Sumário
I - Compreensivelmente o caso julgado consubstancia-se na expressão dos valores da segurança e da certeza precisos em qualquer ordenamento jurídico, numa exigência de boa administração da justiça, com o correto funcionamento dos tribunais, obstando que sobre a mesma situação recaiam decisões contraditórias, assegurando assim a sempre pretendida paz social.
II - Nas questões preliminares que foram antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado, importa distinguir a sua dimensão interpretativa, geralmente aceite, da respetiva consideração autónoma, podendo relevar quanto a litígios entre as mesma partes, se delineada uma relação de prejudicialidade. Fora desta situação, em regra, os fundamentos de facto da sentença quando autonomizados da mesma, não adquirem valor de caso julgado.
III - O caso julgado formal reporta-se aos despachos recorríveis relativos a questões de caráter processual, só tem força obrigatória dentro do próprio processo em que a decisão é proferida, constituindo uma exigência do conceito de processo, enquanto conjunto encadeado de atos, bem como da necessidade da estabilização de tais atos do mesmo decorrentes, essencial à realização das finalidades desse processo.
IV - A admissibilidade excecional de um recurso na observância da al. a) do n.º 2 do art. 629.º do CPC, por ofensa de caso julgado já constituído, não se verifica nas situações em que o julgador afirme a existência da exceção do caso julgado, bem como se assumem os efeitos da autoridade de caso julgado emergente de outra decisão.
V - Não tendo sido feita a articulação entre o prolatado nos embargos e o decidido na execução, não podia o tribunal da Relação deixar de atender à decisão constante do acórdão interlocutório de 17-03-2022, relativo à execução.
VI - A garantia de acesso ao direito não impõe o direito ao recurso das decisões judiciais, deixando ao legislador uma ampla margem de liberdade de conformação dos requisitos de admissibilidade, e em conformidade, muito menos obriga a um duplo grau de recurso, ou seja, um triplo grau de jurisdição
Decisão Texto Integral
Revista n.º 1202/20.9T8OER-A.L1.S1
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA 6ª SECÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I - Os autos presentes a este Tribunal para conhecimento prendem-se com o decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito de Embargos deduzidos (Apenso A), contudo, com vista à devida apreensão do submetido à apreciação, desde logo em termos da (in)admissibilidade do recurso de revista interposto, importa fazer um excurso não só pelo processo em referência, mas também pela execução movida e o relativo a recurso interposto (Apenso B).
1. DA EXECUÇÃO:
1.1. Em 25.03.2020, CONDOMÍNIO ..., indicando estar representada pela sua Administradora A..., eleita pela assembleia de condóminos de 15.05.2018, veio deduzir execução com processo sumário contra AA para obter deste o pagamento da quantia de 6.739,86€, relativa a contribuições em falta, a título de quotizações e outras despesas de condomínio, acrescida de juros vencidos e vincendos.
1.2. Em 13.04.2020 foi realizada a penhora, abrangendo a dívida exequenda e custas prováveis, no total de 8.413,85€
1.3. Em 24.08.2020 foi junta certidão de citação do Executado, citado por afixação no dia 20.08.2020.
1.4. Em 23.09.2020 foi junto documento da Entrega de resultados ao Exequente (pagável até 30.09.2020), e extinta a execução pelo Agente de Execução, por se encontrar assegurado o pagamento da quantia exequenda, juros e honorários.
1.5. Em 3.12.2020 veio o Executado, alegando ter tomado conhecimento que existia um processo executivo a decorrer contra si devido ao bloqueio e penhora da conta bancária, invocar a nulidade da citação, pedindo a respetiva repetição.
1.6. Por despacho de 21.05.2021 foi julgada nula a citação, determinada a anulação de todos os atos que posteriormente tinham sido praticados, e que se procedesse à citação do Executado com observância das formalidades legais.
2. Em 30.06.2021 a Exequente veio interpor recurso de apelação (APENSO B).
2.1. Por despacho do Desembargador relator, de 19.10.2021, foi ordenada a devolução dos autos à 1.ª Instância para que o Juiz titular do processo se pronunciasse fundamentadamente sobre as nulidades arguidas, seguindo-se os termos posteriores aplicáveis.
2.2. Por despacho de 2.12.2021, no cumprimento do determinado, foi considerada a nulidade sanada, pelo menos desde 12.11.2020.
2.3. Em 22.12.2021, o Executado veio pedir a subida dos autos, apresentando alegações tendo em conta a decisão alterada.
2.4. Em 17.03.2022 foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação que concluiu “ (…) em 3.12.2020 já não era admissível ao Executado, ora Recorrido, arguir a nulidade da citação (…) que assim se mostra sanada (…)”, julgando a apelação procedente, consequentemente, indeferir, por intempestiva, a arguição da nulidade da citação.
2.5. O Acórdão transitou em julgado.
3. Em 3.10.2022, o Executado, reportando ao Acórdão do Tribunal da Relação de 23.06.2022, proferido nos autos de embargos, que determinou a anulação oficiosa de todo o processo, veio invocar que a decisão da extinção da execução por manifesta falta de título executivo devia ser tomada nos autos de execução ex officio.
3.1. A Exequente pronunciou-se em 17.10.2022 no sentido da improcedência do pedido formulado.
3.2. Foi proferido despacho no sentido que os requerimentos formulados seriam apreciados com a baixa do recurso interposto no Apenso A, embargos de executado.
2. DOS EMBARGOS – APENSO A, PRESENTES AUTOS
1. Em 13.09.2021, AA veio deduzir oposição mediante embargos na execução (apenso-A) que lhe era movida por CONDOMÍNIO ..., indicando este último se encontrar representado pela sua Administradora A..., eleita pela assembleia de condóminos de 15.05.2018, para pagamento da quantia de 6.739,86€, relativa a contribuições em falta, a título de quotizações e outras despesas de condomínio, acrescida de juros vencidos e vincendos.
1.1. Invocou que inexistia título executivo, porquanto é proprietário de uma moradia no ..., não havendo um aldeamento turístico, pois com o decorrer dos anos deixaram de existir partes comuns afetas a um qualquer empreendimento.
