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Jurisprudência
N.º de Processo:
1420/11.0T3AVR-BT.G1-A.S1
www.dgsi.pt Fonte: STJ (DGSI)
Data:
06/12/2023
Meio Processual:
Jurisprudência:
Votação:
Relator:
Sumário

I. A simples participação disciplinar (ou, mesmo, criminal) contra um magistrado não é apta a gerar na comunidade a percepção de que aquele juiz se mostra incapaz de manter a sua isenção e imparcialidade nos processos em que tiver intervenção o participante.

II. Nos dias que correm, são cada vez mais frequentes os casos em que, por tudo (e, em alguns casos, por nada) se recorre à queixa – disciplinar ou criminal – contra magistrados. Se em todos os casos a simples dedução da queixa constituísse motivo de recusa (ou de escusa) do magistrado, estaria encontrada a forma de paralisar os tribunais e de impedir o andamento normal dos processos.

Decisão Texto Integral

Acordam neste Supremo Tribunal de Justiça:


I. 1. AA veio, por intermédio da sua ilustre advogada, requerer a recusa do Exmº Sr. Desembargador BB, em funções no Tribunal da Relação de Guimarães, para intervir no recurso que, com o nº 1420/11.0T3AVR, aí corre termos, com os seguintes fundamentos:

«1. Um incidente de recusa deve ser interposto pelo arguido quando o mesmo tenha fundamento sério e grave para colocar em causa a imparcialidade do Exmo. Sr. Juiz visado.

2. O arguido tem o direito inalienável de apresentar o incidente sempre que entenda existirem suspeitas de que a isenção e imparcialidade estejam ameaçadas, seja por motivos externos ou internos ao processo.

3. Tal incidente tem projecção naquilo a que se chama Rule of Law, constituindo assim um escudo normativo e um parâmetro referencial que visa colocar limites à actuação funcional do Estado-juiz no desenho funcional do processo penal. Mas não só. O Rule of law visa, igualmente, proteger a dignidade funcional da administração da justiça penal, que se quer proba, pregante de pundonor funcional e, essencialmente, de confiança.

4. Os pilares identitários em que repousa o Rule of law assentam principalmente no desenrolar de forma serena, tranquila e objectiva do processo – aquilo a que chamamos de imparcialidade.

5. A imparcialidade de um juiz pode ser colocada em causa por diversas razões, sejam elas objectivas ou subjectivas, ou ambas.

6. Os pilares identitários do Rule of law são colocados em causa quando haja razões, objectivamente fundadas, para se crer que a justiça penal não possa ser realizada de forma isenta, serena e tranquila por se constatar a existência de factos oriundos de situações exógenas e que nos façam recear que tais princípios de isenção e de imparcialidade foram ou estão em risco de ser quebrados, ainda que inconsciente ou não intencionalmente.

7. O Ser Humano, enquanto ser sentimentalista e de emoções não consegue, por vezes, controlar os seus ímpetos. Sendo juiz ou não, ninguém consegue vestir uma “capa de ferro” e decidir sem emoções, que estão presentes em tudo o que fazemos quotidianamente.

Dito isto, vejamos então o que nos mobiliza ao presente incidente de recusa:

8. O Exmo. Sr. Dr. Juiz Desembargador BB participou muito recentemente no julgamento do recurso na Relação no processo 523/17.2...2, onde proferiu acórdãos datados de 26.06.2023 e de 03.10.2023, que se juntam em anexo,

9. Fruto do desenrolar processual ali desenvolvido pelo arguido AA, e perante uma decisão proferida pelo Sr. Juiz Desembargador Relator que decidiu pronunciar o arguido, mandando-o para julgamento pelos factos constantes da acusação quando o recurso do Ministério Público discutia apenas uma única questão jurídica que era passível de discussão, a saber, a nulidade da acusação – única questão jurídica apreciada na decisão instrutória recorrida pelo M.P..

10. Isto porque, na parte final da Decisão Instrutória proferida pela Exma. Juiz de Instrução de ... foi declarado prejudicado o conhecimento de todas as demais questões suscitadas no requerimento de abertura de instrução, constando da mesma expressamente o seguinte:

“julgo procedente o pedido de nulidade da acusação pública (…)

Julgo prejudicadas todas as demais questões suscitadas”

11. Certo é que o Exmo. Sr. Juiz Desembargador aqui visado no incidente, depois de ter sido apresentada a nulidade do referido acórdão de 26.06.2023, por excesso de pronúncia, uma vez que o Tribunal da Relação decidiu pronunciar o arguido 1 pelos factos constantes da acusação quando a decisão impugnada pelo Ministério Público (naquele processo) não podia sequer impugnar uma decisão quanto a uma “não pronúncia dos indícios”, pois na decisão recorrida nunca existiu essa “não pronúncia por falta de indícios”, apenas apreciou e declarou a nulidade da acusação (conforme decisão instrutória em anexo a este incidente), ainda assim o Sr. Juiz Relator visado no incidente emitiu novo acórdão em 03.10.2023 onde, em resumo, faz constar que um Juiz quando se apercebe que errou não emenda o seu erro, transcrevendo-se o parágrafo descrito naquele acórdão:

O alcance é o seguinte: o juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu; nem a decisão, nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela um todo incindível.

Ainda que, logo a seguir ou passado algum tempo, o juiz se arrependa, por adquirir a convicção de que errou, não pode emendar o seu suposto erro.

Para ele a decisão fica sendo intangível.

