C.P.C.). Mas não se entrevendo que os respetivos pressupostos estivessem reunidos, como não estão, não haveria como nem porquê debruçar-se o tribunal sobre a mesma. Salvaguardando-se, porém, que a questão tenha sido explicitada de forma deficiente, passa-se a suprir a nulidade.”
E, após isto, passou a apreciar-se exceção de caso julgado e concluiu-se que “(…) embora não tenha sido ressalvado que o acordo alcançado se destinava apenas a dirimir a primeira das questões suscitadas, o que é facto é que não contempla o segundo dos efeitos visados no procedimento e que não houve desistência do recurso anteriormente formulado.”
*
III - Decisão
Nos termos expostos, nega-se a revista.
Custas pelos Requeridos/recorrentes
*
Lisboa, 28/05/2024
António Barateiro Martins (relator)
Ferreira Lopes
Nuno Ataíde