A moradia do Embargante/executado está afeta a habitação nos termos autorizados pela Câmara Municipal, não fazendo assim parte de qualquer condomínio, sendo insuficiente para tanto a deliberação de uma reunião de um grupo de proprietários, do qual o Embargante/executado não faz parte, desconhecendo o teor do que possam ter deliberado, sendo manifesta a falta de título executivo.
Mais alegou, face à inexistência de empreendimento turístico, que falha o pressuposto da personalidade judiciária, não se depreendendo de onde resulta a indicação do representante do Exequente (A...), e desse modo a falta de personalidade e capacidade judiciária.
Indicou também que não existem quaisquer infraestruturas ou equipamentos “comuns” cuja manutenção seja assegurada, conjuntamente ou individualmente, pelos proprietários de qualquer lote ou loteamento, pois os serviços que não se enquadram na propriedade de cada moradia, relativos a estradas e saneamento, são diretamente garantidos pela Câmara Municipal.
Nada resulta do requerimento executivo que permita determinar quais áreas, equipamentos ou infraestrutura comuns que pudessem levar a uma obrigação pecuniária do Executado, sendo a obrigação exequenda manifestamente inexistente.
1.1. Os embargos foram recebidos por despacho de 19.09.2021, e dado conhecimento ao AE, em 22.09.2021.
2. Em 19.10.2021, o Embargado/exequente veio apresentar contestação, alegando que em 6.02.2018, o ..., IP confirmou a decisão de não manutenção da classificação das 39 moradias no lote A, da ... como empreendimento turístico, passando a coexistir de modo interdependente, as vilas edificadas que são propriedade individual e as infraestruturas que antes eram parte do Empreendimento Turístico, localizadas no ..., isto é, a área remanescente após a desanexação das moradias, de 32.501m2, na qual estão localizadas as zonas e implantadas as infraestruturas relativas a arruamentos e acessos comuns, zonas verdes ajardinadas ou em estado natural com conservação e manutenção, rede de distribuição de água potável, marcos de incêndio e rede de alimentação, rede esgotos domésticos, redes elétricas de média e baixa tensão incluindo um posto de transformação pública, iluminação pública e respetiva rede de alimentação, rede de tubos e caixas de telecomunicações com a cablagem de diversos operadores públicos de telecomunicações, rede de distribuição domiciliária de gás propano, passando a caber a todos os proprietários a sua administração.
Na assembleia de proprietários, devidamente convocada, foi deliberada a constituição do Condomínio, que passou a ser responsável pela administração das áreas e infraestrutura comuns, cabendo à entidade que foi eleita, atualmente a A..., assembleias de 15.05.2018, 10.05.2019 e 16.10.2019, constituindo as atas de assembleias de condóminos do Embargado/exequente, título executivo.
3. Por despacho de 16.12.2021 foi notificada o Embargado/exequente para juntar aos autos o título constitutivo da propriedade horizontal, e certidão predial com o respetivo registo.
3.1. Em 16.12.2021, o Executado/embargante veio dizer que não obstante vir a reagir à decisão sobre a repetição da citação, de 2.12.2021 (Apenso B), se pronunciava quanto a tal despacho, no sentido que tendo a Exequente dado como título constitutivo da propriedade horizontal, uma assembleia de uma associação de que não faz parte, verificando-se uma manifesta falta de título executivo, não podia ser tal objeto de suprimento ou convite ao aperfeiçoamento, quer no que respeitava ao próprio título executivo, quer no concerne ao preenchimento de pressupostos da execução, pelo que o requerimento executivo devia ser objeto de indeferimento liminar, e se entendido como convite a suprir as irregularidades do requerimento executivo, bem como a sanar a falta de pressupostos, tal traduzir-se-ia numa nulidade, que por cautela invocava.
3.2. Por requerimento de 12.01.2022, veio o Embargado/exequente requerer face à decisão proferida em 2.12.2021 no sentido de a falta de citação do Executado/Embargante na execução ser considerada sanada, pelo menos desde 12.11.2020, os embargos de executado apresentados em 13.09.2021 eram extemporâneos, devendo assim ser considerados anulados todos os termos subsequentes, e proferida decisão de absolvição da instância.
Mais invocou que o requerimento apresentado pelo Embargante em 16.12.2021 era inadmissível, por fora de tempo, e anómalo.
3.3. Em 13.01.2022, o Embargante/executado veio pedir a imediata absolvição do pedido, por manifesta falta de título executivo, por o Exequente/embargado não ter feito a junção aos autos do (eventual) título constitutivo da propriedade horizontal e respetivo registo predial.
3.4. O Exequente/embargado, em 24.01.2022, veio dizer “(…) conclui-se que os documentos cuja junção foi requerida pelo Douto Tribunal – título constitutivo da propriedade horizontal e certidão predial com o respetivo registo – não existem na presente situação, dado que o “CONDOMÍNIO ...” não assenta a sua estrutura jurídica na constituição por propriedade horizontal (…)” devendo o pedido de informação formulado em 16.12.2021 ser dado por satisfeito.
4. Em 10.2.2022, foi proferida despacho saneador, que considerou o tribunal competente, inexistirem nulidades que invalidassem todo o processado, as partes dendo legítimas, fixou o valor da causa em 6.739,86€, e tendo em conta que o Embargante excecionara a inexistência de título executivo, reportando a documentos existentes nos autos, consignou: (…) “ nenhuma norma confere às deliberações tomadas pelos proprietários dos lotes, ou atas de reuniões ou assembleias, força executiva – atribuída expressamente às das “assembleias de condóminos” (…) Em suma: ainda que a “ata n.º 3” possa ter algum valor legal, tal não significa que o embargante seja “condómino”, ou que uma tal ata possa ser apresentada como título executivo (CPC 703º/1 d))” julgando procedentes os embargos, e declarando extinta a execução.
5. Inconformado, em 21.03.2022, veio o Exequente/embargado interpor recurso de apelação, pedindo, em súmula, o aditamento da matéria de facto (1ª a 13ª conclusões), depois do AE ter declarado extinta a execução em 23.09.2020, o Embargado/executado, não podia deduzir embargos em 13.09.2021, (14ª a 16ª conclusões), devem ser anulados todos os atos do processo de embargos porque são nulos, o requerimento de embargos e a decisão neles tomada (17.º e 18.ª conclusões), e o Recorrente absolvido da instância (19.ª conclusão).