12. Mas não é tudo. Refere ainda o acórdão de que se recorre, que um juiz tudo fará para que a decisão por si proferida não seja modificada, o que transparece do excerto a seguir transcrito:

Relativamente a questão ou questões sobre que incidiu a sentença ou despacho, o poder jurisdicional do seu signatário extinguiu-se. Mas isso não obsta, é claro, a que o juiz continue a exercer no processo o seu poder jurisdicional para tudo o que não tenda a alterar ou modificar a decisão proferida.

13. Não fosse o bastante, ainda se assumiu que, por mais grave que sejam as patologias que estejam no acórdão de 26.06.2023, não se altera o acórdão. É o que decorre do parágrafo que igualmente se transcreve:

Nesta conformidade, o acórdão emitido em 26/06/2023 por esta Relação, do qual o arguido AA discorda, não pode ser, no seu aspecto substancial, objecto de nova discussão, no âmbito da apreciação de um requerimento de arguição de nulidade da decisão, por graves que possam ser as patologias de que o mesmo, no entender do requerente, possa enfermar, apenas podendo ser pontualmente posto em causa na hipótese de alguma das anomalias de que ele possa estar afectado ser integradora de nulidade de sentença tipificada no nº 1 do Artº 379º do C.P.Penal, ou noutra sede legal, tendo como pano de fundo o princípio da tipicidade ínsito no Artº 118º do C.P.Penal, segundo o qual a inobservância das normas da lei processual só é geradora de nulidade nos casos especialmente previstos.

14. Na verdade, e pese embora não seja o teor das decisões daqueles autos que leva ao pedido de afastamento do Sr. Desembargador destes autos, uma vez que as decisões aí proferidas desencadearam diversos mecanismos já em curso contra as decisões mas também contra todos os membros do Colectivo de Juízes que o assinou, é demasiado evidente que ninguém pode ser pronunciado para julgamento pelos factos constantes da acusação, se aquela acusação foi contestada em Requerimento de abertura de instrução e, aquando da decisão instrutória, entre 10 questões aí suscitadas pelo arguido, a primeira delas procedeu (nulidade da acusação), e todas as demais questões não foram apreciadas e decididas, nomeadamente a suscitada falta de indícios que o arguido também questionou, matéria que na decisão instrutória não foi, sequer, apreciada.

15. Em bom rigor, o recurso do M.P. à decisão instrutória de ..., só podia ter sido parcialmente procedente, a entender-se, como se entendeu, que a nulidade da acusação não existia e, em consequência, tinha que ser ordenado o envio do processo para a fase de instrução, onde se encontrava e nunca foi terminada.

16. O próprio Procurador-Geral do Ministério Público junto do Tribunal da Relação emitiu parecer nesse sentido, jamais referindo o arguido ser pronunciado, peticionando, apenas, que fosse declarada como não nula a acusação declarada nula.

17. Porém, o Sr. Desembargador Relator ordenou, nos acórdãos de 26.06.2023 e de 03.10.2023 que o arguido fosse imediatamente julgado, em julgamento, tendo pronunciado o arguido pelos factos constantes da acusação.

18. O que poderia parecer uma decisão juridicamente impossível, aconteceu.

19. Face a tudo isto, e porque o arguido naquele processo foi mandado para julgamento sem sequer ter sido terminada a fase de instrução, o arguido AA apresentou junto do Conselho Superior da Magistratura uma participação disciplinar contra o Exmo. Sr. Juiz Desembargador Dr. BB, conforme documento que se anexa e que, por razões de economia processual se solicita que se dê por integralmente reproduzido para os devidos efeitos deste incidente, precisamente quanto aos factos que aqui se estão a mencionar.

20. Sabe o arguido AA que o Sr. Dr. Juiz Desembargador BB já foi informado pelo C.S.M. que o cidadão AA apresentou uma participação contra si.

21. O que não se sabia é que o Sr. Juiz Desembargador Relator destes presentes autos é o mesmo Juiz Desembargador contra quem o arguido AA apresentou uma participação ao C.S.M., sendo óbvio, portanto, o litígio existente.

22. Acreditamos não estar o Exmo. Sr. Desembargador agradado com o facto de estar a ser alvo de queixas por parte do arguido AA.

23. Esse facto é, por si só, mais do que suficiente para que o Exmo. Sr. Juiz Desembargador seja afastado dos presentes autos, os factos são muito recentes (não têm sequer um mês) e como tal, não pode deixar de persistir uma enorme suspeição contra o Exmo. Sr. Juiz Visado no incidente.

24. Aliás, como se disse no início deste incidente, não deixam os Srs. Magistrados de serem humanos, movidos a sentimentos também, e a proximidade destes factos, correlacionados com as participações e recursos que o aqui arguido efectuou naqueles autos contra o Exmo. Sr. Juiz Desembargador, fazem, obviamente, temer uma potencial falta de isenção e de imparcialidade para com as decisões a proferir neste processo no que diz respeito à sua pessoa.

25. Resulta do art.º 40.º alínea c) do C.P.P. que “nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver; c) participado em julgamento anterior”.

26. Mais resulta do art.º 43.º n.ºs 1 a 3 do C.P.P. que a intervenção de um juiz no processo é considerada suspeita quando existam motivos sérios e graves adequados a gerar a desconfiança sobre a sua imparcialidade.