5.1. O Embargante/executado veio apresentar as suas contra-alegações, em 8.04.2022, alegando que o Exequente não se insurgiu contra a admissão dos embargos, nem por invocação de nulidade, nem por interposição de recurso, não relevando a admissão, ou não, dos embargos, porquanto se está perante a inexistência de título executivo, que é de conhecimento oficioso, em qualquer fase do processo, devendo manter-se a sentença recorrida.
6. Por despacho de 17.05.2022 foi admitido o recurso de apelação.
7. Foi proferido o Acórdão da Relação de Lisboa de 23.06.2022 que, por maioria, julgou o recurso improcedente, anulando-se oficiosamente todo o processo, incluindo a petição de embargos, com fundamento na revogação decorrente do acórdão do Tribunal da Relação de 17.03.2022, proferido no apenso B, e em consequência foi a Exequente/embargada absolvida da instância de embargos,.
7.1. Com relevância mostra-se consignado:
“ (…) o recurso da sentença de embargos foi admitido e mandado remeter para este TRL, sem que se tenha tirado qualquer consequência do acórdão do TRL de 17/03/2022.
Questão que importa decidir: da nulidade dos atos processuais praticados desde a nova citação, isto é, muito depois do prazo tendo em conta a citação anterior, mantida de pé pelo acórdão do TRL que indeferiu a arguição da nulidade.
(…)
É evidente que não há nenhuma nulidade, por si, nos embargos deduzidos. Nem o exequente pode estar agora a discutir a tempestividade dos embargos ou a preclusão de os deduzir.
O que se passa é muito simplesmente uma questão da influência de uma decisão sobre atos dependentes do objeto dela. Ou mais precisamente da influência do resultado de um recurso interlocutório sobre uma decisão dependente daquela que era objeto do recurso.
Ou seja: tendo sido decidido que era improcedente a arguição da nulidade da citação, cai por arrastamento, por força da aplicação analógica da norma do art.º 195/2 do CPC, tudo o que foi feito de novo a partir da decisão revogada e, por isso, a nova citação, os embargos deduzidos e a decisão proferida nos embargos.
(…)
“Ocorrida a nulidade de ato processual que, nos termos do n.º2 [do art.º 195] deva acarretar a nulidade da sentença, não são invocáveis o esgotamento do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (art.º 613-1) nem o trânsito em julgado da sentença (art.º 628), que não se dão enquanto a arguição estiver pendente, para entender que o juiz deixa de poder conhecer da nulidade oportunamente arguida ou que esta se sana pelo facto de contra a decisão final não ser interposto recurso, não podendo a sentença subsistir […]”
Ou dito de outro modo: (…):“se um ato da sequência processual anterior à sentença estiver ferido de anulabilidade (…) e esta tiver sido tempestivamente arguida, a sentença será anulada em conformidade com o disposto no art.º 195-2. Neste caso, não é necessário o recurso da decisão final, com a finalidade de impedir o trânsito em julgado: este não se dá enquanto não for proferida decisão sobre a nulidade […] .”
(…)
“- Enquanto estiver pendente um recurso sobre uma decisão interlocutória de cuja decisão depende a correção da sentença final, esta sentença não pode transitar em julgado;
- Depois do proferimento da decisão de recurso sobre a decisão interlocutória, pode verificar-se uma de duas situações:
(i) O recurso interposto da decisão interlocutória é decidido contra o recorrente; nesta hipótese, a sentença final transita em julgado no momento do trânsito em julgado da decisão de recurso;
(ii) O recurso interposto é decidido a favor do recorrente; nesta situação, há que aplicar, por analogia, o disposto no art.º 195.º, n.º 2, CPC: a procedência do recurso implica a inutilização e a repetição de todos os atos que sejam afetados por aquela procedência; entre esses atos inclui-se a sentença final.”
(…)
Quando o tribunal recorrido proferiu a sentença de embargos, a 09/02/2022, o TRL ainda não tinha proferido o acórdão de 17/03/2022 a indeferir a arguição de nulidade da citação. Não havia, por isso, ainda, nulidades derivadas da revogação do despacho que tinha deferido a arguição da nulidade da citação (art.º 195/2 do CPC) e a questão da tempestividade dos embargos não tinha sido colocada pelo exequente (nem tinha de o ser, porque a intempestividade seria uma decorrência da revogação do despacho que tinha deferido a arguição da nulidade). Pelo que, o tribunal recorrido não incorreu em qualquer nulidade, nem deu, com a sentença de embargos, cobertura a qualquer nulidade processual, nem a consumou. Para além disso, quando o exequente recorreu, a 21/03/2022, o acórdão do TRL tinha acabado de ser proferido, ainda não tinha transitado e, por isso, não originava, ainda, a necessidade de revogação das nulidades derivadas.
Mais, a questão não tinha de ser objeto de um recurso (…) O exequente podia-se ter limitado a colocar a questão ao tribunal recorrido ou o tribunal recorrido, ao receber o apenso de recurso em separado com o ac. do TRL de 17/03/2022, podia ter tirado as devidas consequências do decidido nesse acórdão.
Quer tudo isto dizer que o recurso do exequente tem de ser julgado improcedente, por falta de fundamento e por desnecessário, com custas pelo exequente.