27. É o caso dos autos, além do Sr. Desembargador já ter proferido/participado nas decisões do processo n.º 523/17 onde o arguido é o mesmo e a factualidade em causa é, em tudo idêntica, àquela que esteve na base da condenação do processo 1420/11.0T3AVR, mas acima de tudo quando neste momento está em curso processo disciplinar, entre outros mecanismos que a defesa do arguido AA naquele processo se encontra a ultimar para revogar as decisões proferidas, por entender que são as mesmas ilegais, e tudo isto ser já do conhecimento do Exmo. Sr. Juiz Desembargador, outro entendimento não poderemos ter, ressalvado o devido respeito, que não seja que o Sr. Desembargador visado deverá ser recusado, não podendo permanecer nos presentes autos processuais, não podendo intervir na decisão de recurso do presente apenso, sob pena de estar seriamente em risco a imparcialidade e o sentido de justiça da decisão a proferir.

28. Sobre questão idêntica à presente, no processo n.º 664/15.0IDPRT-A.P1, do Tribunal da Relação do Porto, decisão datada de 21.09.2016, acessível em www.dgsi.pt, através do atalho http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/-/806AB9E6B6F2D1EC80258048004BCB43 ficou decidido o seguinte:

“Constitui fundamento de escusa à intervenção do juiz no processo a circunstância de o arguido ter dirigido ao CSM uma participação contra aquele na sequência da qual foi instaurado e se mantém pendente um inquérito disciplinar.”

29. Aqui ocorre situação idêntica, em que o requerente moveu participação ao Sr. Juiz Relator visado no incidente por via dos acontecimentos no processo 523/17.2....

30. Não contava o arguido AA que, num outro recurso a subir ao Tribunal da Relação, agora nestes autos 1420/11 e neste apenso, fosse sorteado o mesmo Sr. Juiz Desembargador Relator com quem se encontra em litigância e muito recentemente. Note-se que o último acórdão naqueles autos é de 03.10.2023, a participação efectuada ao CSM é de finais de Outubro, encontrando-se ainda em curso outras queixas/reclamações/pedidos de Deliberações, contra o Sr. Relator BB e movidas pelo aqui arguido, ora requerente, AA.

31. Todas as participações que o arguido AA efectuou e pretende efectuar são o exercício do direito à queixa, do direito à reclamação e em busca da verdade e da legalidade, não podendo o arguido aceitar a leviandade com que foram proferidos aqueles acórdãos, na medida em que, mesmo depois de o arguido ter alertado para o excesso de pronúncia – por terem sido conhecidos indícios nunca apreciados em 1.ª Instância – o arguido, como sempre, acabou prejudicado em tudo e ainda foi tributado em custas processuais, quando todos temos o dever, senão mesmo obrigação legal de, imediatamente ou o quanto antes, perante erros materiais, suscitar os mesmos junto dos Tribunais, existindo mecanismos processuais quer no C.P.P. quer no C.P.C. que permitem ao Juiz corrigir de forma imediata, seja oficiosamente ou a requerimento, erros que se verifiquem e que não podem, de facto, manter-se.

32. Em resumo, cremos ter ficado demonstrada a litigância existente entre o arguido AA e o Exmo. Sr. Juiz Desembargador BB e, ainda, as decisões muito recentes por aquele proferidas, datadas de 26.06.2023 e de 03.10.2023.

Face a todo o exposto, deve o Supremo Tribunal de Justiça dar provimento ao presente incidente de recusa e, em consequência, ser nomeado um outro Sr. Juiz Desembargador que substitua, pelas razões invocadas, o Dr. BB».

2. O Exmº Juiz Desembargador visado, através de despacho proferido nos autos, pronunciou-se, ao abrigo do disposto no art. 45.º n.º 3, do C.P.P., no sentido de o pedido de recusa em questão ser recusado:

“Da peça processual apresentada pelo arguido e requerente AA [na qual suscita o presente incidente de recusa], constata-se que os motivos nos quais estriba a sua pretensão prendem-se, na sua essência, com o facto de o signatário ter subscrito, no âmbito do Proc. nº 523/17.2..., na qualidade de relator, os acórdãos datados de 26/06/2023 e de 03/10/2023, nos quais também é arguido, entre outros, o ora requerente, AA, decisões essas que lhe foram desfavoráveis, e bem assim com a circunstância de, acerca do que em tais arestos se disse e se decidiu, ter apresentado contra o ora visado participação disciplinar perante o Conselho Superior da Magistratura. Facto esse que – diz –, “(…) é por si só, mais do que suficiente para que [o signatário] seja afastado dos presentes autos”, pois que “os factos são muito recentes (não têm sequer um mês) e como tal, não pode deixar de persistir uma enorme suspeição contra” o visado no incidente, sendo certo que “(…) não deixam os Srs. Magistrados de serem humanos, movidos a sentimentos também, e a proximidade destes factos, correlacionados com as participações e recursos que o aqui arguido efectuou naqueles autos contra o Exmo. Sr. Juiz Desembargador, fazem, obviamente, temer uma potencial falta de isenção e de imparcialidade para com as decisões a proferir neste processo no que diz respeito à sua pessoa.”.

Ora, salvo o devido respeito pela posição do requerente, considera o signatário que as invocadas circunstâncias não têm a virtualidade de, minimamente, colocar em causa a isenção, imparcialidade e seriedade que sempre coloca nas decisões que profere.