Mas (i) estando agora este tribunal a apreciar um recurso que devia ter por objeto a decisão de embargos, (ii) sabendo que esses embargos estão agora abrangidos numa série de nulidades derivadas por arrastamento da revogação – agora já transitada em julgado - de um despacho anterior, (iii) tendo a questão dessa nulidade já sido discutida entre as partes; (iv) não tendo o tribunal recorrido tirado nenhuma consequência da revogação do despacho anterior pelo acórdão do TRL de 17/03/2022 quando já tinha conhecimento dele antes de ter mandado subir este recurso e ele já estava transitado em julgado; e (v) tendo também em consideração razões de economia processual, já que nada justificaria que este processo prosseguisse obrigando que a questão fosse colocada de novo no tribunal recorrido; considera-se que, este TRL se deve substituir ao tribunal recorrido, tanto mais que a retirada de consequências de um acórdão interlocutório revogatório é de conhecimento oficioso e tanto pode ser feita pelo tribunal recorrido como por qualquer outro tribunal que se tenha de pronunciar sobre um processo que está afetado por aquele acórdão revogatório. (…)”
7.2. Em sede de voto de vencido consignou-se:
“Com efeito, independentemente de o recurso poder ser considerado originalmente desnecessário ou inútil (…) o certo é que foi interposto e remetido a este TRL, que tem competência para verificar se alguma circunstância obsta ao conhecimento do recurso.
Ora, verificando-se que o decidido pelo TRL no recurso que foi interposto em separado (acórdão interlocutório revogatório) implica forçosamente a invalidação de todo o processado nos embargos, incluindo o despacho que os recebeu, devendo, pois, o saneador-sentença recorrido considerar-se como prejudicado, encontra-se o presente recurso desprovido de objeto, estando prejudicado o seu conhecimento (isto porque o resultado do recurso que foi interposto em separado se revelou prejudicial relativamente à apreciação do recurso da decisão final); (…) logo, ouvidas as partes, assim haveria de ser decidido, não se tomando conhecimento do objeto do recurso, por força de questão prévia/prejudicial atendível, determinando-se a baixa dos autos à 1.ª instância para ser dado integral cumprimento ao determinado pelo TRL no referido acórdão interlocutório (…).
7.3. O Embargante veio arguir a nulidade do Acórdão de 23.06.2022, sendo proferido o Acórdão de 29.09.2022, que julgou improcedentes as duas primeiras nulidades, não conhecendo da terceira por a mesma ser objeto de recurso baseada na alegação de ofensa de caso julgado.
8. Inconformado, veio o Embargante interpor recurso de revista, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões:
A. Através de despacho de 09/02/2022, o Tribunal de 1.ª Instância declarou extinta a execução com fundamento na inexistência de título executivo.
B. No seu recurso daquele despacho, a Exequente nunca se pronunciou sobre a questão da inexistência de título executivo, tendo restringindo o seu âmbito à alegada nulidade da admissão dos embargos de executado (cfr. artigo 635.º, n.º4 do CPC).
C. No seu Acórdão de 23/06/2022, o Tribunal da Relação de Lisboa julgou o recurso improcedente mas, ainda assim, determinou a anulação oficiosa de todo o processo e absolveu a Exequente da instância de embargos.
D. Não obstante o Executado ter arguido as nulidades daquele Acórdão perante o próprio TRL, interpõe o presente recurso à cautela por admitir que se possa estar perante violação de caso julgado.
E. Isto porque, como a Recorrente não colocou em causa a inexistência de título executivo, essa matéria transitou em julgado (cfr. artigo 635.º, n.º5 do CPC.), não podendo ser objeto de decisão em sentido contrário pela Relação.
F. Podendo o Acórdão do TRL ser suscetível de recurso de revista ao abrigo dos artigos 629.º, n.º2, alínea a) e do artigo 671.º, n.º1 e n.º3 a contrario do CPC (cfr. Acórdão do STJ de 18/12/2013 no processo n.º 1801/10.7TBOER.L1.S1).
G. Primeiramente, entende o Executado estarmos perante a nulidade presente no artigo 615.º, n.º1, alínea c) do CPC.
H. Isto porque, o TRL decidiu no sentido da anulação oficiosa de “todo o processo” e pela absolvição da Exequente da instância de embargos.
I. Não alcança o Recorrido qual a interpretação que deve ser feita do Acórdão ora em crise quando aí se diz que “há que anular todo o processado nestes autos” e, posteriormente, que se anula “oficiosamente todo o processo”.
J. A falta de pressuposto processual é questão de conhecimento oficioso, pelo que, independentemente de existirem ou não embargos nos autos, a sua verificação levará sempre à extinção de toda a ação executiva.
K. Embora o Acórdão se refira à anulação de “todo o processo”, o mesmo não permite compreender se estamos perante a anulação do Apenso A ou se estamos a referir-nos a todo o processo executivo.
L. O próprio TRL podia ter decretado oficiosamente a inexistência de título executivo.
M. Se o TRL está a afirmar que uma ação executiva pode prosseguir ainda que tenha sido verificada oficiosamente a inexistência de título executivo, estamos perante nulidade processual nos termos do artigo 195.º, n.º1 do CPC, que indubitavelmente influi no exame e decisão da causa.
N. Bem como uma inconstitucionalidade ao abrigo do disposto no artigo 20.º, n.º1 da Constituição da República Portuguesa.
O. Ademais, face ao caráter obscuro que torna a decisão ininteligível, encontra-se o Acórdão em crise enfermado da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º1, alínea c) do CPC, aplicável ex vi do artigo 666.º, n.º1 do mesmo diploma.
P. Ademais, tendo decidido pela improcedência da apelação da Recorrente, não podia o Tribunal da Relação substituir-se à 1.ª Instância e tomar uma decisão nos termos em que o fez.
Q. O thema decidendum do recurso é estabelecido pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. Acórdão do STJ de 15/01/2019 no Processo n.º 298/13.4TBTMC.G2.S1).
R. O Tribunal não pode conhecer de uma questão a partir do momento em que afirma que o recurso é improcedente, e a mesma não é de conhecimento oficioso.
S. O Tribunal da Relação tomou conhecimento de questões das quais não podia tomar conhecimento, estando esgotado o seu poder jurisdicional.
T. É este o entendimento constante do voto de vencido.
U. Ao extravasar o âmbito da atuação que lhe é permitida, decidindo o que não podia decidir, o Tribunal da Relação, no seu Acórdão de 23/06/2022, incorreu em nulidade processual que influi sobre a decisão da causa, nos termos do disposto no n.º1 do artigo 195.º do CPC.
V. Por outro lado, na medida em que a Exequente não se insurgiu contra a questão da extinção da execução por falta de título executivo, essa decisão encontra-se estabilizada (cfr. artigos 635.º, n.º4 e n.º5 do CPC).