Ademais, e mau grado tal não revestir grande relevância para a decisão a tomar por V. Excelências, não pode o signatário deixar de refutar as afirmações que o requerente tece nos pontos 11 a 13 do seu requerimento, a propósito do acórdão de 03/10/2023, que apreciou e indeferiu a arguição de nulidade do acórdão de 26/06/2023, relativas à “não emenda dos erros” detectados nas decisões judiciais, afirmações essas totalmente desenquadradas do respectivo contexto, como se pode constatar pela leitura do que se escreveu nas págs. 2/6 de tal acórdão, com especial relevo para uma citação dos ensinamentos do Senhor Prof. Alberto dos Reis, ali devidamente assinalada, a propósito da figura do “esgotamento do poder jurisdicional”.

Finalmente:

- Em abono da total transparência (como não podia deixar de ser), confirma o signatário ter tido conhecimento da participação disciplinar feita pelo ora requerente AA contra os subscritores daqueles acórdãos, conhecimento esse que lhe adveio da comunicação que lhe foi enviada pelo Conselho Superior da Magistratura no dia 03/11/2023, na qual lhe foi remetida cópia da mesma, e bem assim (cópia) da proposta de 02/11/2023 do Exmo. Vogal Relator preconizando o seu arquivamento liminar “(…) por manifesta inexistência de fundamento válido de responsabilidade disciplinar relativamente aos três Exmos. Senhores Desembargadores visados.”; e

- Informa V. Excelências que ainda não ocorreu o trânsito em julgado do aludido acórdão de 26/06/2023, pois que dele recorreu para esse Alto Tribunal o ali arguido AA; recurso esse que, mau grado não admitido por despacho do relator, foi alvo de pertinente reclamação, nos termos do disposto no Artº 405º do C.P.Penal, a qual ainda se encontra pendente.

É isto que se me oferece dizer, ao abrigo do disposto no Artº 45º, nº 3, do C.P.Penal, na certeza de que V. Excelências, no mais elevado critério, decidirão como for de justiça”.

II. Realizada a Conferência, cumpre decidir.

Resulta do estatuído no nº 1 do artº 43º do CPP que “a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”.

O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, “mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nºs 1 e 2” – nº 3 do artº 43º do CPP.

O pedido de recusa deve ser apresentado perante o tribunal imediatamente superior, no caso, perante este Supremo Tribunal de Justiça – artº 45º, nº 1, al. a) do CPP.

O princípio do juiz natural, com consagração constitucional no artº 32º, nº 9 da CRP, encontra-se estabelecido em benefício e defesa do arguido e constitui uma garantia de que o processo - o seu processo - será julgado pelo juiz do tribunal determinado - por lei anterior - competente para o efeito.

Tal princípio só há-de ser arredado em situações extremas e, nomeadamente, naquelas em que o juiz natural não oferece as garantias de imparcialidade e de isenção, necessárias à função de julgar (naquele caso concreto, como é óbvio).

Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª ed., 132 e segs, afirma – em anotação ao artº 43º do CPP - que a imparcialidade do juiz pode ser apreciada de acordo com um teste subjectivo ou um teste objectivo. “O teste subjectivo da imparcialidade visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa. (…) A existência de relações pessoais do juiz com os sujeitos processuais não constitui necessariamente motivo de suspeição. (…) O teste objectivo da imparcialidade visa determinar se o comportamento do juiz, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, pode suscitar dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade. (…) Tratando-se de um tribunal colectivo ou do júri, basta a parcialidade de um dos seus membros para inquinar toda a actividade do tribunal (acórdão do TEDH Sander v. Reino Unido, de 9.5.2000)”.

Porém, se é certo que basta a parcialidade de um dos membros do tribunal para “inquinar toda a actividade do tribunal”, ainda que colectivo, certo é igualmente que, como já ensinava Cavaleiro de Ferreira , “(…) naqueles casos em que a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é, fundadamente, periclitante, o juiz não pode funcionar no respectivo processo. O juiz pessoalmente, e não o tribunal, estará, então, impedido (judex inhabilis) de funcionar, ou pode ser considerado suspeito (judex suspectus)”.

Assim colocadas as coisas:

O requerente fundamenta a sua pretensão no facto de ter apresentado queixa disciplinar, no Conselho Superior da Magistratura, contra o Exmº Desembargador BB, entendendo que tal facto – que é já do conhecimento do Sr. Desembargador – não será do seu agrado e que o mesmo “é, por si só, mais do que suficiente para que o Exmo. Sr. Juiz Desembargador seja afastado dos presentes autos, os factos são muito recentes (não têm sequer um mês) e como tal, não pode deixar de persistir uma enorme suspeição contra o Exmo. Sr. Juiz Visado no incidente” (sic).

É um facto que no requerimento que formulou, suscitando a recusa do Sr. Juiz Desembargador, o requerente tece longas considerações sobre excertos de dois acórdãos relatados pelo Sr. Desembargador BB, no Proc. 523/17.2...

Porém, é o próprio requerente quem afirma – ponto 14 do seu requerimento – que não é teor das decisões em causa que motiva o pedido de afastamento deste processo do Sr. Juiz Desembargador BB 2, antes a queixa que posteriormente formulou contra o mesmo, junto do Conselho Superior da Magistratura.

III. Vejamos, então, a factualidade relevante para apreciação da pretensão do requerente:

a) No Inquérito 523/17.2..., que correu termos nos serviços do MºPº junto do Juízo de competência genérica de ..., foi, no dia 16/4/2021, deduzida acusação contra vários arguidos, entre os quais o ora aqui requerente.

b) O ora requerente requereu a abertura de instrução, suscitando a nulidade da acusação e pugnando pela sua não pronúncia.

c) Realizado debate instrutório, a Mª Juíza de instrução criminal julgou procedente o pedido de declaração de nulidade da acusação, ao abrigo do disposto no artº 283º, nº 3, al. d) do CPP, julgando “prejudicadas todas as demais questões suscitadas”.

d) O MºPº recorreu desse despacho para o Tribunal da Relação de Guimarães, sustentando que a acusação não padecia da apontada nulidade e desta forma concluindo:

“Nestes termos, deverá ser concedido total provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a decisão instrutória recorrida e substituída por outra que:

1) considere suficientemente indiciados todos os factos constantes da acusação; e

2) em consequência, pronuncie os arguidos AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de corrupção passiva, p. e p. pelos artigos 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º e 373.º, n.º 1, todos do Código Penal, e CC e DD, pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de corrupção ativa, p. e p. pelos artigos 10º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º e 374.º, n.º 1, todos do Código Penal; ou

3) Em alternativa, devolva os autos ao Ministério Público, a fim de poder ser deduzida nova acusação”.

e) Por acórdão proferido em 26/6/2023 e relatado pelo Exmº Juiz Desembargador BB foi decidido:

“(…) acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogam o despacho recorrido e determinam que o mesmo seja substituído por outro que pronuncie os arguidos pela prática dos ilícitos penais que lhes são imputados na acusação pública, nos exactos termos aí descritos, seguindo-se a ulterior pertinente tramitação processual”.

f) Notificado dessa decisão, o ora requerente arguiu a nulidade da mesma, por excesso de pronúncia, assim concluindo o seu requerimento:

“(…) deve ser procedente o presente pedido de nulidade de acórdão, na medida em que o Tribunal da Relação não pode pronunciar os arguidos para julgamento sem que antes os mesmos, concretamente o AA, saiba a resposta a todas as demais questões suscitadas na Abertura de Instrução – o que se invoca”.

g) Em 3/10/2023, o Tribunal da Relação de Guimarães, em acórdão relatado pelo Exmº Sr. Juiz Desembargador BB, desatendeu a arguida nulidade, condenando o ora requerente em custas.

h) Neste último acórdão, lembrando o estatuído nos artºs 379º e 380º do CPP, aplicáveis aos acórdãos proferidos em recurso por força do artº 425º, nº 4 do mesmo diploma, bem como o que, a propósito da “extinção do poder jurisdicional e suas limitações” se estatui no artº 613º do CPC, aplicável ex vi do artº 4º do CPP, pode ler-se:

«Acerca do elementar e básico princípio de direito adjectivo do comummente apelidado “esgotamento do poder jurisdicional” a que alude o transcrito Artº 613º do C.P.Civil, relembremos [nunca é demais fazê-lo] os ensinamentos, sempre actuais, do Prof. Alberto dos Reis, In “Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Reimpressão, Coimbra Editora, 1984, pág. 126:

“Qual o alcance e justificação do princípio?

O alcance é o seguinte: o juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu; nem a decisão, nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela um todo incindível.

Ainda que, logo a seguir ou passado algum tempo, o juiz se arrependa, por adquirir a convicção de que errou, não pode emendar o seu suposto erro.

Para ele a decisão fica sendo intangível.

Convém atentar nas palavras «quanto a matéria da causa». Estas palavras marcam o sentido do princípio referido. Relativamente a questão ou questões sobre que incidiu a sentença ou despacho, o poder jurisdicional do seu signatário extinguiu-se. Mas isso não obsta, é claro, a que o juiz continue a exercer no processo o seu poder jurisdicional para tudo o que não tenda a alterar ou modificar a decisão proferida.

(...)

A justificação do princípio a que nos referimos e fácil de descobrir. O princípio justifica-se cabalmente por uma razão de ordem doutrinal e por uma razão de ordem pragmática.

Razão doutrinal: o juiz quando decide, cumpre um dever - o dever jurisdicional - que é a contrapartida do direito de acção e de defesa. Cumprido o dever, o magistrado fica em posição jurídica semelhante à do devedor que satisfaz a obrigação (...). E como o poder jurisdicional só existe como instrumento destinado a habilitar o juiz a cumprir o dever que sobre ele impende, segue-se logicamente que, uma vez extinto o dever pelo respectivo cumprimento, o poder extingue-se e esgota-se.

A razão pragmática consiste na necessidade de assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional.

(...)

O poder jurisdicional extingue-se logo que a decisão foi exarada no processo e portanto mesmo antes de as partes serem notificadas”.

Da letra da lei e das considerações doutrinárias supra expendidas resulta claro e evidente que, proferida a sentença (ou o acórdão), antes mesmo da sua notificação dos respectivos sujeitos processuais, não é lícito ao tribunal, mesmo por sua iniciativa, voltar a ocupar-se da matéria ou vir a tomar decisão que contrarie o decidido ou a respectiva fundamentação, apenas se permitido ao juiz “rectificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença”.

E, em processo penal, a possibilidade da alteração da sentença resume-se aos casos previstos no nº 1 do Artº 380º do C.P.Penal, os quais estão relacionados com a correcção de erros ou lapsos materiais, obscuridades ou ambiguidades, cuja eliminação não importe modificação essencial do decidido, e com o suprimento da falta no texto da decisão das menções prescritas pelo Artº 374º, fora das situações prefiguradas no Artº 379º (que são geradoras de nulidade).