W. Tanto assim é que, não pondo em causa os factos constantes daquela decisão, a Exequente requereu o aditamento de outros.
X. Não podia o Tribunal da Relação vir tomar uma decisão que vai contra aqueloutra que está já consolidada na ordem jurídica (cfr. Acórdão do STJ de 18/12/2013 no processo n.º 1801/10.7TBOER.L1.S1).
Y. Motivo pelo qual, encontramo-nos ainda perante vício de excesso de pronúncia, ao abrigo do disposto na alínea d) do artigo 615.º, n.º1 do CPC, aplicável por força do artigo 666.º, n.º1 do mesmo diploma.
Z. Face a todo o exposto, resulta ainda manifesto para o Executado que a decisão tomada pelo Tribunal de 1.ª Instância encontra-se consolidada na ordem jurídica.
AA. De acordo com o disposto no artigo 619.º, n.º1 do CPC, transitado em julgado despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º.
BB. Ao decidir em sentido diverso ao disposto no despacho saneador de 09/02/2022, quanto a pretensões que não foram sequer alvo de recurso por parte da Exequente, o Acórdão recorrido está em violação de caso julgado.
CC. Não sendo essa uma nulidade expressamente prevista, a violação do caso julgado considera-se nulidade processual geral, ao abrigo do disposto no artigo 195.º, n.º1 do CPC, por ter sido praticado ato que alei não admite e que infere no exame e decisão da causa.
Nestes termos e nos melhores de Direito, deve ser julgado procedente o presente Recurso de Revista e, consequentemente, revogado o Acórdão recorrido, substituindo-se por outro que determine que a decisão de falta de título executivo deve ser tomada pelo Tribunal de 1.ª Instância, esclarecendo ainda que deve extinguir-se a totalidade da ação executiva.
8.1. O Embargado veio apresentar as contra alegacões, formulando as seguintes conclusões:
1. Não é admissível a revista do douto acórdão do TRL pedida pelo Executado, porque não estão preenchidos os requisitos gerais de admissibilidade de recurso ordinário,
2. O regime de admissibilidade da revista invocado pelo Executado, consistente no recurso com fundamento em ofensa de caso julgado, nos termos do artigo 629.º, n.º 2, alínea a) do CPC, não tem aplicação na presente situação.
3. A questão do título executivo foi fundamento da decisão e não corresponde a qualquer decisão do despacho saneador de 09-02-2022, pelo que o Exequente não restringiu o objeto do seu recurso de apelação interposto em 21-03-2022 e não houve trânsito em julgado da decisão do despacho saneador de 09-02-2022.
4. A decisão de 09-02-2022 não transitou em julgado porque dela foi interposto recurso de apelação pelo Exequente em 21-03-2022, logo não é suscetível a ofensa de caso julgado pelo acórdão do TRL de 23-06-2022 por não existir caso julgado e em consequência o recurso de revista é inadmissível, por falta de integração na situação do artigo 629.º, n.º 1, alínea a) do CPC.
5. A nulidade por esgotamento do poder jurisdicional e a nulidade por violação de caso julgado, arguidas pelo Executado, não se enquadram em nenhuma das nulidades do artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) a e) do CPC, pelo que não lhe é aplicável o previsto no artigo 615.º, n.º 4 e em consequência não podem ser arguidas nas alegações de recurso.
6. A nulidade por esgotamento do poder jurisdicional e por violação do caso julgado nas alegações de recurso devem ser rejeitadas por inadmissíveis, dado que foram arguidas através de meio processual impróprio para o efeito.
7. A nulidade por violação do caso julgado deve ser rejeitada por intempestiva, dado que não foi arguida dentro do prazo legalmente previsto para o efeito.
8. A decisão proferida no acórdão recorrido é de meridiana clareza e está plenamente conforme com os fundamentos alegados no acórdão, designadamente quanto aos efeitos do acórdão interlocutório revogatório do TRL de 17-03-2022, que indeferiu por intempestiva a arguição da nulidade da citação pelo Executado, na decisão final nos autos de embargos de executado.
9. A nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC verifica-se nos casos em que a fundamentação de facto ou de direito da decisão judicial está em oposição com a decisão ou em que a decisão é ininteligível porque obscura ou ambígua e não nos casos em que há discordância quanto ao mérito da decisão recorrida.
10. Nas alegações de recurso, o Executado manifesta a sua discordância quanto ao mérito da decisão recorrida.
11. A reação adequada face a eventuais discordâncias relativamente ao mérito de uma decisão judicial é a interposição de recurso e não a arguição de nulidade da decisão por obscuridade que a torna ininteligível, em sentido contrário do que fez o Executado na presente situação.
12. O acórdão recorrido não padece de nulidade por obscuridade que torna a decisão ininteligível, pelo que deve ser declarada totalmente improcedente a invocada nulidade.
13. Em consequência do acórdão interlocutório do TRL proferido em 17-03-2022, transitado em julgado, que julgou procedente a apelação interposta pelo Exequente em 29-06-2021 e indeferiu por intempestiva a arguição da nulidade da citação pelo Executado de 03-12-2020, a arguição da nulidade da citação pelo Executado deve considerar-se anulada, bem como os atos subsequentes que dela dependem, designadamente a nova citação do Executado, os Embargos de Executado e os demais atos subsequentes dos Embargos de Executado, de acordo com o previsto na norma do artigo 195.º, n.º 2 do CPC.
14. O acórdão do TRL de 23-06-2022 teve em conta, no âmbito dos seus poderes de conhecimento oficioso, o acórdão interlocutório do TRL de 17-03-2022 e os efeitos decorrentes deste acórdão, dado a força obrigatória neste processo do acórdão do TRL de 17-03-2022 em virtude de se tratar de uma decisão judicial transitada em julgado, pelo que vincula o tribunal e que não podia ser substituída ou modificada pelo Tribunal.
15. A nulidade do processado, resultante nos presentes autos do decidido pelo acórdão do TRL de 17-03-2022, é de conhecimento oficioso por parte do tribunal (artigo 577.º, alínea b) e artigo 578.º do CPC) e determina a absolvição da instância, nos termos do artigo 278.º, n.º 1, alínea b) do CPC.
16. O tribunal a quo proferiu o acórdão do TRL de 23-06-2022 no âmbito e em pleno respeito dos seus poderes jurisdicionais e não conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, pelo que a nulidade por excesso de pronúncia invocada pelo Executado deve ser declarada totalmente improcedente.
17. O Despacho Saneador de 09-02-2022 proferido nos presentes autos de embargos de executado julgou procedente os embargos de executado e foi objeto de Recurso de Apelação interposto pelo Exequente em 21-03-2022, pelo que o despacho saneador de 09-02-2022 não transitou em julgado.
18. O Executado equivoca-se quanto à distinção entre a decisão e os seus fundamentos quanto à questão do título executivo, que constitui fundamento da decisão do despacho saneador de 09-02-2022 e sobre a qual não foi proferida decisão, pelo que não existindo decisão não é naturalmente possível a sua estabilização na ordem jurídica, ou seja, o seu trânsito em julgado.
19. O despacho saneador de 09-02-2022 nunca poderia ter transitado em julgado porque estava pendente o recurso de apelação interposto pelo Exequente em 29-06-2021, que incidia sobre decisão interlocutória que era prejudicial da decisão final nos embargos de executado (i.e. do despacho saneador de 09-02-2022).
20. O despacho saneador de 09-02-2022 não se encontrava transitado em julgado quando foi proferido o acórdão do TRL de 23-06-2022.
21. Em virtude da inexistência de trânsito em julgado do despacho saneador de 09-02-2022, o acórdão recorrido não está em violação de caso julgado.
Deve o Recurso de Revista ser rejeitado por inadmissível, nos termos da legislação processual civil aplicável.
Ou, caso assim não se entenda, deve ser julgado totalmente improcedente o Recurso de Revista apresentado pelo ora Recorrente e, em consequência, deve ser confirmado o acórdão proferido pelo TRL em 23-06-2022.
9. Tendo sido invocada a inadmissibilidade do recurso de revista, por não se verificar uma das condições gerais de admissibilidade prevista no art.º 629, n.º1, do CPC1, mas por outro lado na articulação do processado, uma situação de ofensa de caso julgado, na hipótese de o recurso ser admissível nos termos do art.º 629, n.º2, alínea a), foi ordenado o cumprimento do disposto no art.º 655, n.º2.
9.1. O Embargante/recorrente veio pronunciar-se, pugnando pela ofensa de caso julgado, pois o Tribunal a quo decidiu em sentido diverso do disposto no despacho saneador de 9.02.2022, pronunciando-se sobre questões que não foram alvo do recurso por parte da Exequente, que não colocou em causa, nem se pronunciou sobre a existência de título executivo, que assim transitou em julgado, não podendo ser prejudicados pela decisão do recurso, nem pela anulação do processo.
Entendimento diverso poria em causa o direito à tutela jurisdicional efetiva, prevista e protegida pelos n.ºs 4 e 5, da Constituição da Republica,
Conclui que o recurso é admissível à luz da alínea a) do n.º 2, do art.º 629, independentemente da sucumbência e do valor da ação, caso assim não se considere, os autos devem baixar para que o Tribunal da Relação se possa pronunciar sobre a questão da invocada ofensa do caso julgado.
II – Importa agora apreciar.
1. Como se sabe, o recurso de revista é o recurso ordinário que cabe dos acórdãos do Tribunal da Relação, tendo assim como fundamento, art.º 674, n.º1, a violação da lei substantiva – nas modalidades de erro de interpretação, de aplicação, ou da determinação da norma aplicável -, ou a violação da lei processual, incluindo aquela de que possa resultar alguma nulidade de decisão prevista no art.º 615, ex vi art.º 666, n.º1.
A competência deste Tribunal, Supremo Tribunal de Justiça, está confinada à matéria de direito, como tribunal de revista, já quanto à violação da lei de processo, prende-se com a tramitação processual, na mesma incluindo-se também o conhecimento das nulidades do Acórdão da Relação que possam ter sido arguidas, cuja apreciação apenas pode ser realizada se o recurso de revista, normal ou excecional, for admitido.
Enquanto desvio à regra do art.º 671, n.º1, será admissível o recurso de Revista do Acórdão da Relação, preenchida que se mostre alguma das situações indicadas no art.º 629, para o caso que nos interessa, no enquadramento efetuado pelo Recorrente, e necessariamente a atender, no n.º 2, alínea a), isto é, nas situações respeitantes à violação do caso julgado.
Com efeito, patenteia-se que não se mostra verificado o requisito de admissibilidade do recurso de revista formulado, em função do valor, por não se mostrar ultrapassado o montante da alçada dos tribunais da Relação em matéria cível de 30.000,00€, nos termos do art.º 44, n.º1, da Lei 62/2013.
1.2. Numa breve análise dos efeitos processuais do caso julgado, tendo em conta a situação em apreciação, como se sabe a decisão forma caso julgado quando o nela contido se torna imodificável ou imutável, consignando o art.º 628, que transita em julgado, logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação, isto é, no primeiro caso, recurso ordinário, por as partes terem deixado decorrer o prazo para interposição do recurso, art.º 638, n.º1, por terem renunciado ao recurso ou dele terem desistido, art.º 632, ou no caso do valor da causa ou sucumbência não comportar a interposição do recurso, art.º 629. Já quanto ao segundo, reclamação, quando as partes deixam decorrer o prazo geral de dez dias para arguição de nulidades ou reforma do despacho, conforme decorre dos artigos 149, n.º1, 615, n.º4 e 616.
Compreensivelmente o caso julgado consubstancia-se na expressão dos valores da segurança e da certeza precisos em qualquer ordenamento jurídico, numa exigência de boa administração da Justiça, com o correto funcionamento dos tribunais, obstando que sobre a mesma situação recaiam decisões contraditórias, assegurando assim a sempre pretendida paz social.