Nesta conformidade, o acórdão emitido em 26/06/2023 por esta Relação, do qual o arguido AA discorda, não pode ser, no seu aspecto substancial, objecto de nova discussão, no âmbito da apreciação de um requerimento de arguição de nulidade da decisão, por graves que possam ser as patologias de que o mesmo, no entender do requerente, possa enfermar, apenas podendo ser pontualmente posto em causa na hipótese de alguma das anomalias de que ele possa estar afectado ser integradora de nulidade de sentença tipificada no nº 1 do Artº 379º do C.P.Penal, ou noutra sede legal, tendo como pano de fundo o princípio da tipicidade ínsito no Artº 118º do C.P.Penal, segundo o qual a inobservância das normas da lei processual só é geradora de nulidade nos casos especialmente previstos.

Isto posto.

Como se viu, no requerimento sub-judice invoca o arguido AA a nulidade do acórdão desta Relação, trazendo à colação o disposto no Artº 379º, nº 1, al. c), do C.P.Penal, no segmento em que faz alusão à apreciação, por banda do tribunal, “de questões de que não podia tomar conhecimento.”.

Pois que – diz –, com a procedência do recurso do Ministério Público na questão da nulidade da acusação, este tribunal da Relação não pode decidir pronunciar os arguidos, como fez, mas apenas revogar o despacho recorrido, declarando não existir, em seu entender, a nulidade da acusação, e ordenando o prosseguimento dos autos para prolação de nova decisão instrutória.

Salvo o devido respeito, não lhe assiste razão.

Como claramente se extrai da redacção da alínea d), do nº 1, do Artº 379º, do C.P.Penal [à semelhança, aliás, do que estatui o Artº 615º, nº 1, al, d), do C.P.Civil], a nulidade da sentença por excesso de pronúncia constitui o reverso da emergente da omissão de pronúncia.

Verifica-se excesso de pronúncia quando o juiz conheça de questão de que não lhe era lícito conhecer, porque não compreendida no objecto do recurso, sendo certo que, como assertivamente se refere no acórdão da Relação de Lisboa, de 11/01/2023, proferido no âmbito do Proc. nº 145/20.0PTOER.L1-3, in www.dgsi.pt, “O tribunal ad quem mostra-se adstrito a decidir um recurso, de acordo com o pedido formulado pelo recorrente.”.

Ora, na situação em apreço, compulsando as conclusões da motivação do recurso oportunamente apresentado pelo recorrente [como expressamente se referiu no acórdão reclamado, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal], constata-se que nelas suscitou o Ministério Público as seguintes questões relevantes que importava apreciar:

- Saber se se verificava, ou não, a nulidade da acusação pública proferida nos autos, nos termos considerados na decisão instrutória; e

Subsidiariamente

- Saber se o tribunal a quo deveria ter devolvido os autos ao Ministério Público, com vista à sanação do vício detectado, e à dedução de nova acusação.

Tendo o recorrente terminado a sua peça recursória peticionando fosse concedido total provimento ao recurso e, em consequência, fosse revogada a decisão instrutória recorrida e substituída por outra que considerasse suficientemente indiciados todos os factos constantes da acusação e, em consequência, pronunciasse os arguidos AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de corrupção passiva, p. e p.

pelos artigos 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º e 373.º, n.º 1, todos do Código Penal, e CC e DD, pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de corrupção activa, p. e p. pelos artigos 10º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º e 374.º, n.º 1, todos do Código Penal, ou, em alternativa, determinasse a devolução dos autos ao Ministério Público, a fim de poder ser deduzida nova acusação.

Sucede que, contrariamente ao que defende o arguido AA, este tribunal mais não fez do que abordar as suscitadas questões, analisando-as e fundamentando-as à luz dos normativos e com os argumentos que se consideraram aplicáveis ao caso, concluindo pela procedência do(s) invocado(s) fundamento(s) recursório(s), e extraindo as pertinentes consequências jurídicas, nos termos propugnados e peticionados pelo recorrente.

Na realidade, este tribunal abordou directamente as questões suscitadas pelo recorrente, solucionou-as, e conformou-as, como era seu dever, com o que lhe foi pedido, em nada extravasando tal pedido.

Decidiu, é certo, a desfavor e a descontento do arguido AA, ora reclamante, mas tal não equivale a um excesso de pronúncia.

O excesso de pronúncia existiria, como se disse, se o tribunal viesse a conhecer de matéria que não foi suscitada no recurso, o que não aconteceu.

Consequentemente, em nosso entender, foi cabalmente cumprido o desiderato ínsito na norma legal que o arguido AA invoca em abono da sua tese, rejeitando-se que o acórdão reclamado padeça da vicissitude que lhe é assacada pelo reclamante, ou seja, da nulidade a que alude o Artº 379º, nº 1, al. c), do C.P.Penal.

É, pois, manifesta, a falência da argumentação ora esgrimida a propósito desta temática, concluindo-se que o que emerge da pretensão do reclamante mais não é do que uma patente discordância e inconformidade quanto ao decidido por esta Relação, visando com esta “reclamação” uma nova reapreciação da posição tomada acerca do recurso, a qual lhe foi desfavorável, e olvidando que sobre a(s) matéria(s) em causa se esgotou o poder jurisdicional deste tribunal.

Assim sendo, não padecendo o acórdão reclamado do apontado vício, apenas resta concluir pela improcedência total da reclamação do arguido/reclamante AA».

i) Notificado do teor desse acórdão, o ora requerente apresentou no Conselho Superior da Magistratura uma participação disciplinar contra os (três) Juízes Desembargadores subscritores do mesmo, afirmando que a posição pelos mesmos assumida nos dois acórdãos referidos é susceptível de integrar a prática de infracção disciplinar.

j) Neste processo (1420/11.0T3AVR), interposto recurso de decisões proferidas no mesmo em 1ª instância, também pelo ora requerente, o mesmo foi distribuído, no Tribunal da Relação de Guimarães e em 20/10/2023, ao Exmº Desembargador BB, na qualidade de relator.

IV: Decidindo:

Como inicialmente referimos, é o próprio requerente quem afirma - ponto 14 do seu requerimento – que não é teor das decisões relatadas pelo Exmº Juiz Desembargador no Proc. 523/17.2... que motiva o pedido do seu afastamento deste processo (1420/11.0T3AVR-BT.G1), antes a queixa que posteriormente formulou contra o mesmo, junto do Conselho Superior da Magistratura, da qual aquele tem já conhecimento.

E compreende-se que assim seja.

Com efeito, como bem se refere no Ac. STJ de 8/7/2020, Pr. 17/17. 6YGLSB-I.S1 3,

“IX – Constitui jurisprudência que se julga pacífica que a simples discordância jurídica em relação aos actos processuais praticados por um Juiz, podendo e devendo conduzir aos adequados mecanismos de impugnação processual, não podem fundar a petição de recusa (Assim, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-05-2002, processo n.º 3914/01-5.ª).

X – Impõe-se, assim, que ao lançar mão de um acto tão extremo como é o da recusa de um determinado e identificado Juiz que se apresentem motivos objectivos, sérios e graves adequados a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. Até porque a recusa de um juiz é um acto relevante e grave, com fundamento na suspeita sobre a idoneidade do julgador, princípio básico e inerente à judicatura” 4.

A discordância técnica relativamente ao teor de uma decisão judicial não pode, manifestamente, fundamentar um pedido de recusa do magistrado subscritor da mesma. Das decisões de que se discorda recorre-se ou reclama-se. E, aliás, e segundo informação prestada pelo Exmº Juiz visado, do acórdão proferido em .../.../2023 foi interposto recurso, sendo certo que, apesar de não admitido, se encontra pendente a reclamação entretanto deduzida, nos termos do artº 405º do CPP.

Sobre esta matéria – e a terminar – resta frisar que as expressões que tanta indignação produziram no ora requerente, constantes do acórdão que indeferiu a nulidade arguida pelo requerente, relativamente ao acórdão de .../.../2023, não constituem qualquer manifestação de arrependimento ou reconhecimento de qualquer erro, como parece resultar do seu requerimento de recusa, antes constituem parte integrante de um excerto doutrinário (da autoria do Prof. José Alberto dos Reis), aliás, claramente referido e citado, sem qualquer dúvida quanto à sua autoria, sobre o alcance do “esgotamento do poder jurisdicional”, a que alude o artº 613º do CPC.

E, assim, o “motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança” 5 sobre a imparcialidade do Sr. Desembargador BB restringe-se, afinal, a uma participação disciplinar que o ora requerente formulou junto do Conselho Superior da Magistratura contra os subscritores dos dois acórdãos proferidos no Proc. 523/17.2..., por entender que as decisões em causa importam na prática de uma infracção disciplinar.

Sobre o destino dessa participação, nada adianta o requerente.

E, assim, parece entender o requerente que o simples facto de participar disciplinarmente de um magistrado constitui fundamento para, de seguida, recusar a sua intervenção em qualquer processo em que ele próprio tenha intervenção, na qualidade de arguido.

Mas sem qualquer razão.

Da queixa apresentada pelo ora requerente resulta que o mesmo discorda das decisões tomadas pelos subscritores dos dois acórdãos referidos.

E essa discordância, como é evidente, é naturalmente legítima.

Mas da queixa apresentada não resulta, sequer, que o requerente veja em tais decisões qualquer fundamento de suspeita sobre a imparcialidade dos juízes subscritores das mesmas (e, em particular, do Sr. Desembargador BB), isto é, não é afirmado – explícita ou tacitamente – que tais decisões tenham sido proferidas em razão de um particular interesse dos seus subscritores, de alguma reserva ou preconceito contra o requerente, de alguma vontade de – por alguma razão que aqui se não alcança – pretender prejudicar o requerente ou beneficiar terceiros.

Com efeito, no caso em apreço o requerente não questiona a imparcialidade, o distanciamento do Exmº Juiz Desembargador recusado para integrar o colectivo e relatar o acórdão no processo que lhe foi distribuído. Não alega facto algum que estabeleça uma ligação do Exmº Juiz ao processo e que o possa determinar a decidir em determinado sentido.

E, não beliscada a imparcialidade subjectiva do Exmº Desembargador recusado, não vemos, também, que por algum modo se mostre afectada a sua imparcialidade objectiva.

A simples participação disciplinar (ou, mesmo, criminal) contra um magistrado não é apta a gerar na comunidade a percepção de que aquele juiz se mostra incapaz de manter a sua isenção e imparcialidade nos processos em que tiver intervenção o participante.