O caso julgado material reporta-se à decisão que se prende com o mérito da causa, no concerne à relação material controvertida, com força obrigatória dentro e fora do processo, obstando que o mesmo ou outro tribunal possa definir de modo diverso o direito concreto aplicável à relação material em litígio, art.º 619 n.º 1, o designado efeito negativo – exercido através da exceção dilatória do caso julgado, cuja finalidade é evitar a repetição das causas, art.º 580, com a vinculação do mesmo tribunal e eventualmente outros à decisão proferida – e o chamado efeito positivo, a autoridade de caso julgado, no sentido que a decisão de determinada questão não pode voltar a ser discutida2.
Em termos do alcance do caso julgado sobretudo material, apesar da discussão quanto a tal âmbito, é prevalecente o entendimento que o caso julgado abrange a parte decisória do despacho/sentença, mas sendo a decisão a conclusão de certos pressupostos de facto e de direito, o caso julgado incide sobre tal silogismo no seu todo, isto é, o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão, como conclusão de certos fundamentos, no reconhecimento de autoridade de caso julgado a todos os motivos objetivos, enquanto questões preliminares que foram antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado3.
Quanto a tais questões preliminares, importa distinguir a sua dimensão interpretativa, geralmente aceite, da respetiva consideração autónoma, podendo relevar quanto a litígios entre as mesma partes, se delineada uma relação de prejudicialidade. Fora desta situação, em regra, os fundamentos de facto da sentença quando autonomizados da mesma, não adquirem valor de caso julgado4.
Reportando-se o caso julgado formal aos despachos recorríveis relativos a questões de caráter processual, só tem força obrigatória dentro do próprio processo em que a decisão é proferida, impedindo que na mesma ação o juiz possa alterar o decidido, nada obstando que em outro processo decida em termos diversos a mesma questão processual concreta, numa proibição de contradição da decisão transitada, bem como da repetição daquela decisão.
Deste modo o caso julgado na dimensão meramente processual, conforme o disposto no art.º 620, constitui uma exigência do conceito de processo, enquanto conjunto encadeado de atos, bem como da necessidade da estabilização de tais atos do mesmo decorrentes, essencial à realização das finalidades do processo.
A violação dos efeitos caraterísticos do caso julgado produz a existência de caso julgados contraditórios, estabelecendo a lei, art.º 625, n.º1, que havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a primeira que transitou em julgado, pelo que a segunda decisão será ineficaz.
Ainda, em nota, quanto ao princípio da extinção do poder jurisdicional, constante do art.º 613, n.º1, tal significa, de modo simples, que o juiz não pode, por regra, e independentemente do trânsito em julgado, proferir nova decisão, alterando a que proferiu, nem os fundamentos em que a mesma se apoia, passando assim a intangível.
Assim enquanto não transitar em julgado, na medida em que seja admissível o recurso ordinário, poderá ser alterada pelo tribunal de recurso, pois a imodificabilidade é apenas dirigida ao juiz da causa, não sendo, contudo um princípio absoluto, porquanto nos termos do art.º 613, n.º2, pode o juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença/despacho nos termos dos artigos 614 a 616.
1.3. Sem desconsiderar tais apontamentos, retenha-se que a admissibilidade excecional de um recurso, como se pretende nos autos, na observância da alínea a) do n.º 2, do art.º 629, por ofensa de caso julgado já constituído, resultará pela assunção expressa que a decisão recorrida não representa a violação de caso julgado, bem como, em termos implícitos, quando a decisão recorrida se mostra prolatada sem consideração de caso julgado anteriormente formado.
Excluídos ficam assim as situações em que o julgador afirme a existência da exceção do caso julgado, bem como se assumem os efeitos da autoridade de caso julgado emergente de outra decisão, pois o que se verifica é a prevalência dada a outra decisão já transitada em julgado, situação esta sujeita às regras gerais de recorribilidade, e inerentes limitações, decorrentes, nomeadamente, do disposto no n.º1, do art.º 6295.
1.4. Importa, reter, também, no encadeamento de atos que constitui o processo, existem as decisões finais, que põem termo ao processo, e as interlocutórias, proferidas ao longo da instância, desde a introdução do facto em juízo, e que vão resolvendo questões diversas, até à prolação da decisão final, como aliás resulta do disposto no art.º 671, n.º1.
1.5. Releva ainda, que o executado pode opor-se à execução por embargos, art.º 728, e segs, bem como 855, e também segs, tida como uma ação declarativa na dependência do processo executivo6, sem prejuízo do disposto no art.º 734, quanto à rejeição e aperfeiçoamento do requerimento executivo.
2. Revertendo para o caso concreto, importa salientar que nos movemos no âmbito dos autos de embargos, sem que tal signifique que irreleve o que no âmbito da execução possa ter sido apreciado e decidido, até porque estamos perante autos inexoravelmente ligados, o que determina, de modo necessário a devida articulação.
Verifica-se do propositado extenso enunciado das ocorrências processuais relativas aos presentes embargos, mas também da execução, que existe uma confluência de circunstâncias que podem toldar a perceção devida.
Ora, porque estamos, ainda e tão só, na apreciação da admissibilidade do recurso por ofensa de caso julgado, invocada pelo Recorrente, são os respetivos termos invocados no âmbito da inerente argumentação recursória que devemos procurar o melhor entendimento.
Deste modo, o Acórdão do Tribunal da Relação, de 23.06.2022, teria contrariado o decidido no despacho saneador proferido em 10.02.2022, na medida em que este tinha se consolidado na ordem jurídica, no sentido pretendido da procedência dos embargos deduzidos pelo Recorrente.
Avulta, desde logo, como se mostra clarificado pelo já enunciado, que tal despacho não transitou em julgado, por submetido a sindicância do Tribunal da Relação, que prolatou o Acórdão de que se pretende recorrer, questionando-se a nulidade da apresentação dos embargos aludidos, o que por imperativo lógico, antecede o conhecimento de questões de mérito que nos mesmos pudessem ser suscitadas e que assim nunca poderiam prevalecer, maxime, nos termos visados pelo Recorrente, num julgado que obstasse à apreciação de questão anterior relativa à possibilidade da apresentação dos referidos embargos.