Nos dias que correm, são cada vez mais frequentes os casos em que, por tudo (e, em alguns casos, por nada) se recorre à queixa – disciplinar ou criminal – contra magistrados. Se em todos os casos a simples dedução da queixa constituísse motivo de recusa (ou de escusa) do magistrado, estaria encontrada a forma de paralisar os tribunais e de impedir o andamento normal dos processos.

A este propósito, este Supremo Tribunal de Justiça, no seu Ac. de 21/3/2013, Proc. 19/13.1YFLSB, rel. Henriques Gaspar 6, assim decidiu:

“I - (…) Os motivos de recusa vêm, assim, apresentados numa dupla perspectiva da imparcialidade subjectiva e de imparcialidade objectiva.

II - A imparcialidade subjectiva – que constitui o primeiro dever do juiz como garantia de um direito fundamental dos cidadãos – há-de, por isso, presumir-se até prova em contrário, exigindo-se para a recusa que sejam alegados e se demonstrem factos ou circunstâncias que permitam expressar e revelar exteriormente, em sinais objectivos, matéria do foro íntimo do juiz.

III -No caso dos autos, a requerente limita-se a referir que apresentou queixa criminal e disciplinar contra a juiz que pretende recusada, e que «a natureza confidencial daqueles procedimentos» «não permitem à requerente fazer, dos mesmos, qualquer concreta referência».

IV -Mas, nesta perspectiva, sem factos objectivos – a queixa conta a Magistrada é sempre subjectiva, podendo ser mesmo, no domínio das hipóteses, caluniosa –, não pode ser questionada a imparcialidade subjectiva, por não haver factos que permitam o julgamento e a decisão sobre uma circunstância processual grave, que é o afastamento do juiz de julgamento de uma causa; de outro modo, permitir-se-iam todos os desvios colaterais, com a utilização, por simples afirmações, de um meio processual de excepção, com os consequentes riscos de uso desviante do processo. Não estão, assim, alegadas, e muito menos demonstradas, circunstâncias que possam revelar a quebra da imparcialidade subjectiva.

(…)

VI - É o caso do impedimento previsto na norma do art. 122.°, n.º 1, al. g), do CPC, que determina que o juiz não pode intervir quando a parte tiver deduzido contra o juiz acusação penal em consequência de factos praticados no exercício das funções ou por causa delas, mas apenas desde que a acusação tenha sido deduzida. Esta é uma norma de salvaguarda e de defesa do juiz e do sistema de justiça contra a utilização infundada de queixas como motivo de perturbação e de uso desviante do processo. Por isso, apenas no caso de verificação da consistência indiciária da matéria da queixa, através da dedução e recebimento da acusação, se constituirá motivo de impedimento por risco de afectação da imparcialidade subjectiva do juiz.

(…)” (subl. nossos).

E, mais recentemente (Ac. STJ de 13/4/2023, Proc. 16/23.9YFLSB-A 7 e de forma mais clara e incisiva:

“I - O incidente processual de escusa de juiz (tal como o de recusa), previsto no art. 43.º do CPP, assenta em princípios e direitos fundamentais das pessoas, próprios de um Estado de direito democrático, visando assegurar a imparcialidade dos tribunais, o que exige independência e garantia de imparcialidade dos juízes.

II - As queixas-crime ou mesmo, por exemplo, participações ao CSM, só por si não constituem fundamento bastante de pedido de recusa do juiz em processo penal, nem tão pouco de pedido de escusa. Se assim fosse, então estaria descoberto um expediente para remover qualquer juiz e suscitar a questão da sua imparcialidade, assim se perturbando a atividade dos tribunais, dando cobertura ao uso indevido do processo e contornando as regras da competência e o princípio do juiz natural (subl. nosso).

É este o entendimento que se acompanha e se subscreve, razão pela qual há que concluir que a simples dedução de uma participação disciplinar, no Conselho Superior da Magistratura, contra um determinado juiz, não constitui fundamento para a sua recusa nos processos em que o participante tenha intervenção.

V. Por tudo quanto exposto fica, acordam neste Supremo Tribunal de Justiça em recusar, nos termos do art. 45.º, n.º 4 do CPP, o pedido de recusa apresentado pelo requerente AA, considerando-o manifestamente infundado.

Fixa-se em 7 UC’s a importância a que se reporta o artigo 45.º n.º 7 do CPP.

Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 3 Ucs.

Lisboa, 6 de Dezembro de 2023 (processado e revisto pelo relator)

Sénio Alves (relator)

Teresa Féria (1ª adjunta)

Ernesto Vaz Pereira (2º adjunto)

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1. III. DISPOSITIVO

  Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogam o despacho recorrido e determinam que o mesmo seja substituído por outro que pronuncie os arguidos pela prática dos ilícitos penais que lhes são imputados na acusação pública, nos exactos termos aí descritos, seguindo-se a ulterior pertinente tramitação processual.

2. “14. Na verdade, e pese embora não seja o teor das decisões daqueles autos que leva ao pedido de afastamento do Sr. Desembargador destes autos, uma vez que as decisões aí proferidas desencadearam diversos mecanismos já em curso contra as decisões mas também contra todos os membros do Colectivo de Juízes que o assinou (…)”.

3. Acessível em www.dgsi.pt.

4. No mesmo sentido, cfr. Ac. STJ de 27/7/2006, Pr. 06P2554, acessível no mesmo sítio.

5. Artº 43º, nº 1 do CPP.

6. Também acessível em www.dgsi.pt.

7. Acessível em www.dgsi.pt.