Por outro lado, embora aquando da prolação do despacho saneador em 10.02.2022 ainda não tivesse sido proferido o Acórdão da Relação de 17.03.2022 que conheceu da questão interlocutória suscitada na Execução do indeferimento da arguição da nulidade da citação do Recorrente nesses autos, com as necessárias consequências, absolutamente dependentes dela e impeditivas da produção de efeitos, no acolhimento dos princípios vertidos no disposto no art.º 195, por outro, aquando da admissão do recurso interposto pelo Embargado, ora recorrido, nos autos de embargos, já fora proferido o aludido Acórdão do Tribunal de 17.03.2022, que transitou em julgado, e do qual não foi retirada qualquer consequência no mesmo despacho de 17.05.2022.
Não tendo sido feita a possível articulação entre o prolatado nos embargos e o decidido na execução, não podia o Tribunal da Relação deixar de atender à decisão constante do Acórdão interlocutório de 17.03.2022, relativo à execução, pelo que independentemente da solução achada, de o Tribunal da Relação se substituir ao Tribunal a quo de anulação do processado nos autos de embargos, com a absolvição da Embargada da instância, art.º 278, n.º1, b), ou não tomando conhecimento do objeto do recurso, com a baixa dos autos à 1.ª instância, para dar cumprimento ao Acórdão interlocutório, questão que não cabe, nesta sede, conhecer, inelutavelmente importava que este último fosse atendido, artigos 577.º, b) e 578.º, obstando à apreciação do demais suscitado nos embargos.
Tendo em conta que a admissão do recurso com base num específico fundamento constante dos elencados no n.º 2 do art.º 629, tem como consequência que o objeto do recurso fica circunscrito à apreciação da questão que está na base da admissibilidade, não podendo ser alargada a outras questões, que não têm a ver com aquela que excecionalmente permite o conhecimento por parte do STJ7, manifesto se torna, que inexiste a ofensa a caso julgado, permitindo que fosse admitido o recurso interposto pelo Recorrente/executado8.
2.1. Uma última nota quanto ao afloramento do princípio da tutela jurisdicional efetiva, ínsito no art.º 20, n.º1, da CRP, quanto à alegada violação decorrente de uma restrição do direito de recurso, tão só se dirá que o direito ao recurso não é um direito absoluto ou irrestrito, sendo objeto de diversas restrições justificadas. É o próprio Tribunal Constitucional que o afirma, esclarecendo que a Constituição, maxime, o direito de acesso aos tribunais, não impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direitos9.
Compreende-se desse modo, que reiteradamente se venha afirmando na Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, com a confirmação da Jurisprudência do Tribunal Constitucional, que a garantia de acesso ao direito, não determina a garantia de um duplo grau de jurisdição, isto é, não impõe o direito ao recurso das decisões judiciais, deixando ao legislador uma ampla margem de liberdade de conformação dos requisitos de admissibilidade dos recursos, e em conformidade, muito menos obriga a um duplo grau de recurso, ou seja, um triplo grau de jurisdição, pelo que, deste modo, e no que concerne ao recurso junto do Supremo Tribunal de Justiça, inexiste previsão expressa no apontado art.º 20, da CRP, não emergindo esta como uma imposição constitucional dirigida ao legislador, que, neste âmbito, dispõe de uma ampla margem de liberdade, não ditando que se considerem recorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça todas as decisões, como a em causa nos autos10.
3. Pelo exposto, sendo inadmissível o recurso, não se conhece do respetivo objeto, e assim considera-se o mesmo findo, nos termos do art.º 652, n.º1, b), por força do constante no art.º 679.
Custas pelo Recorrente, com três UCs de taxa de justiça.
Lisboa, 1 de Março de 2023
Ana Resende (Relatora)
Maria José Mouro
Graça Amaral
Sumário, (art.º 663, n.º 7, do CPC).
________________________________________________
1. Diploma legal a que se fará referência se nada mais for dito.↩︎
2. Cf. Ac. STJ de 17.12.2019, processo n.º 1181/07.8TTPRT-H-P1.S1, in www.dgsi.pt.↩︎
3. Cf. Ac. STJ de 8.03.2018, processo, n.º 1306/14.7TBACB-T.C1.S1, com ampla referência doutrinária, in www.dgsi.pt.↩︎
4. Cf. Ac. STJ de 4.12.2018, processo n.º 190/16.0T8BCL.G1.S1.↩︎
5. Cf. Ac. STJ de 20.01.2022, processo n.º 667/07.9TBPTL.G3.S1, in www.dgsi.pt.↩︎
6. Cf. Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes, Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 3.º, pág. 449.↩︎
7. Cf. entre outros, no âmbito de Jurisprudência consolidada, o Ac. STJ de 11.05.2022, processo n.º 60/80.6TBADV.2.E1.S1, in www.dgsi.pt.↩︎
8. Atente-se que o Executado, em 3.10.2022, reportando ao Acórdão da Relação veio, em sede de execução, requerer a prolação ex officio da decisão da extinção da execução por manifesta falta de título executivo.↩︎
9. Ac. do STJ de 24.5.2022, processo n.º 20464/95.1TVLSB.L1-A.S1, apud Acórdão do STJ, de 13.7.2022, processo n.º14281/21.2T8LSB.P1-A.S1, in www.dgsi.pt.↩︎
10. A mero título de exemplo, Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 259/97 e 132/2001, publicados no Diário da República, 2.ª Série, respetivamente de 30.06.1997 e de 25.06. 2001, 13 de julho de 2021, processo n.º 541/2021, reportando, Acórdãos do Tribunal Constitucional, processos, n.ºs 40/2008, 638/98, na senda de entre outros, 210/92, 346/92, 403/94, 475/94, 95/95, 270/95, 336/95, 489/95, 715/96, 1124/96, 328/97, 234/98 e 276/98, 202/99, 373/99, 415/2001, 261/2002, 302/2005, 689/2005, 399/2007 e 500/2007, 263/2020, de 13.05.2020, 159/2019, proferido no processo nº 43/16, in www.tribunalconstitucional.pt, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2.03.2021, processo n.º 17369/19.6T8PRT.P1.S2., de 26.01.2021, processo n.º1028/19.2T8VRL.G1.S1, de 21.03.2019, processo n.º 850/14.0YRLSB.L1.S2, in www.dgsi.pt.↩︎